segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Uma amiga minha contou-me que foi a uma sex-shop e quando estava a ver os vibradores a dona aproximou-se e o diálogo foi qualquer coisa como isto:
- Posso ajudá-la?
- Não obrigada, estou só a ver.
- Se precisar de alguma coisa esteja à vontade.
- Bem... procuro um presente para uma despedida de solteira...
- Ah... então estes vibradores aqui são muito bons! É preciso é ter cuidado e nunca deixar as pilhas lá dentro. Eu por exemplo tiro-as sempre e o meu está impecável! Já a minha filha tinha o hábito de as deixar lá dentro e já teve que levar um novo...

domingo, 29 de novembro de 2009

E diz o homem de boné numa mão, de pé à minha frente, e com uma licença na outra mão estendida na minha direcção:
- Vocês fizeram aqui um colapso!

sábado, 28 de novembro de 2009

A mulher do bolo-doce percorria diariamente as ruas da cidade na sua carrinha branca. Conduzia muito devagar e, quando passava à porta das clientes habituais (como era o caso da minha avó), abrandava ainda mais, buzinava longamente, punha a cabeça de fora e gritava num vozeirão que só ela:
- Bolo-doooooooooooooooooooooce!!!
Dizia-se que, persistente, tinha feito exame de condução trinta vezes até os tipos se fartarem dela e lhe darem a carta de condução.
Ainda hoje, quando ouço alguém buzinar assim, mesmo que certamente não o faça com tão boas e doces intenções, ouço imediatamente na minha cabeça aquele longo pregão da mulher mais teimosa que conheci:
- Bolo-doooooooooooooooooooooce!!!

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

A minha filha tinha três anos quando, numa certa noite, ouvi um grande barulho vindo do quarto dela. Corri para lá e, quando abri a porta, dei com ela deitada no chão, embrulhada no edredon que pendia, choramingando levemente sem saber muito bem o que lhe tinha acontecido.
- Oh filha! O que te aconteceu? - perguntei enquanto a levantava do chão.
- Foi a cama! - repondeu-me ela queixosa - A cama acabou!
É um ponto de vista como qualquer outro...

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O filho único de catorze anos da minha amiga arranjou a sua primeira namorada. A mãe descobriu, como sempre descobrem tudo as chatas das mães. E interrogou-o. Queria saber quem era, como era, qual o nome, que idade tinha. O miúdo, como sempre fazem todos os miúdos, fechou-se em copas e da boca dele não saiu um som. Mas a minha amiga não é das que desistem. O seu instinto maternal à mistura com o cabrão do sexto sentido que dizem que as mulheres têm, levou-a a concluir que se tratava duma colega da equipa feminina de andebol e não perdeu um minuto, tratou de ir assistir ao treino. Já no pavilhão, sentada na bancada a tentar esquadrinhar todas as raparigas que via, na tentativa de descobrir de quem se tratava, foi vista pelo filho que, nervoso, se apressou a ir ter com ela para a convencer a ir para casa:
- Mãe! O que fazes aqui???
- Vim conhecer a tua namorada! Qual é? Qual é?
E o rapaz, completamente à toa, aproximou-se e em surdina, suplicou:
- Está calada! A mãe dela está mesmo atrás de ti!
Sempre discreta, a minha amiga virou-se para trás e deu de caras com uma altiva mulher negra de turbante cor-de-laranja à volta da cabeça. Completamente surpresa, olhou o filho e exclamou sem preocupação nenhuma:
- A tua namorada é preta???

E pronto. Assim ficou o rapaz com uma história que há-de um dia contar aos netos ao serão, no meio de grande risota.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Saímos para caminhar um pouco aproveitando uma noite menos má neste outono que já começa a esfriar. A certa altura, numa rua pouco movimentada apenas com alguns bares e restaurantes, vimos adiante uma mulher muito jovem com aspecto preocupado que pareceu um pouco aliviada por nos ver. Quando nos aproximámos ela abordou-nos. Estava um bocadinho envergonhada, o que reforçou a ideia de que fez aquilo porque estava numa situação limite. Que tinha mesmo que abordar o primeiro estranho que aparecesse:
- Desculpem - disse ela com as mãos encrespadas junto à gola do casaco - eu sei que isto vai parecer um bocadinho estranho mas... podiam tirar aquela aranha do meu saco?
Olhámos na direcção que ela apontava e lá estava, atirado no chão, um saco de viagem sobre o qual passeava despreocupada uma pequena aranha, daquelas que o povo classificou como portadoras de dinheiro.
O meu marido enxotou a aranha com um jornal. Ela agradeceu. Eu, numa reacção primária e imediata, ri-me. Mas arrependi-me logo a seguir.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

