sábado, 31 de janeiro de 2009

Há qualquer coisa nas pessoas simples que me agrada. Não as simples no sentido de toscas, mas as simples no sentido de descomplicadas.
Como uma moçoila que eu conheço, que justificou desta forma o facto de não querer sair do trabalho à sexta-feira de uniforme vestido:
- Então e se eu, antes de chegar a casa, encontro um gajo bom que me dá troco? Como é? Ainda tenho que ir a casa mudar de roupa antes de sair com ele? Sabes perfeitamente que eu sou fácil!

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Fui submetida há pouco tempo a uma pequena cirurgia. Tudo correu bem, excepto um pormenor: Como tenho umas mãos muito pequenas, muito frágeis (quando era pequena nem conseguia apanhar a bola de andebol nas aulas de educação física), os enfermeiros não conseguiam acertar-me nas veias para me pôr o soro. Por isso, tiveram que me picar várias vezes, sempre nas costas das mãos e sempre sem sucesso porque as veias rebentavam. Agora, ando com uns belos duns hematomas em ambas as mãos, como se fosse uma agarrada que já gastou os braços de tanto se picar. Não tem piada.
Fartinha de explicar a toda a gente o que me aconteceu, resolvi mudar a versão da história para lhe dar um sentido mais grandioso e um toque de mistério. Quando uma conhecida minha me apareceu a perguntar-me (mais uma!) -"O que é que te aconteceu às mãos???"- tive um rasgo de misticismo e expliquei-lhe:
- São estigmas. De vez em quando aparecem-me e eu não tenho explicação para isto. Há pessoas que têm isto, sabes? São as chagas de Cristo. - e fiquei a olhar para ela sem me rir nem nada.
Não sei o que ela pensou. Mas o ar estúpido com que ficou faz-me pensar que talvez vá nascer um novo boato a meu respeito. Promete!

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Fui uma aluna da instrução primária exemplar, aplicada, que ia acreditando em tudo o que me vendiam. Acreditava no império português, nos heróis e na grandiosidade da pátria. Sabia (e ainda sei) cantar o hino nacional sem desafinar e rezar o pai-nosso. A primeira atitude rebelde que tive, e nem sabia que a estava a ter, foi quando a professora nos ensinou, solene, que os homens são muito mais úteis à sociedade do que as mulheres. Senti-me ferida, como se me tivessem acabado de insultar com um nome muito muito feio que eu não tinha autorização para pronunciar. Falei, pela primeira vez, sem pedir autorização para tal. Disse à professora que não era nada disso, que nós éramos capazes de fazer tudo o que os homens faziam. Que queria estudar e ter um profissão e não ser inútil. Que ela não devia dizer aquelas coisas porque também era mulher e era professora. E não, não o disse por desafio que eu não sabia o que era, disse-o porque fiquei mesmo muito ofendida. A professora mandou-me levantar e ficar de pé ao lado da secretária, que era nesse tempo a posição oficial em quer éramos interrogados na escola. Depois perguntou-me:
-A menina já viu uma mulher general?
-Não minha senhora.
-A menina já viu uma mulher juiz?
-Não minha senhora.
-A menina já viu uma mulher ministro?
-Não minha senhora.
-A menina já viu uma mulher construir casas? Barcos? Automóveis?
-Não minha senhora.
-Então cale-se e não perturbe a classe.

Apeteceu-me chorar. Durante o resto dia e por mais alguns anos.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Comprei a minha primeira câmara de vídeo quando elas ainda eram uma novidade. Era enorme, comia cassettes VHS, pouco dava em troca e custou muito, muito dinheiro para o meu orçamento. Mas valeu a pena porque me diverti imenso com ela, e acho que os meus filhos também. Nos fins-de-semana e nas férias, construíamos pequenos argumentos, desenhávamos os créditos em folhas de papel cavalinho que um deles ia passar à mão, discretamente e, como a tal dita máquina não era tão boa que desse para adicionar música aos filmes, tínhamos que a ter a tocar no próprio ambiente de filmagem quando o guião a exigia. Quantas vezes tivemos que recomeçar um filme porque alguém tocou à campaínha ou porque tocou o telefone!
Ainda hoje não perdi esta capacidade de ser absolutamente infantil sem recorrer a nenhum esforço. Não sei se é uma virtude ou um defeito. Mas às vezes penso que quando for velhinha, naquela idade em que nos tornamos criancinhas mesmo sem querer, não sei o que será de mim, não sei não! Ninguém me vai aguentar!

