terça-feira, 31 de março de 2009

Domingo de manhã com sol. O primeiro desta primavera, tão bem vindo. Abri a janela que dá para o pátio e uma vizinha que eu não conheço porque não conheço nenhuma das centenas de pessoas que vivem ali, nos apartamentos, acompanhava o filho pequeno nas brincadeiras. Era uma criança com uns quatro anos de idade que se passeava em círculos monótonos numa mini-scooter daquelas movidas a bateria que os avós compram às crias dos filhos no Natal. O barulho que fazia assemelhava-se ao de uma varinha mágica numa sopa densa. A mãe acompanhava-o sempre ao seu lado, a pé, olhando o rebento com enlevo.
Depois de algumas voltas a bateria acabou e a criança mostrou-se levemente irritada. A mãe explicou-lhe que "Agora o bebé está cansado e tem que ir para casa papar!". Ela pegou na scooter em peso e carregou-a de volta, dando a mão ao filho que choramingava.
Imaginei-o daqui a alguns anos, gordo, mimado e mal-educado, a ver televisão sentado no sofá.
Mas nós não temos culpa. Se há uns anos atrás, quando eu tinha aquela idade, éramos vários irmãos e partilhávamos um triciclo que fazíamos andar a força de pernas, agora um filho é uma coisa única e preciosa, que se cria à custa de muito sacrifício. Não sacrifícios materiais como antes, mas sacrifícios de viagens entre a creche, o jardim de infância, os ATL's e as actividades extra-curriculares, sem tempo para parar nem para ficar em casa a brincar enquanto a mãe faz compotas e crochet.

segunda-feira, 30 de março de 2009

Conheço-a e convivo regularmente com ela há algum tempo. Mas foi só muito recentemente que fiquei a saber que também conheço o marido. A partir duma conversa que tivemos, foi só juntar dois e dois. O marido, que eu já não vejo há uns vinte anos, é um puto filho duma colega minha que a mãe costumava levar lá ao serviço de vez em quando. Como nunca mais o vi, a imagem que tenho dele é a dum rapazito de mochila a pedir uns trocos à mãe para ir comprar um gelado antes de ir para a explicação. Muito mau aluno e sempre com uma bola debaixo do braço. A mãe mandava-o cumprimentar as senhoras e lá vinha ele, muito contrariado, distribuir os beijinhos da educação. É assim que eu conheço o marido da V******.
À medida que a conversa evoluía, eu ia tendo mais e mais certeza que se tratava daquela pessoa. Mas não lhe disse nada. Não lhe disse - "Ah mas eu conheço o teu P****!" - nem nada disso. Nem tive coragem. Depois das conversas maliciosas que já tivemos as duas, em que ela me confidenciou os actos menos ortodoxos que pratica com ele e que inclui uma depilação com cera quente que lhe ia arrancando pelo menos uma de duas coisas, só me passava pela cabeça a exclamação - "PEDÓFILA!!! ANDA A PAPAR O PUTO DA C****! NÃO ACREDITO!!!".
Claro que o puto da C**** tem agora uns 30 anos, mas eu não consegui ultrapassar a imagem do garoto inocente de mochila às costas. Lamento.

domingo, 29 de março de 2009

Ouvi esta conversa num café.

- O padrinho da minha irmã morreu.
- Ai sim? Coitado! Era novo?
- Não! Já era velhote!
- E ela vai ao funeral?
- Não sei! Acho que devia! Mas ela é que sabe!
- Ele dava-lhe bons folares? Se lhe dava bons folares devia ir!

sábado, 28 de março de 2009

O que é que vocês pensavam se uma filha vossa vos dissesse qualquer coisa deste género:

- Sabes que isto de ter uma mãe ou um pai que vai à escola "peixeirar" dá logo outro estatuto! Têm-te logo outro respeitinho!

E quando vocês perguntassem:

- Mas estás a falar de quem?

Ela respondesse:

- De ti!!!