De todas as histórias de que me lembro e conto, aos outros e a mim, não consigo identificar nenhuma que tenha contribuído para a minha maior fobia, que só os muito íntimos conhecem. Sei que vou viver assim até ao fim. A recuar, a afastar-me discretamente em determinadas circunstâncias, a disfarçar um horror tão ridículo quanto real, para mim. E não vale a pena andar a vasculhar nos armários da minha vida. Há coisas que se escondem sem remédio. Já me habituei.
Na verdade, como já devem ter visto, isto não é uma história. É só uma tentativa de descobrir se toda a gente tem segredos.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Quando nos mudámos para um apartamento, daqueles com quarto e casa de banho de criada ao pé da cozinha, a maior novidade foi a campainha de chamada. Para os meus pais, aquilo foi um objecto exótico que eles não tencionavam usar, para nós foi um fascínio e fonte de inúmeras e animadas brincadeiras. Uma delas era ver quem conseguia, em menos tempo, percorrer a casa toda a tocar a campainha de chamar a criada até todos os números terem caído no mostrador da cozinha. Eram cinco. Claro que hoje em dia continuamos a brincar, como todos os adultos fazem, mas perdemos a capacidade de abrir um sorriso sincero com estas coisas simples.

domingo, 22 de novembro de 2009

Quando os meus pais não estavam em casa, fazíamos um restaurante. As mesas eram os bancos da cozinha e as cadeiras eram cadeiras mesmo, mas daquelas miniatura, de madeira, que na altura se compravam nas feiras e romarias por cinco escudos. Eu era a dona do restaurante e acumulava com o cargo de cozinheira. Os meus irmãos eram os clientes. Eu ia ao frigorífico e fazia omoletes recheadas de pão ralado, cascas de fruta ou bolachas maria, que eles comiam (de verdade). No fim, eu levava-lhes a conta e eles pagavem-me com notas que nós próprios tínhamos desenhado e recortado. Nesse tempo não havia ASAE nem livros de reclamações.

sábado, 21 de novembro de 2009

Esqueci-me de mencionar. Não estou ainda habituada a estas coisas. Mas este blog fez um ano no passado dia 18. Ainda é pequenino. Mas pronto, já tem pelo menos um aniversário na sua história. Obrigada.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

A minha tia (que era a costureira oficial lá de casa) fazia arranjos, bainhas e passajava as meias. Sim, deitar meias para o lixo num tempo em que as famílias eram numerosas, ainda que mais ou menos desafogadas, era impensável.
O problema com a minha tia é que ela fazia às meias aquilo que eu acho que se pode designar por passajadela de autor. Se a meia fosse azul, ela passajava de vermelho, se fosse amarela passajava de verde. Usava sempre uma cor contrastante, como que a deixar a sua assinatura na obra. Chegava mesmo ao requinte de malvadez de passajar a mesma meia de várias cores diferentes. Eu, pessoalmente, só me apetecia chorar quando pensava que ia ter que tirar os sapatos na aula de educação física, e acho que acabei por bater o record mundial de velocidade entre tirar os sapatos e calçar as sapatilhas só para ninguém ver as obras de arte costuradas nas minhas meias.
Hoje em dia, pensando melhor, acho que a minha tia foi a percursora do estilo "Desigual".

