sábado, 28 de fevereiro de 2009

#9
Há uns anos, comprei um espelho de aumento, brinquedo que adorei desde o primeiro momento. Olha-se para lá e vê-se todos os poros, todos! Com uma bocadinho de paciência, podemos até dar-lhes nomes e saber qual é qual.
Mas vêem-se também as impurezas, as imperfeições, a que não se resiste deitar as unhas afiadas. Eu faço-o praticamente todos os dias. Neste momento, ando com uma altinho no lábio inferior por ter espremido um minúsculo ponto negro daqueles que aparecem assim na beirinha. Quando me perguntam o que aconteceu, eu respondo:
- Ah, isto? Ando a pôr botox, mas ainda só pus num lado!

E aqui encerra a revelação das verdades e das mentiras contei por desafio da Saltapocinhas.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

#8
Adoro cores. Adoro!!! Sou uma espécie de Ágata Ruiz de La Prada em versão tuga. Por isso, uso imenso preto. Eu sei que parece uma contradição, mas uso o preto para aliviar as outras cores a que não resisto. Porque, mal por mal, o preto vai bem com tudo.
Passei a fazer isto no dia em que vi o meu marido, com um ar muito preocupado, a olhar para mim e a perguntar:
- Tu vens da Jamaica?
Ok… mensagem captada.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

#7
O que o estado novo teve de pior, a revolução teve de melhor: A música.
Hoje, estou convencida que sem os acordes “uma gaivota voava voava”, “que força é essa amigo”, eu vim de longe de muito longe”, “Grândola Vila Morena” e muitas muitas outras, a revolução não tinha tido nem metade da emoção nem da magia nem da eficácia.
Lembro-me com um sorriso duma discussão que tive com uma amiguinha, tão imberbe como eu. Ela cantava:
“Somos um povo que cerra fileiras
Pata com crista do pão e da paz…”
E eu, muito indignada:
- Pata com crista?! Mas o que raio faz aí uma pata com crista?! Isso está errado! Não tem lógica nenhuma!
E ela:
- Mas então se não é pata com crista achas que é o quê?
- Não sei… - dizia eu acabrunhada – mas pata com crista não tem lógica nenhuma…
- És parva! Só pode ser pata com crista!
Quando descobri que os versos diziam, na verdade, que “Somos um povo que cerra fileiras, parte à conquista do pão e da paz”, já não tinha qualquer contacto com essa minha coleguinha para lhe poder esfregar a letra correcta na cara.
Mas na verdade, ainda hoje sou capaz de cantar de cor quase todas as canções do 25 de Abril. Foi um tempo bonito.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

#6
Nasci em plena guerra colonial. O meu pai era soldado, andava na guerra e defendia uma coisa que eu sempre soube que ele não queria defender e que para ele nem fazia sentido. Desde a mais tenra idade. A minha mãe, jovem, muito jovem, jovem demais para ser verdade, deixou a vida tranquila do continente para o seguir na insegurança do desconhecido. Sei que a minha mãe vivia na cidade enquanto que o meu pai (sobre)vivia nas trincheiras. Nunca se viam, ou quase nunca. Mas pelo menos, a distância era menor. Dois anos depois nasci eu e ficou decidido que aquela terra não era futuro para mim. A minha mãe voltou para Portugal comigo, onde permaneceu, quase sempre sozinha. Aprendi na escola que a guerra colonial era a expressão máxima do patriotismo, da defesa dos valores e da pátria. Acreditei, com reservas apenas no meu subconsciente. Os meus pais permaneceram separados até 1974, aquela data mágica de que a minha geração ainda se lembra… na carne. Não tenho qualquer vontade de voltar a África…