A Miepeee ofereceu-me mais um selo! Obrigada!

sexta-feira, 27 de março de 2009

Andava no nono ano de escolaridade e estávamos nos anos setenta. Recolhia convictamente assinaturas para a "Associação de Amizade Portugal-China" e acredtava na revolução e na sociedade sem classes. Tinha umas botas da tropa e usava camisas velhas do meu pai sem colarinho. Era o que se poderia chamar uma "Marxista Inocente", nesse tempo havia imensos, como agora há dreads, freaks, góticos e outras espécies. Também eles não sabem muito bem o que procuram e um dia hão-de rir-se ao de leve das suas recordações de adolescência, sabendo que a vida, afinal, não é assim tão séria porque ninguém sai vivo dela. É normal e saudável.
A professora de português mandou escrever um pequeno conto e eu escrevi. Escrevi-o com tanto fervor revolucionário que no fim até chorei comovida. Era sobre uma criada de servir analfabeta a engravidada pelo patrão imperialista que se suicidava num final grandioso e dramático, provando por A mais B que só uma destruição total dos valores capitalistas e a sua substituição pelo comunismo poderia salvar a humanidade. Acho que tinha visto essa história aqui e ali aos pedaços. Talvez nos "Verdes Anos", talvez nos discursos dos camaradas, talvez no Corin Tellado uns anos antes.
O que eu sei é que o meu conto foi um escândalo no liceu. Não porque a mocinha morria, não pela ideologia de extrema-esquerda mal atamancada, mas por causa de duas linhas em que eu descrevia a ida do patrão ao quarto da criada a meio da noite. Cena totalmente saída da minha imaginação fervilhante que na realidade nunca tinha praticado tal coisa.
A professora disse-me:
-Escreves bem, mas tens que ter cuidado com os conteúdos.
E deu-me suficiente mais.

quinta-feira, 26 de março de 2009

Era urgente explicar-lhe que, em Portugal, não devia dizer às crianças que lhes ia ensinar a fazer broches. Mas ela não se contentou com a proibição, como é evidente era crescida e inteligente e quis saber porquê. Decidi-me. Comecei por explicar em voz alta que para nós, portugueses, um broche é um acto... E acabei a explicação em voz muito baixa, quase sussurada ao ouvido, porque havia mais gente na sala. Usei palavras bem escolhidas, como se saídas dum livro científico. Nada de ordinarice. No final, era abriu muito os olhos de espanto e exclamou em voz alta:
-Sério???!!! Broche é bôquetchi???!!!

quarta-feira, 25 de março de 2009

Vejo-o a dar entrevistas na televisão e lembro-me que uma das maiores vergonhas que passei na vida é da sua responsabilidade.
Era um jogo de futebol do mundial, entre a selecção nacional e os Estados Unidos. Sim, aquele país onde os únicos onze gajos que sabem que o futebol pode ser uma coisa diferente de andar de capacete aos berros e chocar violentamente uns contra os outros se juntam e formam uma equipa. Esse mesmo. Que risco poderá então haver em jogar com os Estados Unidos? Para mim, o risco era zero. Era o mesmo que eu ir correr os cem metros contra uma lesma coxa!
Devidamente medidas então as probabilidades de risco, tomei a decisão. Não gosto especialmente de futebol, não consigo perceber o que é um fora de jogo, mas nesse dia resolvi partir para a festa pura e dura. Maquilhei-me de verde e vermelho, vesti-me de verde e vermelho, estava de arrasar, e vim para a rua ver o jogo num ecran gigante numa praça da cidade. À minha volta havia uma multidão de gente revestida de verde e vermelho dos pés à cabeça como eu. Muitas com aqueles chapéus que, fora do contexto, são simplesmente inaceitáveis.
O jogo começou e a malta preparou-se para abrir. Fazer uma purga. Alguns minutos depois, os Estados Unidos já tinham marcado um golo e nem eles sabiam como tinham conseguido. Quando chegou ao 3-0 as pessoas na praça (eu incluída), começaram a acreditar que tinham morrido numa catástrofe natural e já estavam no inferno. A angústia da derrota passou, assim, a angústia existencial: O fim é isto? Então é muito mau!
Mas não. Isto não foi o pior. O pior foi quando eu tive que regressar a casa naquela figura e passar por um monte de gente conhecida. Isso foi o pior.

terça-feira, 24 de março de 2009

Lembro-me dos rebuçados de meio tostão como se fosse hoje. Vinham em várias cores, embrulhados em pedaços de papel transparente. Embora tivessem todos o mesmo cheiro intenso adoçicado, nós conseguíamos distinguir no paladar e na imaginação um sabor correspondente à cor que os corantes químicos lhe tinham conferido.
-Hmmm! Este é laranja! - dizíamos se fosse amarelo forte.
-Este é de morango! - para os vermelhos.
E assim do mesmo modo para os verdes de maçã, os roxos de amora e os amarelo-pálido de limão.
Um dia destes passei na rua por uma senhora muito perfumada, como se tivesse caído dentro dum frasco gigante de perfume e se tivesse debatido por horas até conseguir sair de lá.
Aos olhares enjoados de todos contrapôs-se o meu sorriso infantil de surpresa:
- Rebuçados de meio tostão! - exclamei cheia de nostalgia. E fiquei a olhar para ela, que não deve ter percebido que lhe estava a fazer um elogio.