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Um dos momentos altos da minha infância teve lugar quando descobri os materiais que a minha mãe tinha guardados desde o tempo do curso de formação feminina. Quando os meus olhos se depararam com aqueles calhamaços cheios de pequenas amostras de pano que ilustravam as diversas formas de coser botões, os diversos pontos de bordado, as diversas técnicas de fazer bainhas e debruados... descobri que andava a ser enganada há imenso tempo. Então, no tempo dela, estudar era isto???!!! Cortar paninhos?! Coser botões?! E a mim obrigam-me a decorar todos os reis de Portugal por ordem, dão-me nas orelhas quando não acerto os problemas de aritmética e fazem-me saber as linhas de comboio, as montanhas e os rios??? Naquele dia decidi que ia fazer uma reinvincação, queria ir para uma escola daquelas! Logo depois, decobri que já não havia. Pois pois! O que é bom acaba depressa!

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Era uma quinta imensa, que há muitos anos não via caseiro nem cuidados, com uma casa rural no meio. O mato crescia por todo o lado e as plantas trepadeiras subiam as caleiras e as árvores. O ar de abandono conferia ao local um aspecto de cenário natural para um filme fantástico. Era aí, rodeada de objectos com memórias longínquas, que vivia uma das famílias mais singulares que tive a oportunidade de conhecer: A mãe viúva, já octogenária, e três filhas entre os cinquentas e os sessentas. Duas solteiras e uma vergonhosamente abandonada pelo marido, que com ela não tinha ficado mais do que dois dias, nunca ninguém soube porquê. As quatro, carrancudas e ciosas das suas virtudes, transformavam definitivamente o lugar já de si inóspito numa lenda viva. Não havia alma na aldeia que dali se aproximasse sem se benzer, receosa das histórias que se contavam sobre as "quatro bruxas". Mas houve sim, uma alma forasteira que se aproximou, movida, não pela fama de feitiçaria, mas pelos rumores de ali haver fortuna. Contra todas as expectativas, um solteirão vindo de longe seduziu a filha mais nova e logo casou com ela. Ninguém queria acreditar que a um homem assim, de cabelo pintado, gravatas brilhantes e que era visto a fumar charutos na "esplanada" do tasco da aldeia, tinha sido franqueada a entrada da residência misteriosa.
Algum tempo depois do casamento, quando lá fui uma vez em visita (sim, eram minhas tias por afinidade), a matriarca mostrava-se agastada e sofredora. Mal nos abriu a porta, segredou-nos que nos ia mostrar uma coisa. Levou-nos por corredores labirínticos até chegar à sala principal da casa:
- Vejam-me só isto! - disse ela enquanto apontava para uma parede, desviando o olhar.
De facto, a mesma estava coberta de calendários daqueles que vemos nas oficinas e nos camiões, com mulheres nuas e sorridentes, de todos os formatos, tamanhos e cores, por entre as imagens sacras e as fotos antigas de família. O mesmo acontecia na casa de banho, na cozinha e em vários quartos.
- Que mal fiz eu a Deus para me entrar agora isto pela porta dentro? - insistiu ela benzendo-se - E a ******* que não tem mão nele!...
Perante aquele espectáculo, eu não consegui fazer mais do que acenar com a cabeça dando-lhe razão e rir-me por dentro até às lágrimas com o ridículo da situação. Os restantes presentes, também. Aliás, durante alguns anos, não se falava doutra coisa em serões e reuniões familiares.

domingo, 25 de janeiro de 2009

Em tempos de menor fartura, a minha avó fazia filhoses. Pedaços fritos de farinha com ovos e açúcar cujo odor forte enchia a casa toda e fazia a felicidade de cinco filhos pequenos. Na vizinhança, nem todos se podiam dar ao luxo de ter, de vez em quando, filhoses. Por isso, quando sabiam que a minha avó as tinha feito, apareciam em bando, como quem não quer a coisa, fazendo visitas de cortesia. Lá em casa, estavam todos avisados: "Não digam a ninguém que há filhoses!"
E não se dizia, era um segredo de família! Só que, durante a confecção, já iam aparecendo pessoas, que naquele tempo ir à casa dum vizinho contar uma novidade ou pedir salsa, era tão natural como hoje ir ver a caixa do correio e trancar-se em casa a seguir. A minha mãe e os meus tios, excitados com a antecipação do doce lanche, abriam a porta, e a primeira coisa que diziam, fosse quem fosse que lá estivesse e antes que pudesse abrir a boca, era:
- Não! A minha mãe não fez filhoses!

