terça-feira, 30 de junho de 2009

Foi numa aldeia com o ridículo nome de "Palhaço", recentemente elevada à categoria de vila, que eu contactei pela primeira vez com a realidade da violência doméstica. Íamos lá de quando em quando visitar um casal amigo dos meus pais, e a conversa dos adultos girava sempre à volta do mesmo: Ele batia nela. Ela começava por se queixar que ainda no dia anterior tinha apanhado porque ele não tinha gostado da sopa ou qualquer coisa insignificante do género. Depois, ficava a ouvir os meus pais a dar-lhe conselhos, do tipo não faça isso, porque isso não se faz, é mau para as crianças, e a sua mulher é uma senhora tão trabalhadeira, tão limpa, tão boa mãe e dona-de-casa, que não merece. Ele, sem olhar directamente para as pessoas, ficava a ouvir, de cara fechada, sempre a rosnar baixinho qualquer coisa que ninguém entendia. Fumava e esfregava as mãos uma na outra, com uma raiva contida que era um indício claro, até para mim que era ainda criança, que mal nós saíssemos dali ele iria mais uma vez vingar-se do mundo naquela mulher pequenina e muito morena, conformada, que se queixava aos amigos como quem reza um terço.

Eu, pela minha parte, tinha algumas questões a rondar-me o cérebro, mas como sabia que naquele caso era suposto pôr-me a um canto a brincar e fazer de conta que não tinha ouvido nada, nunca as colocava em voz alta:

- Porque é que os adultos batem uns nos outros sem ser nos filmes de porrada?

- Porque é que as pessoas casam umas com as outras para andar à pancada?

- Se ela não fosse limpa, boa mãe e boa dona-de-casa, já merecia que lhe batessem?



Durante muitos anos, associei o coreto e o largo de Palhaço a coisas tristes, e nunca me apetecia lá ir.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Uma amiga da minha mãe ofereceu-lhe um pouco de "flor do yogurte". Era uma coisa branca parecida com couve-flor, comida que eu odiava e ainda odeio a não ser em pickle, mas mesmo assim fiquei curiosa sobre o funcionamento da coisa.
- Isto mete-se dentro dum litro de leite - explicou a minha mãe - e no dia seguinte, pronto, já temos yogurte!
- Só assim?
- Só assim. Vais ver. E ainda por cima diz que se multiplica e, daqui a algum tempo, vamos ter mais flores do yogurte para fazer mais litros de yogurte.
E assim foi, mas em versão caricatura. A criatura cresceu e multiplicou-se como num filme de terror de série B e, uma semana depois, já ninguém podia ver yogurte à frente, além do que a nossa cozinha parecia um laboratório de ciências naturais, cheia de grandes frascos com leite onde cresciam, silenciosos mas ameaçadores, mais seres daqueles a que se chamava "A Flor do Yogurte".
Lembro-me que foi com alívio e com a participação em massa dos membros da família que aquela porcaria foi toda parar ao lixo.

domingo, 28 de junho de 2009

No ciclo preparatório, discutíamos em grupo a gravidez acidental da prima mais velha duma colega:

- Acho que foi com uma vela.
- Estúpida! Não se pode ficar grávida com uma vela!
- Porquê?
- Não sei... Mas não pode. Eu já li.
- Onde?
- Já não me lembro.
- Não leste em lado nenhum, estás-te só a armar!
- Mas é verdade, ela tem razão! Não se pode ficar grávida com uma vela!
- Ai é? E porquê?
- Então, porque uma vela não tem... reacção.
- Ai é?
- Reacção? Mas que reacção? Que conversa tão parva!
- Então, reacção reacção! Não se mexe!
- Pois é! Como é que a vela fez isso?

sábado, 27 de junho de 2009

-Mãe! Estive a ver as horas no relógio da casa de banho!
-No relógio da casa de banho? -perguntei, certa de que não tínhamos lá nenhum.
-Sim! Aquele que está no chão! Quando subimos lá para cima ele dá as horas!