segunda-feira, 23 de março de 2009

São um casal de ciganos. Morenos como só eles e com uma criança nos braços. As outras dez ainda não chegaram pois são mesmo muito jovens. Não obstante, ela exibe já uma barriga proeminente de parideira profissional.
Aproximam-se com aquele ar de quem vai puxar pelo nosso lado sentimental. Nós pomo-nos logo à defesa. Pensamos: - "Tudo o que eles disserem é mentira e o que não disserem também." - e preparamo-nos para o embate. Ela é que fala. Nos casais ciganos, apesar de tudo o que pensamos sobre eles, é sempre ela que fala. Penso que faz parte da estratégia de provocar comiseração. Quem não tem pena duma mãe miserável? Mas como ia dizendo, ela fala, com o semblante mais sombrio que consegue arranjar. Conseguimos até ver as sobrancelhas que descem pelas faces como numa Pietá.
- Oh minha senhora! Nós estamos sem casa para morar! Estamos na rua com o menino, ai! Vocês têm que nos dar uma casinha que a gente estamos na rua! Moremos todos na mesma casa e não pode ser, que é um grande sofrimento! As minhas cunhadas batem-me e não gostam de mim! A minha sogra bate-me! Pôs-me na rua hoje!...
Ele, silencioso, continua ausente como se não fizesse parte do filme. A funcionária explica que tem que fazer o pedido por escrito para que posteriormente uma assistente social vá verificar as suas condições de habitabilidade. Depois de muita relutância, ela convence-se a escrever. Ele nem se mexe. Ela começa a rabiscar coisas indecifráveis e pergunta:
- Como é que se escreve "sofrimento"?... Posso escrever "Não aguento viver neste sofrimento" não posso?
Acenamos que sim.
- Como é que se escreve "aguento"? Ai minha senhora, nós somos pobres e não temos assim muitos estudos.
Não têm assim muitos estudos deve querer dizer que fizeram o segundo ano do ensino básico e não desistiram logo no primeiro.
Finalmente, entregam-nos um papel ilelível, que nós traduzimos em informação anexa.
Vão embora.
Antes de sair, porém, ela lembra-se de algo importante. Vira-se para trás e informa-nos, muito convicta:
-Olhe que quando a senhora do social lá for, a minha sogra deve de dizer que sou eu que lhe bato a ela e às filhas! Mas é mentira!
-Está bem - anuímos já sem conseguir disfarçar um sorriso.
Ele hesita mais um pouco.
-Olhe! É melhor não irem lá! Elas que me liguem! E saca dum telemóvel topo de gama, melhor do que os nossos todos juntos, para que copiemos o número.

domingo, 22 de março de 2009

Contam as pessoas mais velhas da minha cidade este episódio:
"Que uma mulher casada e adúltera costumava ir para os campos com o amante, de carro. Mais tarde regressavam de carro, com ela sempre no porta-bagagens, pois naquele tempo uma mulher casada não podia ser vista sozinha na companhia de outro homem que não fosse o marido. Contam também que um dia ele se esqueceu. Chegou e foi beber uns copos com os amigos. Quando ela começou a sentir falta de ar dentro do porta-bagagens, começou a bater e a gritar para que alguém abrisse. Logo se juntou um grupo de curiosos que chamou a polícia. Quando a mala do carro foi aberta ela foi descoberta e, bem feita, exonerada da família e da sociedade bem do burgo."
Esta história eu sempre ouvi contar às pessoas mais velhas da cidade com um sorriso malicioso nos lábios, ou então, pior, rindo-se a bandeiras despregadas como se de uma anedota se tratasse. Eu, que sou uma incorrigível romântica que chora no cinema, embora nem sempre pareça, nunca me consegui rir. Ouvia a história com parcimónia e, no meu íntimo, endeusava aquela mulher. Num tempo em que a pequenez da terra e das cabeças das pessoas tornavam tão arriscado ter aventuras, se eles o faziam é porque tinham uma verdadeira paixão. Daquelas paixões arrebatadoras que tudo desconhece a não ser a si própria. Para mim, eles eram Pedro e Inês, Tristão e Isolda, Romeu e Julieta...
Tão bonito e tão dramático!