Ainda hoje, a frase "a minha mãe não fez filhoses" é usada na nossa família como private joke, sempre que alguém está a tentar esconder algo muito evidente.

sábado, 24 de janeiro de 2009

Sair do trabalho demasiado tarde, quando os outros já saíram todos, tem destas coisas.
Quando há uns dias tive que ir ao arquivo depois da hora, o quadro eléctrico já estava desligado. Como não há janelas naquele lugar, nem um raiozinho de lua havia para iluminar fosse o que fosse. Mas como conheço muito bem o percurso até ao que queria, optei por fazer o que tinha a fazer às escuras. Depois de lá estar há alguns segundos, os meus olhos começaram a habituar-se à escuridão e já conseguia vislumbrar os contornos das prateleiras mais altas à minha volta. Enquanto ia apalpando para encontrar o espaço onde tinha que meter um processo, passou-me pela cabeça uma cena de filme de série B, em que a mocinha indefesa é atacada de surpresa, no escuro, por um monstro mutante construído a partir de pedaços de coisas que encontraram na arrecadação dos estúdios.
E a verdade é que, quando atrás do local onde eu estava, algo caiu ao chão, apanhei um daqueles cagaços e só não corri dali para fora porque estava com medo de partir a cabeça numa estante.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Estão a ver quando a gente chega a casa tarde, naquela hora que já se confunde com o cedo, e com a cabeça a pedir ao corpo: "Deita-te! Deita-te!"? Quando a gente se deita depois de sumariamente ter tirado a roupa toda duma vez, calças, cuecas e meias tudo numa só viagem de mãos, e a seguir dormir como se tivesse entrado em coma? Quando no dia a seguir (ou umas horitas depois), acordamos para a vida sem nos lembrarmos de quem somos, pegamos nas mesmas calças do dia anterior que lá estão a um canto, vestimos mais uma ou duas coisitas e saímos para a rua a correr?
Pronto. É porque se um dia virem alguém de pé num autocarro, com cara de quem levou porrada e nem sabe de quem, e com umas cuecas sujas penduradas, a sair misteriosamente da cintura das calças, foi isso que lhe aconteceu.
Claro que, devido a causas naturais, isto é um acidente mais frequente nos homens.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Eu comecei a desconfiar dele assim que o vi dispor as compras por ordem de grandeza e separadas por grupos em cima do tapete rolante da caixa do super-mercado. O ar de fastio que fez quando pôs o separador entre as coisas dele e as minhas, como se houvesse ali algum risco de contágio nefasto, deu-me a certeza: O homem era um cromo.
Mas o pormenor mais interessante de todos só veio depois. Quando a funcionária começou a passar as compras dele e a pô-las dos sacos, ele começou a entoar um hino enquanto tamborilava com os dedos na caixa registadora. Desconheço a origem do tema musical, mas fazia lembrar ao longe uma marcha de escuteiros ou da falecida mocidade portuguesa. Ele continuou até ao fim e terminou com uma imitação vocal de epílogo instrumental. De percussão. Enquanto a funcionária, envergonhada, tentava que os seus olhos não se encontrassem com os dele em nenhum momento... como se houvesse ali algum risco de contágio nefasto.
Tenho que dizer, é mentira. Isto não aconteceu. Mas foi o que eu imaginei que podia acontecer quando olhei para trás e vi um tipo penteadinho e de óculos reluzentes, ao melhor estilo "presidente de associação de pais que acumula com leigo da paróquia".