sexta-feira, 26 de junho de 2009

A rapariga ia lendo na revista feminina de cor sépia pousada na mesinha de cabeceira, as técnicas para saber se tinha celulite, coisa que a indústria da moda e dos cosméticos tinha começado a tornar impopular e odiada embora quase ninguém soubesse o que era ou fosse capaz de reconhecê-la.
"Coloque ambas as mãos na coxa e aperte com força". Ela ia lendo e seguindo as instruções. "Verifique se a pele adquire o aspecto de casca de laranja". Ela olhou para o pedaço da sua própria carne apertado firmemente entre as mãos. Assim asfixiada e quase a ficar branca devido à falta de circulação, não conseguia ver ali qualquer parecença com casca de laranja, nem tão pouco imaginar como seria uma coxa com aspecto da dita fruta. Intrigada, resolveu tentar de novo. Desta vez apertou com mais força. Entre as mãos estava uma coxa adolescente, de novo muito branca e a formar algumas pequenas pregas devido à enorme pressão a que estava sujeita, embora quase imperceptíveis. "Aspecto de casca de laranja não deve ser na cor" - pensou ela - "deve ser por ficar assim a formar uns risquinhos... Quer dizer, a casca de laranja não tem risquinhas, mas deve ser em sentido figurado."
Sentou-se na cama e voltou a ler o texto na página dobrada para trás da Crónica Feminina. Levantou-se e resolveu tentar outra vez. Olhou, pensou, olhou, pensou, olhou, pensou e começou a ficar levemente angustiada. Continuou a leitura: "A celulite afecta cerca de 95% das mulheres e é ruinosa do ponto de vista estético". Noventa e cinco por cento! Estatisticamente, ela tinha celulite! A angústia aumentou. Só podia ter. Apertou a coxa de novo e agora já era capaz de jurar que conseguia ver pequenos monstros remexendo-se diabolicamente debaixo da pele. Tinha celulite!
A partir daí, passou a usar sempre blusas ou t-shirts muito compridas para que ninguém notasse e só ia à praia de calções. Quando a interrogavam sobre essa opção, dizia que tinha frio. Durante anos a fio nunca foi capaz de ver que o seu traseiro era diferente dos traseiros que via na praia e que pareciam ter crateras e vida própria, nem nunca se lembrou de pôr a hipótese de isso, sim, ser celulite, e não o seu rabo formado por duas meloas lisas e duras.
Só descobriu isso muitos anos mais tarde, quase com quarenta anos de idade. E foi preciso alguém lhe dizer.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Aprender orações era a coisa que mais me custava. Não sei porquê. Logo eu, que era capaz de decorar rios, montanhas, capitais e caminhos de ferro, sabia de cor a lista de reis e as respectivas dinastias, a tabuada e tudo aquilo que de qualquer forma me podia poupar a uma sessão de reguadas! O Pai Nosso ainda lá foi, a Avé Maria também. Agora aquela coisa a que chamavam Salvé Rainha, nem com açúcar! Parece que havia um mecanismo na minha cabeça que, cada vez que eu tentava decorar aquilo dizia "Chega de palermice!" e bloqueava qualquer hipótese de êxito.
E foi com esta lacuna grave que eu cheguei à véspera da primeira comunhão. Azar!
Nesse dia fui-me confessar, era obrigatório. Para nos apresentarmos ao grande momento do ritual de passagem de alma pura, contávamos ao padre os grandes crimes que tínhamos cometido e que eram iguais para todas: Pensei mal das minhas amigas, desobedeci aos meus pais e faltei à missa por desleixo. Claro que, na prática, só a primeira era possível. Não nos pormos logo em sentido a uma ordem paterna, nesse tempo, era impensável, e faltarmos à missa, só se tivesse havido um cataclismo e o mundo estivesse a acabar. Mas era esta a lista oficial de pecados duma criança e nós não conhecíamos outra.
Quando chegou a minha vez, algo me dizia que aquilo ia correr mal. Certinho! Assim que acabei de enumerar os meus pecados e o padre acabou de me explicar como eu era uma menina má que precisava duma penitência pesada, já eu estava a fazer contas de cabeça a ver quanto tempo demoraria a chegar a casa para ver os desenhos animados, e eis que ele teve um assomo de clarividência:
- Olha lá! Antes de ires embora, reza aí a Salvé Rainha!

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Levei os meus filhos a ver neve pela primeira vez ao vivo na Serra da Estrela pois está claro, que é onde os saloios vão para atirar bolas de água gelada uns aos outros. Embora todos tivessem achado a experiência interessante, foi a mais nova, então com dois anos, que ficou mais fascinada.
Durante uns meses, quando íamos ao super-mercado, chegávamos à peixaria e ela ficava ali aos pulinhos a gritar:
- Neve! Neve! Oh mãe, é neve!

terça-feira, 23 de junho de 2009

Foi num daqueles concursos de televisão, onde eu estive em tempos. Levei a minha filha mais nova e a filha mais nova do meu marido, com idades muito aproximadas e, quando lá cheguei, apresentei-as como minhas filhas. Não valia a pena entrar em mais pormenores. Depois, durante as gravações, para pôr o pessoal à vontade (que é como quem diz para pôr o pessoal mais constrangido do que nunca), o animador de serviço que é aquele senhor que manda rir e bater palmas, resolveu meter-se com elas, em público e com dezenas de pessoas em estúdio. Perguntou-lhes a idade.
- Quinze - disse uma.
- Dezasseis - respondeu a outra.
- Pôxa! - retorquiu ele, que já dá para ver que era brasileiro - E não tem televisão lá em casa não?
...perante a risota geral e as caras aflitas de ambas, sem perceberem muito bem a piada, como é óbvio.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

ELA: O que é que eu ponho aqui onde diz "nome"?
EU: Depende. A senhora tem uma empresa constituída ou é empresária em nome individual?
ELA: Ai ai ai! Ai agora isso é que eu não sei nada.
EU: ??? Estou a perguntar se a senhora tem uma empresa ou se se foi só colectar às finanças para exercer a actividade de cabeleireira.
ELA: Ai ai ai! Mas isso é o quê? Eu não sei!
EU: D. R***, vamos lá com calma. A senhora tem uma empresa? Tem um nome daqueles que acabam em "unipessoal Ldª"? Ou não?
ELA: Ai ai ai! Sei lá, explique-me isso melhor.
EU: Mostre-me o seu cartão de pessoa colectiva.
ELA: É isto?
EU: Não, isso é o cartão de eleitor.
ELA: É isto?
EU: Não, isso é o cartão do banco.
ELA: É isto?
EU: Não, isso é o seu bilhete de identidade.
ELA: É isto?
EU: Isso mesmo! Mostre cá... A senhora é empresária em nome individual, por isso aí em cima põe o seu nome.
ELA: O nome todo ou como está aqui?
EU: O nome todo.
ELA: Mas eu no bilhete de identidade só assino o primeiro e o último.
EU: Sim, mas uma coisa é escrever o nome, outra é assinar. Eu estou-lhe a pedir que escreva o nome, assinar é só no fim.
ELA: Ai ai ai! Já não estou a perceber nada disto!
EU: Olhe D. R***, dê-me cá o impresso que eu preencho.
ELA (muito risonha): Sabe que de "brushings" eu percebo. Agora estas coisas, a senhora tem que me explicar como se eu fosse muito burra!
EU (só mentalmente): Mas tu és muito burra!