sábado, 21 de março de 2009

#6
Gosto de anchovas, alcaparras, caril, diversos molhos, quanto mais picantes melhor. Gosto de paelha cheia de pó amarelo. Gosto de chocolate para culinária, gosto de pão quase queimado e duro e gosto de bolachas moles. Gosto de carnes vermelhas mal passadas, carneiro cozinhado em vinho tinto, pato. Gosto de favas. Gosto de malaquetas e cebolas em pickles. Gosto de pimentos padron grelhados com sal grosso.
Há poucas coisas que eu não consigo comer, caracóis, lampreia e enguias por exemplo, e duma maneira geral tudo o que rasteje ou me sugira qualquer coisa de rasteje. De resto, marcha.
Antes de conhecer o meu actual marido, nem polvo comia. Tinha ventosas. Com ele, habituei-me a ser a rainha das lambonas. E, de vez em quando, a fazer longos períodos de dieta rigorosa. Tem que ser.

sexta-feira, 20 de março de 2009

#5
A minha filha: A M… copiou tudo por mim no teste e a professora descobriu. Depois castigou-me só a mim.
Eu: A culpa é tua!
A minha filha: Minha???!!! Mas não fui eu que copiei!!! Juro!!!
Eu: Acredito. Mas deixaste copiar, não devias.
A minha filha: Vais-me dizer que quando andavas no liceu não deixavas copiar!...
Eu: Claro que não! Nem no liceu nem na universidade. Cada um que estudasse para si. Eu queria ter as melhores notas, e para isso não podia deixar copiar.
A minha filha: Eras gananciosa por notas???!!!
Eu: Era! E ninguém copiava por mim!
A minha filha: E se alguém te pedisse, como era? Como é que encaravas a pessoa daí para a frente?
Eu: Não dizia que não nem que sim. Não deixava copiar e depois podia dizer que a professora estava sempre a olhar, por exemplo.
A minha filha (chocadíssima): Mas tu és do mais sonsa que há!!!...

quinta-feira, 19 de março de 2009

#4
As mulheres da minha infância eram santas que transformavam pão em rosas no seu regaço por temor ao marido, santas famintas a que a mãe de Deus aparecia em cima duma azinheira com mensagens de resignação, santas que mandavam construir hospitais para os pobres e conventos para os frades porque eram rainhas, santas que morriam por amor, santas, santas, santas.
Embora possa parecer pouco credível a quem tenha nascido uns anos depois, a verdade é que quando eu me apercebi que as mulheres podiam ser outras coisas sem ser santas já sabia ler e escrever seguidinho. Apercebi-me com personagens de ficção como a Pippi das Meias Altas e a Barbarella, que para mim eram tão reais como eu, e depois com celebridades, como a Suzy Quatro e outras de que já nem lembro o nome.
Apaixonei-me por essas mulheres, mas não no sentido sexual do termo. Apaixonei-me por aquilo que elas eram e que eu queria ser um dia. Enchi as paredes do meu quarto de pré-adolescente com imagens dessas mulheres e regozijei-me por saber que não era obrigatório ser santa nem passar o dia a limpar e arrumar coisas como as que eu conhecia.
Não me recordo de ter tido um único ídolo do sexo masculino naquela idade parva em que se tem ídolos.

quarta-feira, 18 de março de 2009

#3
Quando me vi na iminência de ir viver com alguém, mas assim, viver mesmo, partilhar a cama durante toda a noite e não só uns bocados, que é como quem diz, casar… uma das minhas primeiras preocupações foi o meu sono.

- Mas gostas mesmo de mim?
- Sim, claro…
- Tens a certeza? Mesmo mesmo a certeza?
- Mesmo a certeza.
- Tens mesmo a certeza que és capaz de continuar a gostar de mim depois de veres os meus piores defeitos?
- Tenho mesmo a certeza. Mas que defeitos tão grandes podes tu ter que eu ainda não saiba?
Enchi o peito de ar como se fosse coragem em estado gasoso:
- Acordo muito mal.
- Mas muito mal como? Mal disposta?
- Mais ou menos.
- Mais ou menos?...
- Assim mais do tipo… inconsciente.