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Do alto dos seus oito anos ele decidiu que queria ser músico. Já tinha passado a fase de querer ser médico, bombeiro e homem do lixo, este último pela motivação de ordem prática da dispensa de estudos. A professora da segunda classe era uma chata, mas a da terceira equilibrou as vontades.
Naquele dia, acordou com uma música na cabeça. Uma música novinha, inédita, nunca ouvida antes. Ou seja, um original da sua autoria. Então, com medo de se esquecer da melodia e do compasso e com isso passar ao lado da grande carreira que ambicionava, resolveu registá-la por escrito. Pegou no caderno da escola e num lápis rombudo e, seguindo aquilo que ouvia mentalmente, foi escrevendo, fluente como Mozart. Ao mesmo tempo, ia pensando, que palermice tão grande terem inventado aqueles símbolos todos, com bolinhas e pauzinhos em cima de linhas tão finas, quando era tão fácil registar uma música sem ser preciso nada disso. Que estúpidos!
No dia seguinte, quis reproduzir para os amigos o tema musical que tinha criado. Como era de esperar, já não se lembrava dos sons de que ele era feito. "Mas não faz mal" - disse ele excitadíssimo - "tenho tudo aqui escrito!"
Pegou no caderninho e abriu-o. E aí, sem que ninguém percebesse porquê, o seu sorriso aberto dissipou-se numa nuvem. À sua frente, tinha uma folha onde a palavra "pam" se encontrava repetida, a lápis rombudo, dezenas de vezes seguidas... embora agora não fizesse qualquer sentido.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Por favor, digam-me que toda a gente, em alguma altura da sua vida, fez isto. Há muitos anos, no início da minha vida profissional, quando ainda tinha filhos pequenos que me faziam a cabeça em água de noite e de dia, saí para trabalhar de saia comprida de pregas em xadrez azul-escuro e beje, blusa e pullover azul-escuro por cima... e de pantufas azul-turqueza debruadas a cor-de-laranja.
Quando entrei na repartição, tive aquela estranha sensação de estar demasiado confortável. Olhei para baixo e vi a minha figura. Sentei-me na secretária, amuei, e recusei-me a levantar dali até à hora do intervalo de almoço. Durante toda a manhã os colegas tiveram que me trazer tudo: Livros, papéis, carimbos, tudo, enquanto se riam por dentro que nem uns perdidos e por fora só com os cantos dos olhos.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Sou do tempo pré-pedagógico em que nos ensinavam a história de Portugal como se fosse um filme de acção, uma batalha entre os bons (nós) e os maus (os outros), em que os bons saíam sempre vitoriosos. Para isso era necessário, claro, mentir e omitir, o que não tinha importância nenhuma perante os mais altos valores do patriotismo. Os episódios mais violentos do nosso passado colectivo eram sempre exaltados e descritos de forma extremamente gráfica, ou para nos glorificar ou (se fosse caso disso) para nos vitimizar dando-nos razão. Eu, devo dizê-lo, gostava de história. Acreditava em tudo e achava que nenhum povo era tão glorioso como o nosso. Quando descobri, mais tarde, que não era verdade, tive um desgosto tão grande como quando me disseram que eram os pais que compravam os brinquedos no Natal, mas isso é matéria para outra história.
Hoje, gosto particularmente de recordar a forma como eu imaginava os episódios sangrentos que a professora nos contava. Quando aprendi, por exemplo, que no dia 1 de Dezembro de 1640, o secretário da regente de Portugal foi fenestrado pelos bravos revoltosos, nunca me passou pela cabeça que o tivessem atirado duma altura superior ao rés do chão. Depois, ele levantava-se empoeirado e com a peruca de lado, como nas comédias do Vasco Santana, sacudia-se... e fugia a correr até Espanha, assustado.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Estive há tempos numa daquelas formações em que nos calha um formador do tipo "sambinha duma nota só". Daquelas em que, ao fim da primeira meia-hora, metade da sala já cabeceia travando bruscamente quando acorda a meio da queda, e outra metade tenta ocupar-se com alguma coisa que a impeça de dormir, como por exemplo sentar-se numa posição desconfortável ou ir discretamente à casa de banho. Eu, optei por fazer desenhos no manual fornecido.
Algum tempo depois, porém, perante a inevitabilidade de ter que executar as tarefas que supostamente tinha ido aprender, vi-me na contingência de lançar o isco a uma reunião com um especialista na matéria para "tirar dúvidas". Ele acedeu, prestável e simpático, mas pediu-me para levar comigo o manual da formação. No dia e hora combinados lá fui eu, cantando e rindo, sem sequer me lembrar da bonecada vária que tinha criado.
Então, quando ele começou a desfolhar o manual e se sucederam imagens de monstros desajeitados com a língua de fora, plantas carnívoras engolindo homenzinhos assustados, teias habitadas por aranhas com cabeças humanas e árvores de natal arraçadas de bichos vários, ele não se conteve:
- Esta formação foi chatinha. Não? - disse-me com um sorriso indisfarçável e provocador.
E eu, zangada por ter deixado tão estupidamente que aquilo acontecesse, e sem saber muito bem como me defender, perante uma árvore de natal com orelhas desenhada a BIC azul por cima dum decreto-lei, enterrei-me ainda mais:
- É que... estávamos quase no natal. Era o espírito da época...