domingo, 21 de junho de 2009

ELA: Eu precisava duma planta da zona onde eu moro.
EU: A que escala?
ELA: Ai! Sei lá! A senhora veja aí! - e entregou-me um papel.
EU: Aqui diz que pode ser uma fotografia aérea obtida na internet. Se a senhora quiser pode fazer isso em casa e escusa de pagar por isto.
ELA: Ah mas eu de computadores e de internetes não percebo nada nem quero nada com isso! A senhora tire-me isso aí que eu prefiro pagar!
EU: Muito bem.
....................................................................
EU: Peço desculpa mas o programa deu erro. Vou ter que desligar o computador e voltar a ligar, por isso vai demorar um bocadinho.
ELA(com ar entendido): Faz-vos falta aqui um helpdesk, é o que é.

sábado, 20 de junho de 2009

Sentaram-se os dois à minha frente. Ambos pareciam caricaturas, com um penteado cheio de laca à anos setenta num cabelo muito preto, apesar da idade de ambos indicar que aquilo era tinta. Usavam camisas garridas e tinham bigode. Sorriam da mesma maneira e ao mesmo tempo. O da direita fez as apresentações:
- Boa tarde! Eu sou o Abel Maciel e aqui o meu irmão é o João Antão.
E eu pensei:
- Está explicado, os pais eram poetas!

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Quando eu tinha uns cinco anos, nasceu na vizinhança um bebé sem genitais, o que causou como é óbvio grande mágoa na família e consternação na pequena comunidade. Só eu não percebi porque motivo aquilo era considerado uma desgraça tão grande. E como não podia deixar de ser, interroguei a minha mãe:

- Mas não era pior ter nascido sem braços ou pernas?
- Não! Isto é muito mau, coitadinho!
- Mas porquê? Não lhe fizeram um furinho para ele fazer xixi como as meninas?
- Fizeram... mas é mau.
- Mas porquê???
- Porque... é.
- Sim, mas porquê???
E a minha mãe teve a ideia brilhante que a iria safar do entalanço:
- Porque quando ele for para a escola, nas aulas de ginástica, como é que vai tomar banho ao pé dos outros colegas? Vai ter vergonha!

Eu, embora continuasse a achar que era pior não ter uma perna e que ele podia sempre tomar banho em casa, aceitei a explicação e abandonei o combate. Mas não totalmente convencida. Afinal, aquilo que lhe faltava era uma coisa sem jeito nenhum (pelo menos as que eu já tinha visto, de bebés da família), que devia dar um desconforto incrível ali pendurada e isto tudo só para urinar! A natureza tinha sido muito mais simpática para nós, as mulheres!

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Era um homem e uma mulher na casa dos sessentas e sentaram-se à minha frente. Ela mais afastada e ele no lugar mais próximo, com ar decidido.

ELE: Eu venho trazer aqui um assunto complicado!
EU: A sério? Então vamos lá ver se é ou não!
ELE: Esta senhora (e apontou para ela), que é minha vizinha, tem um problema.
(Ela assentiu com a cabeça)
ELE: A mulher que é dona do terreno ao lado não o limpa há anos e depois aquilo, já se sabe, é só rataria e doenças! Pode-se fazer alguma coisa?
EU: Sim, a senhora expõe a situação por escrito e nós remetemos às autoridades competentes.
ELA: Ai senhor A*******, escreva você que eu não tenho jeito nenhum para isso!
ELE: Então pois escrevo! Eu vim consigo para ajudar!
(E começou a escrever, mas ia falando ao mesmo tempo)
ELE: Sabe que ainda ontem, estava eu a cortar a relva lá no quintal, apanhei um "liscanço" para aí deste tamanho (afastou os braços para dar a ideia da enormidade do bicho).
EU: Mas então o senhor também tem o mesmo problema no seu quintal?
ELE: Eu não! Quer dizer, isto foi lá no quintal da D. M****. Eu vou lá dar uma ajudinha de vez em quando.
(Ela continuava a assentir com a cabeça)
EU: Mas então o senhor mora lá perto. Pode assinar como testemunha...
ELE: Oh menina... como é que lhe hei-de dizer? Isto é assim: Ela graças a Deus é viúva, eu sou "desvorciado"...
EU: Sim...
ELE: Quer-se dizer... a gente para aí há uns quatro anos que moramos na casa dela. Mas isto não convém dizer.
EU: Quer dizer que os senhores vivem em união de facto então.
ELA: Não não! Quer dizer... Não convém dizer!
EU: Mas porquê?
ELE: As pessoas não tomam a bem não é? Nós com esta idade... e já fomos os dois casados e temos filhos e netos... Quer-se dizer... as pessoas sabem não é? Mas não convém dizer.
(E ela sempre a assentir com a cabeça)
EU: Mas os senhores não têm que dar satisfações a ninguém da vossa vida! Nem ninguém tem nada com isso!
ELE: Pois não graças a Deus! Mas ela assim já desta idade, viúva, com um homem "desvorciado", as pessoas falam não é? Não convém dizer!