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

#5
Um belo dia, acompanhada que estava dum grupo de homens, uns mais velhos, outros mais novos, uns que conhecia melhor, outros pior… olhei para o panorama e tive uma das ideias tristes que de vez em quando a minha cabeça tem a infelicidade de gerar: A propósito duma conversa qualquer que já não sei qual era, disse qualquer coisa do género:
- E qual dos meninos é que quer baixar as calcinhas e levar umas palmadas, hein?
Disse aquilo tão séria e com uma cara de pau tão convincente que lá no meio, houve um que se convenceu que era verdade.
Mais tarde procurou-me, em privado. Começou a chamar-me “Minha Senhora”, “Minha Dona”, e disse-me que se eu quisesse podia usá-lo como cinzeiro, pôr-lhe uma trela, dar-lhe pontapés nas partes, tratá-lo pior que merda… Fiquei passada e mandei-o bugiar. Aí, acho que o anormal teve um orgasmo e a partir desse momento não me largou mesmo. Porra! Era um técnico de informática igual aos outros técnicos de informática todos que por aí andam! Juro-vos que agora mesmo, enquanto escrevo isto, está-me a dar uma vontade de rir incontrolável por me lembrar de tamanha bronca que me foi acontecer!
Depois, começou-me a mandar mails, dizia que estava ao meu dispor, que era o meu tapete, que o insultasse, que adorava ser pisado pelas minhas botas pretas de tacão alto e outras nojices do género. A mim, que a última coisa que poderia passar pelas minhas fantasias (mesmo as mais estúpidas) era ter um gajo a querer levar porrada!
Nunca lhe respondi e desapareci daquele círculo. Foi a única hipótese.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

#4
Quando era pequenina tinha um quarto virado a nascente com uma grande janela numa casa antiga. Cá fora, havia um pátio com uma pérgola de videiras que davam todos os anos uvas intragáveis. No verão, o sol entrava muito cedo e provocava-me. “Levanta-te!”. Eu enroscava-me nele e continuava a dormir, muito mais reconfortada. Mais ninguém conseguia dormir assim com o sol a dar na cara, só eu! O tempo foi passando e eu não perdi esta minha capacidade. Gosto de dormir. Não tanto de noite mas sim de manhã. De manhã dormimos acompanhados do quentinho do sol. É bom!

domingo, 22 de fevereiro de 2009

#3
Sempre quis visitar os países escandinavos. Ir à aldeia do Pai Natal, experimentar aqueles peixes fumados, olhar a água e os barcos, os telhados pontiagudos, a festa do solstício de verão… O meu espírito imaturo e infantil sonha ainda respirar o mesmo ar de quem inventou a Pippi das Meias Altas, o berço dos míticos ABBA que derramaram a música pela minha adolescência fora, a terra da Selma Lagerlof que eu lia em pequenina… Pronto, estou a ficar parva por isso vou parar aqui.
A verdade é que nunca fui. Nunquinha. E com a crise que isto vai, cheira-me que ainda não é este ano. Mas como dizia um velho amigo meu, enquanto a gente acordar com a língua quente e os pés a mexer, há sempre hipótese.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

#2
Devido a contingências da vida, durante algum tempo morei numa vilazinha minúscula do sul, daquelas que à primeira vista parecem pequenos presépios encantados mas, num olhar mais próximo, vislumbramos as más-línguas, os esquemas e o espírito anti-forasteiro que lhes corre no sangue.
Mas isto era o menos. Por volta das quatro horas da tarde, as três esplanadas do largo principal começavam a encher-se de “primos” e “primas” (que era como eles se tratavam uns aos outros) e um odor a uma coisa que na minha cidade só serve para estragar as couves, caracóis cozinhados, empestava o ar todo, até ao ponto de teres a sensação de estares a ter alucinações estranhas. E o pior nem era o cheiro. Não! Era vê-los com uns palitinhos a tirar uns bichos viscosos, cinzentos e retorcidos de dentro de cascas retorcidas e… sim… a comê-los!... Sim, a comer coisas que só vemos em filmes de série B, com a descontracção de quem se senta para ver o Malato à noite na televisão… Empurrando aquilo tudo com litros e litros de super bock. P… que p….!

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

#1
A minha família está, como eu já constatei, em auto-extinção. Eu e o meu marido juntos temos, nada mais nada menos do que cinco filhos! Todos crescidos. A última menor de idade muda de estatuto dentro de dias e, a partir daí, podemos dizer oficialmente que não mandamos em ninguém, pelo que provavelmente vamos ter que começar a mandar um no outro, como dois cotas marretas.
Às vezes penso que gostava de ser avó. Avó mesmo, como a avozinha do capuchinho vermelho mas mais bem comportada e sem ir para a cama com todos os lobos e todos os caçadores. Avozinha de fazer bombons de chocolate com pimenta para o lanche, levar os netinhos ao cinema a ver os clássicos do terror como o Freddy Krueger, comprar um monte de cenas inúteis para estragar os netos com mimos e outras coisas desse género. Perdi definitivamente a esperança há alguns dias enquanto almoçava num restaurante com a minha filha mais velha e o namorado dela. O olhar que ela lançou aos miúdos que corriam barulhentos à volta das mesas… disse tudo.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