sábado, 17 de janeiro de 2009

Ali no fim do mundo, numa tasca escura com cheiro de vinho azedo e mesas cobertas de oleado seboso, onde os viajantes param para tomar café e juram nunca mais voltar, entrou uma família bizarra saída dum BMW luzidio. O pai de bigode e camisa aberta no peito a mostrar a medalhinha, a mãe gorda de cabelo vermelho em formato capacete e os fedelhos com aspecto chunga de subúrbio, fizeram a primeira abordagem a falar francês muito sonoro. Para que nenhum dos presentes duvidasse da sua categoria. A dona do tasco, também ex-emigrante, ao que se concluia, respondeu igualmente em francês.
E ali no fim do mundo, numa tasca escura com cheiro de vinho azedo e mesas cobertas de oleado seboso, os clientes tiveram pelo menos o espectáculo improvável de ver pessoas com aquele ar divertido, naquele sítio irreal, a comunicar numa língua que associamos a tudo menos àquele ambiente.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

As mais velhas mulheres da cidade chamam-lhe a "Manequim". Não com simpatia mas com desdém a disfarçar a inveja. De facto nota-se, apesar da idade avançada, que ela deve ter sido bafejada com muitas "qualidades" quando jovem. É alta e a silhueta ainda irrepreensível. As rugas sobrepõem-se a um rosto grego e o cabelo ainda é de qualidade considerável.
As mais velhas mulheres da cidade, dum tempo em que na cidade todos conheciam todos e todos fiscalizavam o comportamento de todos, contam que ela se despia à noite no quarto com as cortinas escancaradas e que, a essa hora, religiosamente, havia uma horda de homens na rua em frente à sua casa, apinhando-se para ter um vislumbre do que à altura era raro ver-se. Contam também que ela fazia de propósito, pormenor a não descurar como agravante do crime.
As mais velhas mulheres da cidade terminam sempre a história com um "Mas por causa disso nunca se casou, bem feita!", que é o que lhes alivia a alma atormentada pela inveja.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Contava-me a minha ex-sogra, senhora de muitas virtudes e prendas, que no tempo dela é que era! Mas isso não traz novidade porque é o que contam todas e quem sabe, contaremos nós também um dia àqueles que já não vamos conseguir compreender. A novidade é que para ela, o "é que era" passava por haver maridos que respeitavam tanto as suas esposas que, para as poupar a actos sórdidos e indignos, recorriam a prostitutas. Que essas sim, estão ali para servir de esfregona ou do que calhar. É o castigo de Deus por não serem honestas.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Antigamente havia muitos. Hoje em dia, curiosamente, apesar da maior leveza dos costumes ou talvez mesmo por isso, quase não se vêem. Ou então andam mais discretos.
Falo dos detectives particulares, aqueles profissionais que imaginamos de chapéu e golas levantadas à Humphrey Bogart quando somos crianças, e que descobrimos que mais não são do que perseguidores pagos de cônjuges adúlteros quando crescemos um bocadinho.
Lá no bairro onde morei há muitos anos falava-se duma senhora que nunca ninguém viu e hoje tenho dúvidas de que tenha mesmo existido, cujo marido tinha contratado um desses detectives para a perseguir, desconfiado que andava das múltiplas idas ao cabeleireiro e à modista; e que depois dele lhe ter assegurado que a esposa era a mais fiel e virtuosa das esposas, veio a apanhar a ambos "com a boca na botija". Quer dizer, acho que mais ela do que ele.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Fiquei fascinada e não consegui parar de olhar. A senhora que estava à minha frente a ser atendida voltou-se para ir embora e tinha umas asas no rabo. Depois ficou mais um pouco no balcão em frente, de costas para mim e, juro-vos, ela tinha asas no rabo Senhor!
Mais concretamente, nuns jeans super-justos sobre uma camada de gordura e celulite digna de se candidatar ao guinness, brilhavam umas asas brancas aplicadas em relevo, cujas articulações saíam ali, do centro (esse sítio mesmo que vocês estão a pensar) e depois se prolongavam em angélicas asas que dobraram junto das ancas e chegavam à parte de trás dos joelhos. Foi uma visão tão intensa que eu pensei por momentos ter atingido a minha derradeira vocação de vidente!