E eu não me estiquei mais em considerações porque me pareceu que não devia. Eles vivem a fingir que não são pessoas com as necessidades das pessoas nem as fraquezas das pessoas, porque os outros podem falar, porque já passaram da idade aceitável para namorar e porque uma viúva tem que se remeter ao velório eterno para ser respeitável. Pelo menos lá no sítio onde ambos vivem, ao lado do terreno que ninguém limpa. Eu sei que pensei imensas coisas sobre o assunto... mas não convém dizer.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Juraria que ali é mesmo o centro de Portugal. Quer dizer, se fosse possível pegar numa fita métrica e ir por ali fora a medir, largura e altura, estaríamos no ponto onde as duas linhas se cruzam. Muitas estradas estreitinhas com muitas curvas, impróprias para enjoados, e pinhais... imensidões de pinhais, a confirmar que D. Dinis andou por ali a interagir com a natureza como nos ensinaram na escola.
O automobilista vindo da capital já só sabia uma coisa: Estava no meio de pinhais. O que não é bom quando se tenciona chegar a algum sítio concreto. Almas vivas, nem vê-las. GPS's, só os inventaram uns anos depois. Até que finalmente, do meio das árvores surgiu uma figura de mulher, com um molho de lenha à cabeça mais volumoso do que ela toda. "Estou safo" - pensou. E dirigiu-se até ela que, com ar desconfiado, olhava para trás e dava corda às pernas.
- Oh minha senhora, faça favor! - gritou ele aproximando-se ainda mais e abrindo a janela do lado do pendura para lhe falar.
Aí é que foi. A mulher largou a lenha e desatou a fugir em pânico como se tivesse visto o diabo. Nunca mais se viu.
Ali, mesmo mesmo no meio de Portugal.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Mas não foi a primeira vez que isto me aconteceu na vida (refiro-me, claro, à história anterior).

Uns anos antes tinha ido passar um fim-de-semana à terra dos pais do meu sogro, para uma reunião de família. Como éramos muitos e seria uma confusão ficarmos todos na casa, alguns de nós (onde eu me incluía), dispuseram-se a ficar num hotel. Quem fez as reservas foi a minha sogra e, no dia em que chegámos, ela anunciou-nos que tinha arranjado uma pensãozinha muito jeitosa, moderna e muito mais em conta do que o hotel, que ela achava um desperdício pouco cristão. Não gostámos muito da ideia, mas como se costuma dizer nestas alturas, o que não tem remédio remediado está. Ela explicou-nos onde era e nós lá fomos, três casais cada um com uma criança de colo. Depois de nos fartarmos de andar a pé por entre ruelas manhosas na parte velha da cidade, lá demos com o local, que tinha a porta fechada. Estranho, uma pensão com a porta fechada...
Batemos. Veio abrir-nos a porta uma, como direi, senhora idosa. Bastante idosa. Vestida com um robe de cetim azul-turquesa, de rolos na cabeça, lábios pintados de vermelho bem vivo e a fumar uma cigarrilha. "Bonito!" - pensámos todos ao mesmo tempo.
Mas não, ainda não tinha acabado. Os nossos magníficos quartos ficavam no último andar sem elevador nem casa de banho, que era comum e ficava ao fundo do corredor. Ao lado da cama, tínhamos um bidé. Lamentámos mentalmente a abençoada ingenuidade da minha sogra, pousámos as malas e fomos à nossa vida, desejando que o dia seguinte chegasse bem depressa para irmos embora dali.
E nessa noite, andaram três casais com três crianças de colo a correr todos os bares da pequena cidade, com as crias a dormir, a fazer de propósito para chegar bem tarde à pensão e estar lá o mínimo tempo possível, adormecer bem depressa e não dar por aquilo que todos achávamos ia ser, sem dúvida, "uma noite animada".

segunda-feira, 15 de junho de 2009

A fronteira é sempre, de certa forma, terra de ninguém. Era aí que estávamos a chegar quando decidimos que era hora de parar e jantar. A escolha que se impunha: Do lado de cá, ou do lado de lá? Acabámos por escolher o lado de cá para disfrutar dum jantar mais simples e leve antes de entrar em Espanha, onde cada refeição significa lubrificar o aparelho digestivo de forma a ficarmos com dotes de faquir por umas horas. Estávamos nestas considerações quando notámos uma casa à nossa esquerda, pintada de cor-de-rosa vivo e com a indicação "RESTAURANTE" em letras bem gordas num anúncio. Parecia limpinha e até tinha algumas roseiras a crescer à entrada, bem diferente das tascas de camionista da zona. Estava escolhido.
Estacionámos ao pé dos vários Mercedes de várias cores. Entrámos e fomos logo conduzidos a uma mesa por uma rapariga loira-oxigenada de vestido brilhante e justo muito decotado. Na única mesa ocupada além da nossa, vários homens de aspecto bruto jantavam já.
- Temos febras grelhadas e salmão grelhado! - anunciou a rapariga do vestido brilhante.
Perante a nossa estranheza informou que não, não havia menu, nem entradas, apenas pão. Justificou-se com o facto de estarem abertos há pouco tempo.
Já arrependidos da escolha feita, lá optámos pelo salmão.
Enquanto esperávamos, distraí-me a analisar a decoração do espaço, coisa que pelos vistos apenas uma mulher se lembra de fazer. Era estranha. Várias réplicas de pinturas clássicas de nus preenchiam as paredes à mistura com fotografias que diziam "Paris mon amour". As cortinas eram floridas e com folhos muito kitsch. Nada era coerente com nada. Depois, começaram a surgir lá de dentro, por uma cortina pesada que dizia "acesso restrito" várias raparigas, todas loiríssimas e todas com indumentárias pouco adequadas ao trabalho num restaurante. Para além de mim, não havia ali mais nenhuma mulher que não fosse loira e não tivesse um vestido justíssimo, curto e com um decote até ao umbigo. "Para quê tanta gente para servir meia dúzia de mesas?" - interroguei-me.
Pela primeira vez, desconfiei que não estava num restaurante.
Alguns minutos mais tarde, uma das raparigas, de saia branca muito curta e top, posicionou-se no meio da sala, pegou num microfone e começou a cantar "Besame, besame mucho...", com voz de bagaço. Enquanto isso, surgiu outra personagem: Um matulão de camisa às flores que era visivelmente o patrão da casa e que elas tratavam por Yuri.
Tive então a certeza que não estava num restaurante.
Aí, pensei claramente duas coisas:
1. Que se lixe, sempre fico com uma história para contar no blogue.
2. Vou acabar de comer bem depressa antes que a gaja se dispa.