E é verdade. Todas as manhãs sou acordada com muito jeitinho, como se fosse qualquer coisa que se pode partir. Primeiro a luz, depois a televisão, baixinho. Depois uns beijinhos e uns bons dias não muito bruscos para não me provocar um avc fulminante. Algum tempo depois já consigo soltar uns sons, parecidos com miados, ainda não palavras. Mais tarde descubro que estou numa cama, na minha casa, na cidade tal, no país tal, no planeta terra e, mais duro que tudo, tenho que ir trabalhar. E vou.
O fim-de-semana é uma coisa tão boa!

terça-feira, 17 de março de 2009

#2
Consigo ir para a cama e dormir sem qualquer sentimento de culpa sabendo que deixei a louça por lavar, o carro estacionado na curva, uma conta importante por pagar, o IRS por fazer ou o lixo por pôr no contentor. Só não consigo dormir descansada se souber que me desapareceu uma meia na lavagem da roupa. Procuro na casa toda, debaixo dos móveis, desmonto o filtro da máquina de lavar, desvio os tapetes, remexo as gavetas, vou lá fora fazer a vistoria ao logradouro comum… Desaparecer uma meia é, para mim, o maior sinal da incompetência duma pessoa. Como é que pode desaparecer uma meia? Evapora-se? Foge de casa? Esconde-se? Disfarça-se de cueca? Não, uma meia só pode desaparecer se nós falhámos em qualquer fase do processamento!
Mas não é só! Tenho outras regras bem definidas:
1.As meias devem ir para dentro da máquina, religiosamente, aos pares. Embora as estúpidas se separem lá dentro, isso já não é responsabilidade minha!
2.As meias devem sair da máquina de lavar agarradas ao correspondente par.
3.As meias devem ser penduradas a secar aos pares, agarradas pela pontinha do pé e com os calcanhares virados para fora, bem esticadinhas.
4.As meias devem ser dobradas com os calcanhares bem direitinhos e dobrados para o lado do pé, não do cano!
5.As meias devem ser dobradas de modo a ficarem com a forma de meias dobradas e não de bola de trapos para jogar futebol na rua. Já despedi empregadas por isso!
Toda a vida achei isto normal… Até ver que o meu marido se ri de cada vez que enuncio uma destas regras.

segunda-feira, 16 de março de 2009

#1
Sou da geração das Anas. Só no ciclo preparatório havia uma turma e meia, mais coisa menos coisa, só de Anas. O conduto é que variava, mas não por aí além. Havia Anabelas (tudo junto ou em duas partes), Anas Paulas a Anas Cristinas, basicamente. As Vanessas e Tatianas vieram mais tarde. Eu, aparecia na segunda turma, a seguir à primeira metade, com um nome que indicava que eu bem podia ter nascido um século antes. Para a minha percepção na altura, podia até ter nascido logo a seguir aos dinossauros! Aquando das primeiras apresentações, no início do ano lectivo, quando os colegas me perguntavam: - “E tu, como te chamas?” – E depois comentavam – “Ah! É um nome de família?”, eu sentia-me tão infeliz como quando me aparecia uma borbulha no meio da testa de um dia para o outro, e tentava esboçar uma explicação qualquer para aquela tragédia, que nunca me saía convincente.
Como em todas as gerações de adolescentes desde que a humanidade é humanidade, ser diferente do grupo, seja no nome ou seja na marca de roupa, no formato do nariz ou no vocabulário que se usa, é suficiente para desenvolver uma depressão.
Muito mais tarde descobri que o meu nome tem origem grega e nasceu nos mitos do Olimpo, cujos habitantes são maiores que os mortais. Reconciliei-me com ele. Não por ter sabido que era grego, mas porque cheguei à idade em que nos reconciliamos com tudo, até as borbulhas.

domingo, 15 de março de 2009

O Pedro escolheu-me como uma das vítimas para responder a um desafio: Escrever seis factos aleatórios sobre mim mesma.
Na boa. Assim aproveito e escrevo mais seis post todos a seguir como eu costumo fazer para torrar a paciência aos leitores.
É também suposto
1.publicar o link de quem me desafiou (já cá estava e já está outra vez)
2. Publicar as regras (são estas... não são?)
3.Contar seis factos aleatórios sobre mim (já vai já vai!)
4. Indicar mais seis vítimas e publicitar os respectivos endereços (já vai já vai!)
5. Avisá-los do que lhes acaba de suceder (que trabalheira)
6. Não os apressar a responder (Claro que não! Se não for hoje pode ser amanhã! Sem problema!)