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Foi naquele sítio do costume. O tal onde não há talões nem outras complicações. Comprei, entre outras coisas, um saquinho com três malaguetas. Dirigi-me à caixa e a funcionária, quando pegou nele fez um ar assim como se tivesse visto alguma coisa muito, muito, muito aberrante e exclamou: - "Credo! Que raio é isto?! Que pimentos tão esquisitos!".
Eu respondi, muito discreta: - "São malaguetas." - e ela procedeu à busca, carregando nas teclas enquanto soletrava ma... la... gue... Parou com ar satisfeito. Olhou para mim e perguntou: - "Malaguetas verdes, não é?" - Eu, tendo em consideração a hipótese de a senhora sofrer de daltonismo, levantei o saco onde brilhavam três malaguetas vermelhas e luzidias e respondi: - "Bem... não."
"Pois é" - cotinuou ela muito despachada - "verdes não são." - e depois de reflectir um pouco:
- Mas são malaguetas. Portanto pelo menos metade vai certo!
Não discuti. As verdes até eram mais baratas.

domingo, 11 de janeiro de 2009

Ela tinha reputação de "possuída" ou de "morada aberta". Dizia-se que os que já tinham morrido lhe tomavam o corpo com a alma. Que por isso, tinha a faculdade, embora não consciente, de falar com vozes de homens, mulheres e crianças diversas, de alterar a sua própria fisionomia e de se ausentar estando presente, que era quando os olhos deixavam de ter qualquer expressão e se iam embora. Dizia-se que era possuída por espíritos bons, de familiares que, à falta de outro meio, assim vinham dar notícias e dizer que estavam bem, mas também por espíritos maus. E estes já não eram de família e só os mal-intencionados se atreveriam a insinuar tal, não fosse o medo respeitoso que ela impunha só por existir e ser assim. Quem sabe os espíritos não se revoltariam contra terceiros, que ninguém acredita em bruxas mas que as há, há!
Tive um dia a oportunidade única de assistir a uma das frequentes tomadas de posse do corpo por um espírito, quando tinha uns sete anos. Devia ser um dos maus, porque ela gritou, esbracejou, esperneou e disse palavras que eu não estava autorizada a pronunciar sob pena de levar pimenta na língua. Todos os adultos presentes juraram a pés juntos que tinham visto A, B ou C, ou ouvido distintamente a sua voz ou sentido de alguma forma a sua presença. Eu, embora tenha ficado sem dúvida impressionada pela intensidade dramática da cena, não consegui distingui-la das cenas de pancadaria a que costumava assistir entre a lavadeira da minha avó e a empregada dos correios que ela dizia que lhe andava a enfeitiçar o marido.