domingo, 14 de junho de 2009

- O burro ao contrário! Venham ver o burro ao contrário!
Era isto que berrava um homem à entrada duma tenda montada na aldeia, excitando a imaginação do público. Eram pessoas de vida muito dura que viviam longe de tudo no meio de pedras de granito. Nunca tinham qualquer divertimento a não ser, de quando em quando, um forasteiro nómada, de vida tão dura e difícil com a deles, que passava a exibir numa tenda uma qualquer criatura com uma qualquer deformidade. Por isso só mesmo os que de todo não puderam dispor do tostão necessário para pagar a entrada resistiram a ir ver o que já supunham ser um animal com a cabeça no lugar da cauda ou qualquer outro malvado capricho da natureza.
O homem da tenda recolheu o dinheiro das entradas mas manteve as pessoas todas à espera, que só podiam entrar quando estivessem as suficientes para encher o recinto e todas duma vez. O animal não se podia cansar.
Quando finalmente lhes foi franqueada a entrada, o que eles viram lá dentro foi um burro comum, virado de costas para o recipiente da comida.
Às primeiras tentativas de reclamação, o dono da tenda retorquiu veemente:
- Mas está ao contrário ou não está ao contrário?
É um facto que estava ao contrário.
Nessa mesma noite a tenda partiu para nunca mais se ver naquelas paragens e mais de metade da aldeia tinha abdicado duma quantia importante para as suas economias. Por todo o lado sabia a amargo, mas o orgulho não lhes permitia admitir que tinham sido enganados.
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Esta era mais uma história que o meu avô nos contava, entre brincadeiras. Nunca ficámos a saber se ele era um dos que tinham perdido um tostão para ver o burro. Quando lhe perguntávamos, ele sorria e virava-nos as costas. Melhor ainda, nem nunca ficámos a saber se a história era verdadeira.

sábado, 13 de junho de 2009

Naquela aldeia encaixada entre dois montes, como em todas as aldeias, vilas e cidades de Portugal, ter uma representação da última ceia na sala de jantar era tão fundamental como ter uma mesa. Talvez porque a semelhança da cena com as refeições reais das pessoas que ali viviam fosse tão dolorosamente evidente (pouca comida, muita gente), mas ao mesmo tempo tão reconfortante visto tratar-se de personagens de tal envergadura e ainda assim tão iguais aos mais simples. Naquela aldeia encaixada entre dois montes todas as representações da última ceia eram iguais porque eram pintadas pela mesma pessoa, o único que num raio de muitos quilómetros era capaz de pegar num pincel e transformar tintas em imagens perceptíveis, por isso respeitado por todos. Só que apesar da rudeza do rosto e das mãos, aquele artista, como todos os artistas do mundo, ansiava ardentemente produzir algo fantástico, saído do mais fundo do seu ser, que não se limitasse à cena daquelas treze pessoas partilhando um pão que era corpo e um vinho que era sangue. E foi com essa vontade queimando-lhe na alma que decidiu ousar, acrescentando uma personagem à cena: Ele próprio, a um canto, assistindo como testemunha presente ao mais marcante episódio da civilização ocidental. Quando foi entregar o quadro o coração batia-lhe como quando era criança e ia roubar fruta aos quintais vizinhos, tentando antecipar a reacção do cliente. Quando a obra foi desembrulhada e exposta, encostada à parede mais iluminada da casa, o comprador pôs uma expressão intrigada. Tirou o chapéu e coçou a cabeça e repetiu este gesto mais duas vezes em silêncio, observando. Não sabia ler, nem escrever, nem contar. No entanto algo lhe dizia que qualquer coisa estava errada. Ao fim de uns minutos atreveu-se:
- Oh vizinho... Mas não está aqui um a mais?
- Um a mais? – o pintor aproximou-se com ar clínico
– Não! Estão os que deviam estar!
- Ia jurar que este aqui não devia cá estar... – e apontou o auto-retrato do canto, com um dedo esticado que perfurou o coração do artista.
- Olhe, está certo... – admitiu ele desolado
– Está aí um a mais sim senhores. Mas não faça caso que ele apareceu só para roer uma côdea e quando acabar abala!
O outro voltou a tirar o chapéu e a coçar a cabeça. Depois de alguns segundos que pareceram horas decidiu-se:
- Ora então assim sendo está muito certo. Deixe cá ficar o quadro. Quando ele quiser abalar eu entrego-lhe o dinheiro e digo-lhe que passe lá por casa para lho dar.
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Há uns dias ouvi algures que pior que morrer é ser esquecido. Esta história era-me contada pelo meu avô quando eu era criança. E esta é a minha homenagem ao meu avô José, que construía móveis e brinquedos, remendava sapatos, fazia crescer coisas da terra e contava histórias.
Ele já morreu.
Mas é para não ser esquecido.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Quando comecei a trabalhar, muito novinha ainda, tive vários contratos temporários em repartições públicas, na maior parte das vezes para substituir pessoal durante as férias. Foi a minha entrada no verdadeiro mundo dos adultos fora da família protectora e quase um ritual de passagem.
Lembro-me que uma das coisas que mais me custou aceitar foi o à vontade com que em grandes espaços cheios de mulheres mais velhas se discutia a vida sexual de cada uma e as taras específicas dos respectivos maridos, intercaladas com receitas de bolos e cores da moda. Quando as ouvia contar, a uma que o marido gostava que ela se fizesse de morta, a outra que a obrigava a vestir soutien para copular e ainda a outra que ele exigia que ela lhe chamasse corno e cabrão nos momentos de êxtase, pensava nos meus pais, da mesma idade e tão castos, tão puros, tão normais (eu tinha a certeza disso). Então, mentalmente, punha as mãos a tapar os ouvidos e gritava:
- Lá! Lá! Lá! Lá! Lá! Não estou a ouvir nada! Não estou a ouvir nada!!!