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Cresci num tempo em que não havia pudor de tratar as pessoas pelos defeitos ou limitações que apresentavam. Não por maldade ou intenção de ferir, mas sim com a mesma naturalidade com que hoje chamamos Chico a um Francisco ou Fáfá a uma Fátima. Na minha rua, que era uma rua onde toda a gente se conhecia duma ponta à outra, havia um conjunto de pessoas das quais eu nunca soube o nome de baptismo. Era a "Mãos Aleijadinhas", o "Maneta", o "Gordo das Bicicletas", a "Dos Cães e dos Gatos" e o "Retornado". Que eu me lembre, eram estes.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Ainda certas coisas como os telemóveis e outras coisas do género eram coisas para além da imaginação de qualquer mortal, já o meu pai me dizia que se não aprendesse a trabalhar com computadores seria uma analfabeta como quem naquele tempo não sabia ler nem escrever. Eu não entendia o que ele queria dizer com aquilo porque os únicos computadores que conhecia eram os dos filmes e das séries de ficção científica e, quando me imaginava, qual mister Spock em versão feminina, a descodificar cartões perfurados que saíam de máquinas gigantescas cheias de bobines numa qualquer nave espacial, achava que o meu pai, coitado, não devia andar a bater bem. Apesar disso aquela mensagem entranhou-se-me na cabeça de tal forma que fui uma das primeiras a comprar um spectrum e os respectivos calhamaços que ensinavam linguagem BASIC, divertindo-me então a fazer programas complexíssimos que permitiam dizer qual era o maior de dois algarismos ou fazer uma conta de somar. Mais tarde, assim que tive uma oportunidade, fui aprender MS-DOS, UNIX, e depois a versão mais primitiva do Windows. No fundo, vivia um bocadinho preocupada com a ideia de vir a ser uma analfabeta apesar de saber ler e escrever sem erros.
Há muito que pude concluir que o meu pai, muito antes do tempo, estava cheio de razão. Só me espanta que ele próprio não tenha qualquer interesse em aprender informática e só se digne a passar por um computador a uma distância segura.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Depois de aconselhar uma senhora sobre a melhor estratégia para resolver um problema burocrático que lhe atormentava a vida, ela mostrou-se agradecida e comentou:
- A senhora está mais apática nestas coisas não é?
Surpreendida, tentei entender:
- Desculpe?!
- Mais apática - repetiu ela, e depois explicou uma vez que era óbvio que eu não atingia aquele nível mais elevado de vocabulário - Quer dizer que está mais a par!

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Telefonou-me uma senhora que me perguntou se me podia fazer um inquérito de satisfação de cliente. Era do concessionário da marca do carro que eu comprei há algum tempo. Acedi. Com pouca vontade mas acedi. Tenho por hábito pelo menos tentar respeitar o trabalho dos outros. Ela fez-me talvez umas vinte perguntas, não menos, e no fim de cada uma delas, religiosamente, colocou-me todas as hipóteses de resposta: "Plenamente satisfeito, muito satisfeito, satisfeito, pouco satisfeito, nada satisfeito". Eu tentei calcular mentalmente o número de vezes que aquela mulher tem que pronunciar a palavra "Satisfeito" num dia de trabalho. Na verdade, para ela, a palavra "satisfeito" deve estar completamente esvaziada de sentido, de tanto a repetir. Como se fosse um conjunto de sílabas sem significado algum.
Pensei que finalmente tinha encontrado alguém com um emprego pior que o do papel higiénico.

domingo, 15 de novembro de 2009

Num dos momentos menos fáceis da minha vida, daqueles em que tive que puxar pela cabeça e fazer qualquer coisa para pagar as contas, dediquei-me ao já velho negócio das explicações. Tinha o décimo segundo ano mais um ano de universidade em letras, não tinha sido má aluna, tinha aprendido qualquer coisa, talvez pudesse também ensinar qualquer coisa aos outros. E foi assim que decidi colocar um anúncio numa montra. Os clientes não tardaram a aparecer mas, para meu desespero, queriam explicações de matemática, aquela coisa pavorosa que tanto me tinha custado a levar sem dor até ao nono ano. Mas como é uso dizer-se, a necessidade aguça o engenho. Aceitei. Peguei nos livros de matemática e fiz-me à tarefa de aprender sozinha. Eu, os meus botões e o meu desespero, no meio de fórmulas e algarismos, a tentar compreender algo que antes só tinha compreendido pela rama dos dez valores. E mal.
Ao fim de alguns dias já tinha conseguido desvendar alguns dos diabólicos segredos da lógica. E ensinei-os aos meus pupilos seguindo os mesmos raciocínios que eu própria tinha feito para lá chegar, cheios de aproximações ao mundo concreto. Na verdade, foi um sucesso. Com algumas aulas minhas qualquer miúdo conseguia, se não ser um Einstein, pelo menos tirar notas positivas nos testes.
Foi nessa fase da minha vida que concluí brilhantemente que o problema dos professores de matemática... é saberem demasiado daquilo.