A Saltapocinhas intimou-me a dizer 9 coisas a meu respeito das quais 3 sejam mentira. E a nomear outras 9 vítimas para levar com a mesma tarefa, Aí vai então:

1. Tenho 2 netos. Quer dizer, quase. Um ainda está para nascer.
2. Cozinho caracóis como ninguém.
3. De todas as cidades que conheço, a minha preferida é Estocolmo.
4. Adoro ficar a dormir de manhã até fartar.
5. Já fui perseguida insistentemente por um masoquista que, graças a uma boca pateta que eu mandei para o ar, pensava que eu era uma dominadora e ficou apaixonado.
6. Nasci em África, mas não tenho saudades nenhumas daquilo.
7. A coisa que eu me lembro melhor do 25 de Abril é da música. Sei montes delas de cor.
8. Gosto de usar cores estúpidas: vermelho, verde bandeira, amarelo, roxo, rosa pink… mas tento não as misturar muito.
9. Passo a vida à procura de pequenas borbulhas para esfolar e depois faço asneira. Às vezes, pareço um Cristo.

E pronto, se tiverem pachorra adivinhem quais são as três aldrabices. As 9 vítimas são:

Kruzes Canhoto
Miepeee
Pedro
Luís
Vap
Nós os Cachorros
Gi
A turma dos Pirilampos
Lumitoca

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Era jovem, saudável, efusiva. Tinha tudo para ser feliz de acordo com os padrões em vigor. Só não gostava de ir à praia. Não que não lhe apetecesse enterrar os pés nus na areia quente, que não quisesse sentir a água salgada na pele e no sabor, que não gostasse do sol. Nada disso. Mas assim que se aproximava duma praia, toda ela gelava.
Lembrava-se das tardes com a mãe em criança. A mãe, uma daquelas pessoas que toda a gente conhece e esboça um sorriso trocista à sua passagem ou quando ela é tema de conversa. Divertido para todos menos para os filhos, a quem a constatação de ter uma mãe "cromo" dói desde a mais tenra infância.
Vêem-lhe outra vez à mente aquelas tardes de praia com a mãe, que correspondiam exactamente a quatro horas e vinte minutos de tormento, condicionados pelos horários do autocarro. Assim que chegavam, ela punha-lhes uma camada de creme na ponta do nariz e duas nas bochechas. Porque, segundo ela, só assim se protegiam dos efeitos nefastos do sol. A seguir, enfiava-lhes um par de cuecas de homem na cabeça, a ela e ao irmão mais novo e não lhes permitia que as tirassem. Eram, segundo ela, mais eficazes do que chapéus. Depois, até à hora de voltar para casa, sentavam-se ambos a um canto perto das dunas e choravam de vergonha, sujeitos à risada dos transeuntes.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

No dia em que na missa o sermão do padre incidiu nas promessas feitas à nossa senhora e não cumpridas, eu até agucei a atenção, apesar da larica que já me afrontava. Ele começou por explicar que as pessoas fazem promessas à nossa senhora quando estão numa aflição, como por exemplo, com uma doença grave... e eu, ingénua, à espera que ele dissesse qualquer coisa lógica como - "Não façam, vão ao médico!" - mas ele não disse. Depois, continuou o discurso dizendo que - "há mulheres nesta paróquia que prometem a máquina de costura à nossa senhora se ela lhes fizer um milagre!". E eu, ainda ingénua, esperava que ele explicasse que não deviam perder tempo, que a nossa senhora jamais iria descer dos céus para vir cá abaixo coser umas bainhas ou debruar uns lençóis, que prometessem por exemplo ser boazinhas, ajudar o próximo e rezar muito, já que as divindades, pensava eu, se alimentam mais destas coisas imateriais do que de máquinas de costura. Pelo menos nas partes em que estava atenta, era isso que me ensinavam na catequese. Só que o padre terminou o sermão com a declaração solene de que, quem prometeu a máquina de costura à nossa senhora devia ir lá entregá-la. Fiquei muito confusa e cheguei a pensar que tinha ouvido mal por causa da fraqueza.
Mas depois, à mesa do almoço, à volta da galinha assada do costume, o meu avô (que tinha estado na mesma missa mas na ala dos homens), explicou-me, daquela forma rude, directa e eficaz de homem do campo que sempre usava para explicar qualquer coisa:
- Aquele sacana dum raio! O que ele quer é ficar com a máquina de costura a uma desgraçada qualquer que a prometeu num momento de fraqueza e ir vendê-la! Padres é tudo igual! Filhos da mãe duns sacanas é o que eles são!
O meu avô ensinou-me muitas coisas.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Deitava-se frequentemente com homens casados. Não o fazia propositadamente por serem casados, pois esse pormenor era-lhe até indiferente. O facto de serem casados, era apenas obra do acaso.
Nunca lhe passou pela cabeça que estava a trair outra mulher nem tão-pouco o contrário.
Nunca lhe passou pela cabeça que não deveria fazer aquilo, nem tão-pouco o contrário.
Nunca lhe passou pela cabeça que havia uma família envolvida, nem tão-pouco o contrário.
Ainda assim, havia uma coisa que ela fazia sempre e nem ela percebia porque o fazia nem porque lhe provocava aquela pequena sensação de diversão infantil, quase como quando punha sal no café dos adultos:
No calor da festa, arranhava-lhes as nádegas.
E depois, no final, enquanto se lavavam e se vestiam para se despedir até um dia destes se não for antes, virava-se para eles com aquele ar inocente e dizia:
- Ops, tens o rabo todo arranhado!
E depois, perante a preocupação misturada com "que chatice, e agora?" que via nas suas caras, punha um ar mais inocente ainda e dizia sorridente e maternal:
-Oh! Desculpa!