quinta-feira, 11 de junho de 2009

A minha casa de infância, onde agora se erguem blocos de apartamentos, era o símbolo vivo do fim duma era e do começo de outra. Só mais tarde me consciencializei disso.
Era uma casa rural, daquelas com uma porta que só se abria na páscoa para entrar o prior e um portão ao lado que dava para o quintal, sempre aberto a todos os que quisessem vir perguntar se havia um pé de salsa, e que era na prática a entrada da residência.
Ficava à beira duma estrada nacional que atravessava uma aldeia às portas da cidade. Por isso, ainda passavam por lá pachorrentos carros de bois, que deixavam à sua passagem suculentos montes gigantescos de bosta campesina. Também passavam carros, que começavam na altura a vulgarizar-se. E tal como hoje, já os homens da classe média (as mulheres que tinham carta ainda eram motivo de animada discussão) faziam do acelerador uma compensação das suas frustrações diárias. E era essa alternância constante entre bois e máquinas na minha rua que provocava grandes disparos de bosta fresca contra as paredes das casas, cujas fachadas era necessário mandar lavar com frequência.
É verdade. A frontaria da minha casa de infância, sempre cagada por pneus que chiavam por cima da bosta fresca, era o símbolo vivo do fim do Portugal rural do livro da terceira classe.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

O brasileiro à minha frente, pastor duma mediática organização religiosa, fez a abordagem tratando-me pelo nome próprio que me leu no crachat, numa atitude própria de quem é profissional no relacionamento com os outros.

- Olha Dona *****! Eu trago aqui um problema para colocar para a senhora!
- Faça o favor de dizer.
- Eu pertenço a uma religião e, quando o povo não vai à igreja, a igreja vai ao povo.
- Sim?...
- Nós queríamos fazer uma recolha de almas. A senhora poderia me dizer como devo proceder?
- Recolha de almas? Podia ser mais específico?
- É basicamente isso, recolha de almas. Precisa licença?
- Depende. Como vai ser feita essa recolha?
- É assim uma coisa feita num local. Um local que vocês pudessem disponibilizar para a gente. A gente paga o que for preciso, claro!
- Mas que tipo de local? Um local fechado? Um local na via pública?
- Não! Não na via pública! No passeio! (É muito comum as pessoas acharem que via pública é só a estrada e não os passeios)
- Muito bem. E o que pretendem fazer?
- É como lhe disse, recolha de almas.
- Ai a minha vida a andar para trás!- pensei.
- Mas como vão fazer essa recolha. Vão ter algum tipo de instalação? Uma banca? - perguntei.
- Não, nada disso! Apenas uma pequena bancada com prospectos!
- Certo. E vai haver actividade ruidosa?
- Não, imagina! Apena uma pequena aparelhagem sonora e uns jovens entoando cânticos a Jesus! Não pode fazer isso?
- Pode, claro! A liberdade religiosa é um dado adquirido! Mas terá que solicitar uma licença.
- Tudo bem, o que precisa fazer?
- A música é vossa? Pode haver lugar ao pagamento de direitos de autor.
- Imagina! A música não é de ninguém, é de Deus!
- E ele registou a música na SPS? - apeteceu-me perguntar, mas não perguntei.
- Pronto - adiantei - então a primeira coisa que tem a fazer é ir à Sociedade Portuguesa de Autores e informar-se sobre a necessidade ou não do pagamento de direitos para difundir essa música em espaço público. Ao mesmo tempo, requer aqui a licença para o evento.
- Mas não é um evento! - interrompeu ele -É uma recolha de almas!
- Certo, então o senhor requer aqui a licença. Pode utilizar este requerimento, que é o mesmo que usamos para licenciar as procissões. Riscamos aqui o que não interessa, que é a interrupção do trânsito.
- Não! Imagina! Não é uma procissão! Uma procissão é um ritual católico sem qualquer significado! Nós fazemos recolha de almas!
- Certo, então aqui onde diz "Outro. Qual?", o senhor escreve o que entender. Mas deixe ficar um contacto telefónico para o caso de haver dúvidas por favor.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Os folares da páscoa lá em casa e de toda a família, eram feitos pela Tia Arminda. As mulheres compravam farinha e ovos e pagavam-lhe o trabalho. O dia de ir buscar os folares era sempre, se não um dia de festa que isso será um certo exagero, pelo menos um dia diferente. Para chegar à casa da Tia Arminda, que por ser parca de haveres e conforto era pouco visitada pela família do lado de lá da vida, era preciso estacionar, ir a pé por caminhos cobertos de erva daninha e entrar por uma portinha minúscula num muro mais ou menos branco que poucos indícios dava de se tratar da habitação de alguém. Essa portinha dava para um pátio que por sua vez era rodeado por galinheiros, coelheiras, currais e umas construções baixinhas, escuras e toscas a que ela chamava casa. Quando lá chegávamos, já a Tia Arminda tinha pilhas de folares pousados uns sobre os outros à espera dos donos, que depois cada um trazia numa cesta grande de vime.
Lembro-me de o meu pai comentar um dia que não comia daqueles folares por serem feitos com "pouca higiene" e de isso ter constituído um pequeno abalo na harmonia familiar. A minha mãe impertigou-se, com a honra ferida, e discursou durante muito tempo de dedo no ar em riste sobre os irrepreensíveis hábitos de limpeza que tinha adquirido durante a infância com a sua família, pobre mas honestíssima e imaculada. O meu pai, como sempre fazia quando perdia uma discussão pela persistência da parte contrária, abriu o jornal e começou a ler, e a partir desse dia, nunca mais falou na falta de higiene dos folares da Tia Arminda. Quanto a mim, tomei como infalíveis as declarações da minha mãe, que era para todos os efeitos o meu modelo em questões de cuidados com o lar, e continuei alegremente a comer os folares que, ainda por cima, me sabiam muitíssimo bem.
Hoje em dia, quando olho para trás e me recordo de tudo, acho que na verdade aquilo era o que se pode chamar "uma grande javardice". Mas que não me matou, não matou.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