sábado, 14 de novembro de 2009

A minha profissão assemelha-se muitas vezes à de barman, mas sem álcool. Quando uma pessoa nos abre o coração e a vida sem o auxílio do torpor que a bebida causa, é porque o quer fazer. Porque de alguma maneira estranha confiou em nós para nos contar um segredo, ou uma angústia, ou uma alegria. Muitas vezes, sentimos que temos que respeitar aquele momento como uma confissão.
Por isso, por sentir que seria quase uma violação, não fui capaz de contar aqui a história de emigração que me contou hoje aquela mulher russa que insistiu em preencher sozinha o formulário quase sem conhecer o português escrito e que constatou que depois de seis anos a trabalhar como operária já não sabia reproduzir a caligrafia irrepreensível de quando era professora. Às vezes fico assim. Acontece.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

EU: Bom dia!
ELA: Bom dia.
EU: Eu estou a falar da ****** *********. Estou a ligar para lhe comunicar que foi aprovado um pedido seu para colocação duma garrafa gigante na via pública para fins publicitários.
ELA: Ah, obrigada!
EU: Vou só precisar de uma informação, para calcular o valor da taxa a cobrar.
ELA: Sim, faz favor de dizer.
EU: Queria saber quantos metros quadrados o objecto vai ocupar.
ELA: Minha senhora, o objecto não pode ocupar metros quadrados!
EU: Não?! Porquê?
ELA: Porque é redondo!
EU: Mas é possível calcular a área dum objecto redondo.
E depois de alguns momentos de silêncio esmagador do lado de lá:
EU: Vamos fazer assim, diga-me a medida do diâmetro.
ELA: Diâmetro?! Que diâmetro?
EU: Pronto, diga-me então a medida do raio.
ELA: Mas qual raio?
EU: Olhe, diga-me só quanto mede a garrafa dum lado ao outro.
ELA: São nove metros de altura.
EU: Sim, e de largura?
ELA: Quatro.
EU: Obrigada. Bom dia.
ELA (visivelmente enfastiada): Bom dia.
E desligou. E eu quase que a conseguia imaginar a contar a toda a gente como são burros os funcionários públicos.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Naquele tempo os restaurantes chineses não eram comuns e eu nunca tinha ido a nenhum. Aliás, na minha cidade ainda não havia nenhum. Assim, como estava fora em viagem, vi um e resolvi experimentar.
Sentámo-nos e logo apareceu uma mocinha muito baixinha e de olhos amendoados dar conta do que havia nesse dia para almoçar. Havia vários pratos de frango. Azar. Se fosse vaca, ou peixe, tudo tinha corrido bem, mas frango??? De cada vez que a pobre criatura pronunciava "felaaango" duma maneira que eu nunca tinha ouvido na vida a não ser em rábulas revisteiras, eu ria-me que nem uma saloia. E sem conseguir evitar. É chato. Muito chato.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Quando os meus filhos eram pequenos, o meu pai, já reformado, levava-os a dar uns passeios pelos arredores. Com uma particularidade: Assim que chegavam à aldeia ou vila mais próxima, a uns dois ou três quilómetros de distância, dizia-lhes que tinham chegado ao Japão. Deste modo, os meus filhos passaram uma parte das suas infâncias convencidos que o Japão era um lugar com um largo, uma casa do povo, um café e uma capela, onde se chegava em menos de um quarto de hora.
Um dia fizemos as nossas primeiras férias no Algarve. O meu filho tinha na altura uns cinco anos e passou as cinco horas da viagem toda a massacrar-me, de dez em dez minutos, com a pergunta: "Ainda falta muito?"
Quando chegámos finalmente a Vilamoura, o puto estava mais do que desesperado e jurava a pés juntos que nunca, mas nunca mais, mesmo sem ter experimentado as praias nem as piscinas, iria ao Algarve. "Mas porquê?" - perguntei-lhe. "Isto é mais longe do que ir ao Japão!" - respondeu-me ele, agastadíssimo.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Uma história que eu sempre achei estúpida mas não podia dizer era a de S. Martinho. Naquele tempo não podíamos dizer que achávamos imbecil uma coisa que vinha no nosso livro de leitura. Mas a mim, ninguém metia na cabeça que Deus era uma pessoa de bem e muito menos que tivesse os cinco litrinhos aferidos. Cabe na cabeça de alguém que quem tem poder para tudo e mais alguma coisa...