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Ao domingo de manhã ia à missa. Bem cedo e em jejum, porque não se podia comer antes de comungar da hóstia consagrada, assim como também não se podia tocar na dita com os dentes sob pena de arder no inferno por toda a eternidade. Hoje, já não consigo precisar quanto tempo duravam os rituais religiosos da manhã de domingo, catequese primeiro seguida de missa. Sei apenas que me pareciam infindos.
Perto da uma hora da tarde eu já não via nem ouvia nada. Enfraquecida pelo jejum, passavam à minha frente imagens e cheiros da galinha corada no forno com puré de batata, que era invariavelmente o almoço de domingo. Involuntariamente, comecei a associar essas imagens e esses cheiros à frase "Vamos em paz, e que o senhor nos acompanhe", que era a última da eucaristia e a que me fazia despertar da letargia da fome com uma alegria que eu tinha que conter para que ninguém pensasse que estava a cometer um pecado.
Ainda hoje, para mim, a missa cheira a galinha assada.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Comprei um vinho branco para cozinhar. O mais barato, como sempre. E quando, já em casa, abri a garrafa, soltou-se dela um cheiro a infância: A loja do Sr. Serafim. Ficava na esquina da rua onde eu morava, agora é um parque de estacionamento. Era um lojinha escura onde eu ia comprar tomate ou feijão verde ou outra coisa qualquer que a minha mãe precisasse numa emergência. Uma lojinha dividida em duas partes, em que na da frente, a mulher do Sr Serafim, uma mulheraça grande de cabeleira farta de caracóis negro-azulado, vendia mercearia às mulheres, e na de trás, mais recatada, o Sr. Serafim vendia vinho aos homens em copos de vidro grosso e baço pelo tempo. Uma passagem em arco de madeira muito velha e carcomida separava as duas alas. Mas mesmo assim, podia ver-se lá no fundo os grandes pipos e os banquinhos onde eles se sentavam para beber e jogar dominó numa mesa de oleado. Ouvia-se indistintamente as vozes e as gargalhadas e o cheiro era sempre a vinho que tinha envelhecido depois de cair no chão por lavar e lá ter ficado.
Ah! Já não usei o vinho que tinha comprado.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