A dada altura da minha vida comecei a ter dúvidas sobre o nível onde me deveria posicionar socialmente. Por esse motivo decidi consultar a minha mãe, que era quem eu achava a pessoa mais indicada para me esclarecer. Por isso fui ter com ela e fiz a pergunta:
- Mãe! Nós somos pobres ou somos ricos?
- Nem uma coisa nem outra - respondeu-me ela - somos remediados.
- Remediados???!!!
Para mim, aquela palavra soava-me a "alguém que toma muitos remédios", pelo que tive que solicitar esclarecimentos complementares. Então a minha mãe explicou-me que remediada era uma pessoa que não passava fome mas que também não podia comer lagosta todos os dias. Por outras palavras, era a forma salazarenta de designar a actual classe média.
Por um lado fiquei aliviada. A hipótese remota de me ser revelado que era pobre causava-me, confesso, alguma angústia. Apesar de todos os livros da escola ensinarem que não havia melhor coisa na vida do que a pobreza, algo no meu íntimo me dizia que isso era aldrabice.
Por outro lado, fiquei um pouco decepcionada, pois ainda tinha no fundo alguma esperança de descobrir que era rica. Pelo menos era uma das únicas quatro crianças da escola em cuja casa havia um frigorífico, uma televisão e uma máquina de lavar roupa. Já para não falar na casa de banho completa com água quente corrente.

domingo, 7 de junho de 2009

Andava a fazer um mestrado daqueles só porque sim. O que recordo hoje é que aquela aula a seguir ao almoço devia ser o que de mais aproximado pode haver com o inferno em vida. O catedrático, um velhinho pequenino e careca com uma voz muito fininha, que devia achar que à teoria crítica bastava existir para ser o deleite de qualquer ser que respirasse, não se preocupava nem um décimo de milímetro em cativar a turma constituída por doze infelizes criaturas reunidas à sua volta numa salinha invulgarmente pequena e sem janela.
Num belo dia em que a temperatura do ar estava demasiado elevada e o tinto do almoço que tínhamos comido em conjunto numa tasca ali perto convidava particularmente ao sono, o velho mestre sentou-se na sua secretária com a maior das calmas como sempre fazia, abriu um livrinho de apontamentos como sempre fazia, pigarreou como sempre fazia e, sem tirar os olhos do plano inferior, abriu desta forma as hostilidades, com a sua vozinha de eunuco de porcelana:
- Hoje... vamos falar... de... Jurgen Habermas...
A aluna mesmo à sua frente, que sozinha tinha liquidado sem piedade uma garrafa de 0,75, com os olhos mais fechados do que abertos, exclamou com a voz em êxtase:
- Poderoso professor, PO-DE-RO-SO!!!
Sim, não foi nada de mais, apenas mais um daqueles pequenos momentos que recordaremos sempre. Mas tudo junto resultou num cocktail suficientemente forte para que toda a gente, com excepção do professor, se risse às gargalhadas durante um bom bocado, literalmente até às lágrimas e sem conseguir parar.

sábado, 6 de junho de 2009

Embora eu me considere uma pessoa do tipo descontraída, estou sempre a concluir que "Ai afinal não sou nada!", quando me deparo com pessoas que são MESMO descontraídas.
É o caso duma colega minha que, tendo-lhe surgido um problema de fungos numa unha do pé, foi a um posto médico.
- A senhora tem que tirar os collants - disse-lhe o médico.
- Ai "sôtor", que chatice! Não me apetece nada! - respondeu ela muito despachada - É que estes collants ficam-me tão grandes que eu até vesti as cuecas por cima para não me caírem!... Olhe, fazemos assim!
E começou a rasgar os collants a partir da ponta, ficando imediatamente com o pé de fora.
Quando nos contou a história nós, com uma grande barrigada de riso, ainda lhe perguntámos:
- Oh mulher! E então como é que vieste embora com os collants rasgados?
- Então? Rasguei também no outro pé e faz de conta que eram uns calções!