a) deixe que faça frio e chova em cima dum mendigo quase nu?
b) espere que um cavaleiro corte ao meio uma capa que deve ter sido super-cara para logo a seguir fazer parar a chuva e abrir o sol?

Deus anda a gozar com isto tudo? Se fosse filho do meu pai e da minha mãe, já estava a levar um ralhete! Dos grandes!

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

A minha mãe estava a arranjar o jantar.
- Mãe! O que é isso?
- Carapau.
- De corrida?
- O quê?!
- Se esse carapau era de corrida.
- Não...
- Os de corrida têm um número nas costas?
- Não há carapaus de corrida!
Não foi exactamente como no dia em que descobri que não havia Pai Natal, mas também foi com um certo grau de decepção que descobri que o animal de que o meu pai mais falava... não existia.

domingo, 8 de novembro de 2009

Perguntei à minha mãe:
- Quando for grande vou ter bilau? - Bilau era a palavra usada para pénis lá em casa.
- Não! - respondeu a minha mãe horrorizada, talvez a antecipar o estigma de ter uma filha que viesse a querer ser camionista.
- Mas o P**** tem! - retorqui, implorando por uma explicação lógica para as diferenças óbvias entre mim e o meu irmão mais novo.
- Mas tu não!
As crianças às vezes são umas incompreendidas. Eu só queria mesmo perceber se estava muito atrasada no desenvolvimento em relação ao meu irmão porque ele tinha nascido há poucos meses e tinha bilau, enquanto que eu já tinha quase cinco anos e ainda não tinha!

sábado, 7 de novembro de 2009

Passei por uma fase em que queria ser a Anita. Sim, a Anita das histórias, que tinha a vida que todas as crianças desejavam. Ia sozinha à feira popular, com dinheiro no bolso, ia à praia, deixavam-na em casa à vontade para mexer em tudo, incluindo o fogão e demais electrodomésticos, e à vontade para se vingar como quisesse do irmãozinho mais novo. A Anita tinha um jardim só dela e aulas de dança onde fazia pontas sem nenhum esforço. Tinha uma quinta com porquinhos que não cheiravam mal e patos que não corriam como loucos atrás das pessoas. Ia às compras sem a mãe, o sonho mais louco que se podia concretizar...
Sim, a seguir a aparecer-me o Peter Pan à janela a convidar-me para ir à terra do Nunca, o que eu mais queria era mesmo ser a Anita!

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Quando cheguei ao ciclo preparatório tinha uma disciplina chamada matemática que, segundo os adultos da minha família, era uma coisa moderna. Foi então com bastante expectativa que assisti pela primeira vez a uma dessas aulas. Coisas modernas era o que a gente queria, porque de ensaios de rancho e de catequese já estávamos mesmo fartinhos. E na verdade as suspeitas confirmaram-se. O professor passou uma hora inteirinha a desenhar rodas no quadro e a dizer que aquilo eram conjuntos. Um conjunto de cinco bolinhas, outro de três estrelinhas, depois mais outro de dez triângulos... "É canja!" - pensei eu, habituada a problemas que metiam sempre agricultores que plantavam batatas e as vendiam e nós tínhamos que adivinhar por quanto e quantos quilos - "Isto vai ser como decorar o Pai Nosso na catequese, ou ainda mais fácil!"
Bem me enganei! Acabada a treta dos conjuntos vieram outras, mais complicadas e ainda mais inúteis do que as das colheitas agrícolas!