O meu primeiro namorado chamava-se... bem, já não me lembro como se chamava. Mas tinha uma bicicleta baril, dum modelo diferente dos outros todos, que o pai lhe tinha trazido de Espanha. Não era uma pasteleira, pesada e com rodas grandes cheias de flores de plástico a rodar que nem loucas. Também não era uma roda 26, como a minha, que tinha rodas muito pequeninas, era muito alta e tínhamos que pedalar muito para chegar a qualquer lado. A bicicleta dele tinha um design que lembrava vagamente as BTT's, que só vieram a ser consideradas uma praga muitos anos depois.
Eu pensava que um namorado era uma pessoa que tinha brincadeiras giras e com quem era divertido passar o tempo. Ele devia pensar a mesma coisa, porque a única coisa que fizemos durante todo o tempo de namoro (que durou uma tarde inteirinha, desde o almoço ao pôr-do-sol), foi brincar com a bicicleta dele. Eu sentava-me no guiador e ele pedalava com muita força sem ver o que estava à frente, só mesmo as minhas costas. Quando atingíamos uma grande velocidade, eu abria os braços e gritávamos. Caímos muitas vezes e esmurrámos os joelhos, mas divertimo-nos imenso.
No final da tarde, quando regressei a casa para jantar, a minha mãe estava com cara de poucos amigos. Já alguma vizinha lhe tinha ido contar que a filha (eu, com oito anos de idade), se andava a portar mal com um rapaz. Então, assim que entrei, ofegante e feliz, nem me perguntaram nada nem quiseram saber da minha boca o que tinha andado a fazer. Deram-me uma bofetada e mandaram-me para o quarto de castigo.
Eu fui, sem perceber nada. Mas enquanto ali estive, com o estômago a dar horas e a pensar no que havia de fazer sem televisão, fui desenvolvendo uma teoria segundo a qual deveria haver algo nessa história do namoro que eu desconhecia mas que devia ser muito, muito interessante. Melhor do que andar numa bicicleta estrangeira, melhor do que brincar toda a tarde. Melhor do que cair e esmurrar os joelhos. E que os adultos não queriam que nós soubéssemos o que era para poderem ficar com aquilo só para eles. Se aquele castigo não tivesse acontecido, eu não teria ainda querido, não tão cedo, matar aquela curiosidade. Mas como aconteceu, não demorei muitos anos a desvendar o mistério.
Obrigada mãe.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Este tique também ataca os homens, embora com contornos e resultados diferentes. Nas mulheres, é basicamente o mal de que sofria a I*****. Pura e simplesmente, vivia convencida de que era a mulher mais bonita e com o corpo mais perfeito do mundo. A reboque dessa certeza vinham outras: Que todas as mulheres a invejavam, que nenhum homem lhe resistia e que o marido tinha tanta, mas tanta sorte por poder partilhar o espaço com ela a menos de 10cm que devia agradecer todos os dias da sua vida.
A I***** não era um trambolho, de facto. Tinha uns olhos bonitos, era baixinha, nem gorda nem magra, as pernas não se recomendavam por aí além para as saias acima do joelho e se as proeminências peitorais andassem alguns centímetros mais acima também não se perdia nada. Nestes pormenores, claro, só se reparava com atenção devido ao comportamento dela. Se não fosse tão convencida, seria aos olhos de todos uma mulher normal, desejável q.b. nas circunstâncias certas. Como, aliás, quase todas nós.
Um dia, a I***** comprou uma roupa nova, duma estilista famosa. Uma daquelas farpelas que são giras na passerelle, talvez também numa cerimónia exótica a revestir uma molhada de ossos de manequim, mas totalmente imprória (e até ridícula) para levar para o trabalho, que foi o que ela fez.
Quando chegou, de manhã, tudo paralisou. Os olhos viraram-se para ela e sustiveram-se respirações, em estado de choque. Alguém teve a coragem de perguntar:
- Oh I*****! Que diabo de roupa é essa???!!!
- Ora! - respondeu ela - é uma roupa que vocês não podem usar porque não têm um corpinho como o meu!
Aí, as pessoas até então caladas não se aguentaram, e o escritório inteiro rebentou numa gargalhada geral. O que, aos olhos dela, foi visto como mais uma manifestação de inveja.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Entre mim e a mulher cigana à minha frente acabou por se desenvolver um diálogo bastante amigável e até mesmo um bocadinho cúmplice. Era uma mulher madura de cabelos negros apanhados no alto da cabeça e olhos muito vivos. Começou por me explicar que odiava o seu nome, que era de família há várias gerações mas chamava a atenção em todo o lado. Rimo-nos as duas com isso. O nome dela era, de facto, muito estranho. Depois, falou-me da família. Dos vários filhos e da neta. Mostrou-me uma fotografia duma miúda morena de olhar brilhante, como a avó.
- É muito bonita - comentei - que idade tem?
- Faz doze para a semana - respondeu cheia de orgulho.
Depois eu estive quase, quase a fazer outra pergunta. Que seria perfeitamente normal noutro contexto qualquer mas que naquele, me assustou.Passaram-me pela cabeça fantasmas e preconceitos vários, tive medo e não perguntei. Era:
- Em que ano anda?