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Eram dois homens muito bem dispostos mas que cheiravam pior do que ao pé da jaula dos macacos no jardim zoológico. Cada um deles exibia, quase com orgulho, duas manchas de suor fora do prazo de validade debaixo dos braços sobre as camisas garridas. Vinham pedir licença para organizar uma festa de S. João no bairro social onde moravam.
- A Junta de Freguesia organiza isto em parceria convosco? - perguntei, antevendo uma desagradável surpresa quando chegasse a altura de cobrar o papel - É que se organizar, nós não cobramos a licença.
- Claro que organiza! - berrou logo o mais pequenito, de olhos azuis sob pestanas farfalhudas - Ai dele (o presidente da junta, entenda-se) que não participasse! É ele que paga a sardinha, o tinto e empresta as bancadas! É que se ele dissesse que não, era assim: Em Outubro "pusíamo-lo" já de lá para fora! É que era limpinho! A freguesia tem dez mil eleitores, cinco mil moram no bairro e fazem o que a gente "mandamos"! Isso é que era bom!

Que linda é a democracia!...

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Duas miúdas adolescentes escolhiam um top de 3,90€ para uma delas, numa daquelas lojas giríssimas e acessíveis que não havia quando eu era da idade delas e por isso é que a gente se metia no tabaco e na droga e fazia outros disparates. Agora não sei porque é que eles se metem.

- Porque é que não levas azul?
- Azul não! Quero preto! Preto e mais nada! Porque eu sou assim, quando meto uma coisa na cabeça ninguém me tira!
E, três segundos depois:
- Olha este amarelo tão querido! Ai... se calhar vou levar amarelo.

É tão bom ser volátil à vontade, sem pesos na consciência!

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Contou esta história de forma constante ao longo dos anos. E sempre com o mesmo ar indignado. Por vezes contava-a na presença do marido, como que em busca duma validação e dum apoio. Invariavelmente, ele dava uma risada pálida (uma única, nunca duas seguidas) e continuava a ler o jornal ou apenas a olhar para ele, que era uma maneira de dizer que não o chateassem mais com aquilo. É assim que os recordo.
Contava ela então que quando se casaram, no início dos anos cinquenta, foram passar a lua-de-mel a Lisboa, sítio onde nenhum tinha estado ainda e para onde a viagem representava, naquele tempo, um investimento considerável, em tempo, dinheiro e energia. Contava também que, como vivia na capital uma prima distante que não tinha sido convidada para o casamento, levaram na mala um pouco de bolo de noiva coberto a açúcar glacé e com bolinhas prateadas para a presentear. Quando chegaram a Lisboa era já noite. Não havia auto-estradas nem alfas. Então foram directamente para o hotel e guardaram o bolo no armário, dentro do prato e tapado com um paninho de bordado inglês. Na manhã seguinte saíram para o pequeno-almoço. Quando regressaram, o quarto já havia sido limpo e o bolo tinha desaparecido, bem como o prato e o paninho. "Aquela gente de Lisboa" - rematava sempre ela - "não deve lá ter bolos em condições, aquilo lá nada presta para nada! Por isso roubaram-nos o nosso!"
Quem ouvia a história sorria sempre um pouco, condescendente. Taditos!...

terça-feira, 2 de junho de 2009

Há uns dez anos, mais coisa menos coisa, esteve na minha cidade uma exposição de pintura de Júlio Resende que eu, como não podia deixar de ser, fui ver. Quem lá estava também na altura era alguém meu conhecido ligado à organização que, depois de ouvir os meus parabéns por ter conseguido levar ali aquela exposição, comentou qualquer coisa como:
- Agora o que era ouro sobre azul era ele morrer a seguir.
- O quê?! - perguntei, ainda duvidando de ter sido dito aquilo mesmo que eu tinha ouvido.
- Sim - continuou com o mesmo semblante profissional pragmático - Já viste o que era se a última exposição em vida de Júlio Resende fosse precisamente esta?
Os olhos brilharam-lhe tanto perante a perspectiva que eu achei que ia passar por cima daquilo e continuar a ser sua amiga. Ainda que duma forma doentia, aquelas palavras não eram uma praga dirigida a alguém, eram apenas o desejo desmedido de sucesso profissional. Às vezes as pessoas ficam assim e nem dão por ela.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

O que eu sei é que quando eu era criança não havia Dia da Criança. As crianças eram apenas uns adultos em ponto pequeno que estavam em processo de modelagem e tinham mais era que se calar e tentar passar despercebidas, o mais possível.
A primeira vez que se ouviu falar de tal novidade foi no ano em que eu completei o 13.º aniversário. Embora não fosse propriamente o prototipo da matulona, já usava soutien e pensos higiénicos. Por isso, para mim, crianças eram os meus irmãos e os meus primos que ainda brincavam com legos e liam a Anita.
Não houve comemorações, nem actividades, nem programas especiais de televisão, nem saídas na escola. A única coisa de que me recordo é de terem andado a distribuir uns autocolantes com duas figurinhas de mãos dadas e uma flor, e os dizeres "1 de Junho - Dia Mundial da Criança". Entregaram-me um mas eu, quando vi do que se tratava, empertiguei-me e devolvi-o:
- Crianças? Crianças são os do ciclo!