sábado, 10 de janeiro de 2009

Como não costumava utilizar transportes públicos, não sabia muito bem como fazê-lo. Por isso, no dia em que precisei de apanhar o autocarro para o centro da cidade, preparei-me como se fosse fazer um exame. Vi os horários, certifiquei-me deles e comprei bilhete com antecedência. Uns cinco minutos antes da hora, saí de casa para fazer a pé os cerca de 200 metros que separavam a minha casa da paragem. Contudo, alguma coisa tinha corrido mal. Assim que fechei a porta do prédio, pude ver que o autocarro... já estava na paragem. Bolas! Corri desalmadamente, mas mesmo desalmadamente, para o apanhar. Enquanto corria e me aproximava, pude ver que as pessoas lá dentro olhavam todas para mim com um ar muito admirado. Pudera! - pensei eu - Devem estar a fazer apostas consigo próprias sobre a minha capacidade para chegar a tempo.
Finalmente atingi o objectivo. Completamente esbaforida com a corrida (nunca fui grande atleta), entrei desenfreada no autocarro e suspirei de alívio. Tinha conseguido! Sentei-me e preparei-me para a viagem. Toda a gente continuava a olhar para mim como se eu fosse uma fugitiva dum hospital psiquiátrico e isso irritou-me.
Mas logo percebi o que se passava. O autocarro continuou ali parado durante cinco minutos e saiu à hora. Isso acontecia todos os dias. Era a paragem onde o autocarro acertava o horário.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Embora seja um projecto que já abandonei por não haver lugar para mim no mercado de trabalho, eu já dei aulas. Num determinado ano em que fiquei colocada só com ensino recorrente nocturno, lá para meio do segundo período comecei a reparar que era a única professora que ainda tinha alunos mas não percebia muito bem porquê. A princípio limitava-me a achar que eles gostavam mais da minha disciplina. Tudo ficou claro na minha cabeça quando uma colega me disse, com ar paternalista:
- És mesmo estúpida! Tens a mania de ser boazinha e eles assim não desistem. Vais ter de trabalhar até ao fim do ano, vais ver!
Trabalhei, de facto, até ao final do ano lectivo.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Lembro-me quando, há muitos anos, fui ao cinema com colegas de estudo ver “Os Amigos de Alex”. Há tanto tempo que ainda não se falava de sida. Entre os meus acompanhantes estava um rapazote do interior, vindo directamente da actividade de lavoura para a escola da cidade. Às tantas, quando uma das personagens disse:
- Sei que o meu marido me é fiel. Tem medo do herpes.
Ouviu-se, no silêncio da sala, esse colega a perguntar:
- Herpes?! Quem é o Herpes?
Toda a gente se riu. Mas tenho a certeza que ele não era o único a não saber o que era o herpes. Mas como diz aquela velha máxima: “Não faças perguntas idiotas. Espera que um idiota as faça por ti e depois ouve a resposta”.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Hoje, ensinei uma pessoa a pôr um “out of office” no Outlook. Mais tarde, ouvi-a dizer, apesar de ter visto aquilo escrito à frente dos olhos durante uns cinco minutos, que podia ir descansada porque já tinha um “atovobsky”.
E pronto, foi giro.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

A Madalena era a mais burra. Mesmo assim com as cinco letras: BURRA. Nesse tempo não fazia mal chamar burros aos meninos que não conseguiam aprender as coisas na escola, pelo contrário, os professores dispunham até dumas orelhas compridas de papel que serviam para os pôr de castigo, sujeitos à chacota de todos os colegas. Dispunham também duma cana comprida para bater nas orelhas e duma régua grossa de madeira para bater nas mãos. E batiam. Os pais, não se incomodavam com isso. No entanto, os professores também tinham por vezes momentos de bondade, mostrando que eram adultos compreensivos. Foi o que aconteceu quando a minha escola ensaiou uma peça de teatro de Natal para apresentar no salão da paróquia. A professora, de boazinha que estava devido à época do ano que se atravessava, escolheu a Madalena para o papel de pastor. A Madalena! Foi um escândalo. A Madalena não era capaz nem de dizer a tabuada dos dez, que era a mais fácil de todas! Mas assim ficou, a Madalena era o pastor e tinha uma deixa durante toda a peça. Quando passasse por nós a menina que fazia de estrela, coberta de papel de lustro amarelo e com uma cauda, ela devia levantar o braço e dizer para os outros, que estariam deitados no chão: Pastores, erguei-vos depressa, que a boa nova é chegada! Já nasceu o Deus Menino! Só que em todos os ensaios, todos, a Madalena nunca foi capaz de dizer a sua deixa, nem completa nem na altura certa. Aquilo prometia.
No dia da peça tudo corria bem até à altura da entrada da Madalena. As que faziam de pastores lá estavam deitadas no palco, a fingir que dormiam, mas da boca da Madalena, nada. Imóvel e sorridente para o público, nem se deve ter lembrado que estava na altura de dizer qualquer coisa. As outras, lá iam levantando a cabeça e dando-lhe sinais, aos quais ela respondia com um sorriso ainda maior. O público olhava intrigado, sem perceber o que se passava ali. Até que a Madalena, por fim, percebeu que era a sua vez. Então, levantou o braço, e disse:
- Pastores! Erguei a boa nova! Depressa!