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

E dizia ela, a justificar as olheiras com que apareceu para trabalhar:
-É que vocês não estão bem a ver os meus vizinhos de cima! Põem-se "naquilo"!... O prédio todo ouve! É só gritaria!
-Gritaria como?
-Gritos! Gritos mesmo! E conversa porca em altos berros, mete aqui, faz assim, faz assado... E vocês não se riam que é mesmo assim como eu estou a dizer!
-Mas... é a noite toda? Para não conseguires dormir...
-A noite toda não! São para aí vinte minutos, sei lá, meia hora no máximo... Só que uma pessoa acorda com aquela gritaria, fica perturbada e depois já não dorme! Eu pelo menos já não consigo!
E, para terminar, explicou o pormenor, aquele tal, que é a cereja no topo do bolo:
-E vocês pensam que eles são alguns putos? Nada disso! Têm quarenta e tal anos! E depois passam por nós nas escadas como se nada fosse! Tenho eu mais vergonha de os encarar a eles do que eles a mim!

Por isso já sabem: Se tiverem mais de quarenta anos, forem barulhentos na actividade sexual e morarem num prédio, nunca apareçam nas escadas. Comprem um helicóptero e saiam pelo terraço.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Para passar o tempo durante o intervalo do almoço e limpar temporariamente a cabeça de trabalho, dei um giro pelas lojas. É um exercício sempre saudável.
Estava numa loja de artigos para a casa quando entraram duas senhoras a falar muito alto, provavelmente a aproveitar a hora de almoço para levar a cabo o mesmo exercício que eu. Assim que deram uns passos dentro da loja, uma delas exclamou, olhando em volta:
- Que coisas tão alegres!!!
Eu olhei em volta também, e juro que nada ali me pareceu estar num especial estado de euforia. Nem os copos, nem os talheres, nem os candeeiros, nem as colchas, nada. Não é que estivessem propriamente tristes. O que me pareceu foi que estavam bastante indiferentes. Num estado de frigidez absoluto. Alegres não...

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Hoje vi uma mulher descer um passeio alto com o carro. De frente e sem nenhuma preocupação. O barulho que se ouviu quando aquelas traquitanas que os carros têm por baixo bateram no lancil foi tão grande que toda a gente parou para olhar. Eu, embora tenha provavelmente um nível de testosterona que já me obriga a fazer estas manobras de ladecos e com muito jeitinho, compreendi-a bem. Ela não é naba. É só mulher. Se fosse um homem, o acontecimento daria origem a um dos maiores dramas da sua vida. Pararia logo ali, faria a vistoria completa à viatura e ia atormentar-se de noite com pesadelos sobre avarias na direcção. Desenvolveria uma depressão pós-traumática. Teria longas conversas sobre o assunto com os amigos onde, entre grades de cerveja, contaria a desgraça que o tinha atingido, e todos iriam ficar solidários com a sua tragédia. Depois, fariam peregrinações à garagem, onde analisariam a máquina ao pormenor e dariam opiniões sobe as possíveis consequências no futuro, a curto, médio e longo prazo.
Para uma mulher, enquanto o carro pegar quando dá a volta à chave e andar, que se lixe!
Não é que eles sejam mais sensatos e nós estúpidas, nem o contrário. São os cromossomas, não há nada a fazer.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Enquanto jantavam, frente a frente, sentados à mesa do restaurante, passava na televisão um jogo de futebol importante cujo resultado era importante para uma coisa qualquer mais importante ainda que ela não sabia o que era.
Ele, de frente para a televisão, não tirava os olhos dos fora-de-jogo, das substituições, das faltas e penalties, enquanto ambos jantavam em silêncio. Ela, que não estava incomodada pela situação nem nada, apenas sabia que naquele dia não iriam conseguir conversar antes que acabasse o futebol, iniciou, para ocupar o tempo, um exercício mental no qual contou os sapatos da fila de pessoas que jantava ao balcão, dividindo-os por cores e tamanhos.
De repente, ele tirou os olhos do futebol, olhou para ela e achou-a ausente no seu exercício de contar sapatos:
- Então amor! Tu hoje parece que não estás cá! Estás a pensar noutra coisa qualquer! Estás com algum problema?
Ela teve vontade de rir. Ai os homens...