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Na minha escola havia prémios para as melhores alunas no final do ano e o podium era decidido pelo número de vintes que se tinha tido nos ditados e nos exercícios de aritmética (nesse tempo ainda não se chamava matemática). Os desenhos, os lavores e as redacções não contavam porque estavam a meio caminho entre o trabalho e a brincadeira. Mesmo assim, só se podia fazer redacções sobre a vaca, a primavera, as férias grandes e o Natal, os lavores só variavam entre as colagens (uma modernice), as construções com fósforos, o tricot e o ponto-de-cruz, e os desenhos só se faziam quando a professora tinha acordado muito bem disposta.
Houve um ano em que, por um mísero vinte, um único, fiquei em segundo lugar e ganhei um livro da Anita em vez dum globo terrestre que rodava e tinha os nomes dos países e as capitais. Acho que foi na segunda classe. Como eu gostava de decorar capitais! Acho que era mesmo a coisa que eu mais gostava de decorar a seguir aos reis.
Nesse ano senti-me derrotada como se me tivessem posto umas orelhas de burro e me tivessem mandado para trás da porta virada para a parede durante uma hora inteira. Ainda que no tempo em que eu andei na escola já não se pusesse as orelhas de burro a ninguém. "É anti-pedagógico" - explicou-nos uma vez a professora. Por isso limitava-se a pôr-nos de castigo viradas para a parede que não tinha janela sem nos podermos mexer nem olhar para trás.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

A avozinha, sem ninguém lhe perguntar nada mas entusiasmada pelo calor da festa de aniversário, resolveu desvendar um dos segredos mais bem guardados da família:
- Sabes quantos anos faço hoje? Setenta e nove!
A neta manteve-se calada.
- Sei o que deves estar a pensar - continuou a avó - deves estar a pensar que eu sou mesmo velha!
- Não - pensou a neta - estou a pensar que és mesmo mentirosa.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Foi a minha segunda experiência literária. Depois dum conto que escrevi como trabalho de casa na disciplina de português, resolvi abalançar-me numa novela. E mais uma vez também, num tema de que não sabia nada, não tinha qualquer experiência nem fazia a menor ideia do que fosse. Assim, de peito aberto e com catorze ou quinze anos de existência sobre o planeta, compenetradíssima no meu papel de escritora, inventei e passei ao papel uma história de adultério. Melhor, achava eu, que as do Eça. Era sobre um homem que contratava um detective particular para seguir a mulher, que ele desconfiava ser-lhe infiel. No fim, descobria-se que ela andava justamente com o detective contratado. Escrevi tudo num caderninho e achei-me um pequeno génio. Depois escondi com muito cuidado. Se alguém lá em casa lesse aquilo ia ser o fim do mundo.
Meu Deus, porque é que eu não guardei estas coisas?

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Estão a ver aquelas histórias entre o número de circo em que o palhaço pobre tropeça e cai e a anedota da Dica da Semana? Aquela situação clássica em que uma pessoa muito, mas mesmo muito surda, entende tudo ao contrário? Não tem piada nenhuma, dizem vocês. Pois não, respondo eu. Mas isso é na teoria. Na prática, quando perguntei ao senhor idoso à minha frente "Onde é a sua casa?", e ele, com a mão em concha na orelha me respondeu "O quê? Se eu já fui à caça?", eu tive que pedir licença, retirar-me lá para trás e dar com a cabeça na parede até perder a vontade de rir.

domingo, 1 de novembro de 2009

Um dos meus tios jogava futebol num clube da terceira divisão. Eu sabia que ele jogava porque ouvia as conversas e via-o de vez em quando com um penso na cabeça ou um olho negro. Ele explicava, ou que tinha caído, ou que tinha levado com uma pedra atirada da assistência e que se destinava ao árbitro. Essa parte eu percebia, e ia concluindo que o futebol não tinha tanta piada como brincar com as minhas bonecas. A parte que eu nunca entendia era quando ouvia alguém perguntar-lhe:
- Jogaram em casa hoje?
E ele respondia:
- Jogámos.
Como é que a minha avó, tão ciosa das suas coisas e da limpeza e da arrumação, deixava uma quantidade de matulões entrar assim à vontade e jogar à bola dentro da casa dela?