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Muito cedo na vida, ela descobriu o seu destino: Nunca seria rica à custa dum homem. Podia até encontrar um pote de ouro no fim do arco-íris, acertar na lotaria, descobrir que era herdeira do Bill Gates, mas juntar-se a um homem milionário para beneficiar com isso... nunca conseguiria. Faltava-lhe aquele talento que algumas mulheres possuem e cuja essência ela desconhecia por completo nem compreendia como nem onde se adquire.
Todos os (poucos) homens ricos que tinha conhecido e com os quais tinha tido um vislumbre de pré-envolvimento romântico, mal começavam a exibir os carros, a falar das viagens e dos barcos, a vomitar teorias sobre rolex's e piscinas cobertas e a arrotar opiniões sobre golfe e hotéis de 5 estrelas, metiam-lhe nojo e davam-lhe voltas no estômago. Paciência.

domingo, 4 de janeiro de 2009

Morava num apartamento no coração da cidade. Por isso, o sonho da minha avó era comprar uma "quintinha", onde pudesse criar animais e cultivar feijões, milho, batatas e couves. Nunca chegou a fazê-lo, por isso também nunca chegámos a saber se teria mesmo vocação para se levantar de madrugada um dia após o outro para trabalhar o campo, sem perder a perserverança nem a pachorra. Mas isso era um pormenor.
Um belo dia, quando se passeava de carro pelos arredores com a filha mais velha (a minha mãe) e a bisneta mais nova (a minha filha), viu ao longe uma placa perto duma casa pobrezinha e velha a cair de podre rodeada de terra com uma hortinha. Não se conseguia decifrar completamente o que dizia, mas a primeira palavra era certamente "vende-se". Quis lá ir. Apesar do caminho se apresentar íngreme, insistiu. Era aí que finalmente cumpriria o seu sonho. Estacionaram o carro o melhor que puderam, entre silvas e lama, e puseram-se a caminho a pé. Entusiasmada, a minha avó já fazia planos sobre o restauro da casinha e a sua ampliação, a cor da pintura exterior e o jardinzinho à porta.
Entretanto, à entrada do casebre já se tinha posto de atalaia um homem rude, com uma barriga flácida a sair por baixo duma camisola interior de cavas e um palito que mastigava ao canto da boca que mal se notava, coberta pelo bigode. Curioso, via aproximar-se um grupo de duas mulheres e uma criança com ares de dondocas de cidade, sem perceber muito bem o que quereriam dele.
A uns dez metros, porém, elas conseguiram ler toda a mensagem escrita na placa que tinham vislumbrado ao longe: Vende-se isca e serradela.

sábado, 3 de janeiro de 2009

No laboratório de análises, eu esperava ao balcão enquanto a funcionária, ao telefone, tentava explicar a um senhor uma coisa pelos vistos complicadíssima:
- Sr. António, nós não temos resultados da urina!
- ...
- O senhor fez a entrega da urina aqui no balcão?
- ...
- Se fez a entrega da urina aqui a uma funcionária!
- ...
- Ah! Xixizinho!

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Estão a ver aquele lugar-comum segundo o qual os homens, quando entram num centro comercial, têm que saber de antemão o que vão comprar e onde, dirigem-se à loja que pretendem sem tomar atalhos, compram sem olhar duas vezes nem fazer a vistoria ao resto da mercadoria e depois vêm embora pelo mesmo caminho sem olhar para montra nenhuma nem entrar em mais sítio nenhum?
Pois. É verdade.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Numa sessão de saldos, vi passar por mim duas senhoras. Uma delas, a que trazia calças cor-de-rosa justíssimas sobre um rabo com personalidade independente, explicava à outra:
- Lá onde eu trabalho, as únicas que usam estas porcarias são as coitadas. Contínuas e isso, estás a ver?

Hipótese 1: Ela já foi contínua.
Hipótese 2: Ela é gozada por todas as contínuas.
Hipótese 3. Ela é, simplesmente, estúpida.