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

A jovem mãe percorria o super-mercado atarefada, com os dois filhos pequenos, de idades muito aproximadas, cada um agarrado a um lado da saia da progenitora. Quando esperava pela sua vez, na caixa, duas senhoras daquelas amorosas que têm um radar incorporado e não perdem pitada da vida dos que com elas se cruzam, detectaram as crianças e começaram a interagir com elas que, assustadas, se escondiam atrás da mãe.
- Ai tão lindos!!! Oh meu querido, como é que te chamas? Quantos aninhos tens? - insistiam elas perante os dois miúdos assustados.
Depois, com a curiosidade quase a rebentar-lhes a pele em pústulas, perante as diferenças óbvias entre os dois rebentos, um moreno-tropical e o outro louro-escandinavo, viraram a força de ataque para a mãe e começaram a interrogar, com grandes sorrisos desenhados em lábios pintados de vermelho-vivo pelo lado de fora:
- Tão queridos!!! São seus??? São irmãozinhos??? Tão lindos!!! Mas tão diferentes! Nem parecem filhos do mesmo pai!!!
E ela, tão simples como as árvores:
- Pois. É porque não são mesmo.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Não tenho talento nenhum para fazer compras em feiras ou mercados ao ar livre. Numa das vezes em que tentei, ainda no tempo dos escudos, fui comprar flores. Depois de escolher um enorme ramo de cravos vermelho-escuro, dirigi-me ao agricultor e perguntei-lhe quanto era:
- Trinta escudos - respondeu ele muito direito, como se se defendesse de qualquer coisa que eu não percebi logo o que era mas que mais tarde descobri serem os regateiros.
- Trinta escudos?! - perguntei eu surpresa por ter achado demasiado barato. É que na verdade, são quinze cêntimos no dinheiro actual, numa florista não daria nem para uma flor!
- Pronto - retorquiu ele já mais humilde - faço por vinte.
E depois novamente na defesa:
- Mas não desço mais nada!

Quanto a mim, só me faltou pedir-lhe que, por favor, não descesse mais o preço, que eu já estava envergonhada q.b. por haver quem pensasse que eu discutia dez escudos num ramo de flores. Paguei rapidamente e fugi dali.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Como frequentei a universidade já tarde, com emprego, filhos, marido e casa, nunca participei naquilo a que se chama "vida académica". Se por um lado não tinha tempo nem disponibilidade, por outro achava tudo aquilo demasiado imbecil para mim. Os trajes académicos, os gritos de "eférriá", os desfiles, as bebedeiras, os concertos de música chunga para acompanhar estados de ausência por embriaguez, tudo isso me parecia pertencer a um planeta distante onde eu dispensaria viver.
Mas não escapei a tudo. Sempre que era necessário fazer trabalhos de grupo pela noite dentro, dava comigo em apartamentos alugados onde, invariavelmente, acontecia uma ou mais das seguintes situações:
- Havia lixo e desordem por todo o lado;
- Havia um casal (ou mais) a divertir-se em altos decibéis no quarto ao lado;
- Uma ou mais pessoas estava com uma grande moca e não tinha condições de pensar em linguística ou literatura.

A melhor de todas, porém, foi quando uma vez se ouviu um grande estrondo contra a parede da sala onde estávamos e apareceu uma mocinha em estado "natural" e segurando a cabeça dorida, a insultar o rapaz com quem estava no quarto, que era um inútil e que nem uma pinada sabia dar em condições sem lhe atirar com a cabeça contra a parede.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Num tempo tão velho que já nem é o meu, que já tenho uma estadia razoável sobre a terra para me lembrar de coisas bem estranhas, naquele tempo em que a virgindade das noivas tinha uma cotação real no mercado de valores, aconteceu esta história.
Na noite do seu casamento, a C****, virgem de corpo mas não tanto de mente, que naquele tempo a cabeça já vagueava tanto como hoje ou talvez mais, retirou-se para o quarto de hotel com o seu recém-marido, como ditavam os costumes e sempre se fazia. Ansiosa e excitada com as descobertas que a noite lhe reservaria, trancou-se na casa de banho para se arranjar, munida de todos os segredos e truques de todas as amigas mais experientes (leia-se casadas). O perfume, a lingerie, a camisa de dormir, os cremes e até o tempo em demasia a preparar-se para impacientar o amante e se "fazer cara" uma última vez, tudo lhe tinha sido recomendado e explicado ao pormenor. Uma hora depois de entrar, a C**** saiu da casa de banho triunfante mas tímida, radiante nas suas vestes brancas, pronta para enfrentar a primeira e a última das noites de sonho antes de se tornar doméstica e parideira, como também era costume nesse tempo. Só que, ao contrário de tudo quanto lhe tinham prometido, logo que passou ao quarto, a C**** teve uma visão de horror. Cansado e gasto pelo dia agitado, pela comida em exagero, pela bebida a mais, pela cerimónia, por tudo, o marido, com o nó da gravata desapertado, deitado de costas na cama, dormia profunda e sonoramente, de tal maneira que nem quando ela bateu propositadamente a porta da casa de banho ele acordou.
Depois de alguns minutos ali especada, ridiculamente aperaltada como se fosse fazer um close-up num filme sobre a noiva de Drácula, a C**** decidiu-se. Voltou para a casa de banho e vestiu-se para sair. Depois, sentou-se numa cadeira ao lado da cama e esperou, horas a fio, que o marido acordasse. Finalmente, quando o sol já entrava pela janela, ele acordou. Olhou para ela e sorriu, como se nada fosse. Ela, seriíssima e adivinhando o que lhe ia na cabeça, levantou-se e disse-lhe, secamente:
- Que bom que já acordaste, querido! Então prepara-te e vamos sair. Já é dia!
Calcorrearam toda a cidade a visitar museus, monumentos, jardins, tudo o que havia para ver, e ele sem perceber muito bem o que se passava. Já de noite regressaram ao hotel e ela fez-lhe saber que, coitado, devia estar muito cansado, que dormisse que ela já vinha, e trancou-se novamente na casa de banho mas desta vez para ela própria dormir, encostada na banheira.

- Aquele cabrão pensava que se safava assim! - contava a C**** em grupos de amigos, muitos anos depois, sempre no meio de gargalhadas - Andou mais de quinze dias até me conseguir pôr as mãos em cima! A vingança duma mulher rejeitada é terrível!

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Antes de substituir de vez a imagem que adoptei para este blog, quero contar-vos a sua história.
Trata-se uma boneca de papier maché que comprei em Espanha numas férias. Quando a vi na prateleira da loja achei-a o máximo, muito colorida, muito redonda, muito espanhola... mas também muito cara.
Entretanto, entrou um grupo de turistas japoneses que se puseram a fazer o que eles sempre fazem: a disparar as máquinas fotográficas contra tudo o que mexe e o que não mexe. Muito baixinhos, parecia que a loja tinha sido alvo dum ataque de gremlins tecnológicos.
A dona da loja ficou com ar de poucos amigos e em conversa com o meu marido (sim, ele fala espanhol, eu não) explicou-lhe que aquilo era frequente, tirarem fotografias para copiar posteriormente os artigos.
Foi um impulso. Tirar a boneca da prateleira e levá-la comigo mesmo no momento em que um japonês se praparava para lhe fazer o retrato deu-me um gostinho especial. Não de maldade, apenas divertido. Com certeza ele teria muito mais o que retratar.
Mas apesar de gostar muito da minha boneca espanhola, de vestido às bolas e ramo de flores farfalhudas junto ao peito, acho que não está a funcionar muito bem aqui. É tudo uma questão de contexo.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Vou contar-vos a história do "Five Star".
Era um rapagão jeitoso, enfim, pelo menos para os apreciadores do género. Grande, louro e de olhos azuis simpáticos e quase inocentes. Foi contratado para ser o nosso estafeta, que é como quem diz o tipo que acarretava os processos dum lado para o outro. Foi visível a todos que a chefe, rapariga de quarentas, assanhada q.b., foi logo sensível aos encantos do novo auxiliar de serviços. Então, após as apresentações e o acolhimento da praxe, como não havia processos para levar a lado nenhum naquele momento, mandou-o fazer umas etiquetas auto-colantes para identificar os documentos que tínhamos guardados nas várias estantes, coisa que já era necessária há algum tempo mas para a qual ainda não tinha havido oportunidade. Ele, na ânsia de se mostrar útil comum a todos os caloiros, meteu imediatamente mãos à obra. Algum tempo depois, deu a tarefa por concluída e chamou-nos para ver. Aproximámo-nos e, horrorizados, constatámos que as nossas prateleiras e armários estavam infectadas com etiquetas várias, coladas por toda a parte, em que cada palavra, escrita com uma caligrafia perfeitamente boçal, continha pelo menos dois erros ortográficos graves, quando não mais.
A chefe esboçou um sinal de que ia falar e, dada a fama (e proveito) de arruaceira que tinha, pensámos logo todos:
- Coitado! Está frito...
Só que, para surpresa geral, o que ela disse, embevecida e com um sorriso pateta na cara, enquanto (juraríamos) fixava o olhar num quadrante do novo colega algures entre os joelhos e o umbigo, foi:
- Este rapaz é cinco estrelas!!!

E foi assim que o S***** ganhou a alcunha de "Five Star". Até hoje, que já casou, ganhou barriga e gerou prole.