Então vamos primeiros aos agarrados (cheira-me que hoje vou poupar as mulheres):
1. Monday
2. Nós os Cachorros
3. Carlos
4. Predatado
5. mfc
6. Luís

E agora vamos então pôr a minha vida ao sol:

1. Durante muitos anos tive problemas com o meu nome.
2. Tenho uma obsessão inexplicável por meias.
3. Demoro imenso tempo a acordar até saber quem sou e onde estou.
4. Todos os ídolos da minha infância e adolescência foram mulheres. Tecnicamente, eu devia ser lésbica.
5. Sou um bocado sonsa.
6. Gosto de anchovas, alcaparras e outras comidas esquisitas.

sábado, 14 de março de 2009


Ganhei o meu primeiro selo! Isto quer dizer, claro, que a minha modéstia está já a ansiar por uma colecção inteira de filatelia!

Foi a Erica , que é uma querida e tem um blog daqueles com conteúdo só para adultos, que mo ofereceu. Obrigada!

Agora, é suposto eu fazer o seguinte:

1.Exibir a imagem do selo (já está)

2. Postar o link de quem te deu o selo (já está)

3. Escolher 10 mulheres bem resolvidas (traduzo livremente por qualquer coisa como o oposto de mal f...)

4. Avisar as escolhidas (já lá vou).


Então as escolhidas, depois de enorme reflexão, são as seguintes:












sexta-feira, 13 de março de 2009

Já com a quarta-classe feita (portanto, praticamente uma intelectual), apanhámos o autocarro para irmos ao liceu da cidade fazer o exame médico que nos daria acesso à continuação dos nossos importantes estudos. Foi um dia importante. Da minha escola éramos quatro. As restantes já por essa altura abraçavam a profissão que iriam ter para o resto dos seus dias: Cultivar as terras e cuidar dos animais.
Quando chegámos, já havia uma fila imensa de meninas de dez anos de todas as aldeias em redor, ansiosas por se tornarem estudantes de liceu, estatuto na altura mais importante do que hoje ter uma licenciatura da Moderna.
Mandaram-nos despir, ficar só em cuecas e formar fila à porta do gabinete da senhora doutora, coisa inusitada para a altura. Ninguém esperava por isso e o desconforto foi geral e notório. Umas sentiam-se mal porque, apesar da tenra idade, já pareciam umas miniaturas de mulheres. Outras, porque pareciam ainda umas crianças. Eu incluia-me no segundo caso.
A médica passou a tarde a mandar pôr a língua de fora, auscultar sumariamente e a dizer:
-Vá lá meninas! Somos todas mulheres aqui! Não há problema!
E nós a pensar:
- Ai é? Então porque não te pões tu também em cuecas hein?

quinta-feira, 12 de março de 2009

No centro comercial, parei para um lanche daqueles que eu chamo "substituto do almoço para aguentar até ao jantar". Pedi:
- Um descafeinado cheio e um queque de aveia por favor.
A empregada brasileira reformulou, como que a ter a certeza que tinha percebido bem:
- Um djiscafênado e uma queca dji avéia?
Um pouco surpresa fiz uma pausa. Mas depois respondi, como se nada fosse:
- Sim, isso mesmo.
E pensei:
- Deve estar cá há pouco tempo.

Lembrei-me da estagiária brasileira que tive há alguns anos. Uma rapariga muito divertida que dizia, entre outras coisas, que "ia precisar de durex para fazer trabalhos com as crianças" e que "sabia fazer broches muito legais usando material reciclado". Tenho saudades dela.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Foi numa noite de natal, há muitos anos. Eu, sempre muito mais à frente que os demais em técnica e filosofia de vida, como todos os putos teimosos, tinha acabado de inventar um método novo de abrir nozes. Enfiava a ponta duma faca muito afiada num extremo da noz e depois dava uma pequena volta, o que a fazia abrir-se com um som de pequeno estalido e me divertia. Os adultos, animados pela conversa e pelo álcool, avisaram-me, ainda assim:
- Vais cortar-te!
- Não vou nada! Sei muito bem o que estou a fazer!
Duas ou três nozes depois a faca resvalou para o meu polegar esquerdo. Olhei e pareceu-me, assim de repente, que o meu dedo estava dividido em dois e começava a sangrar abundantemente. Em volta ninguém se apercebeu, a conversa estava animada. Fugi a correr para o quarto e ninguém deu por nada. Já fechada nos meus domínios, analisei mais detalhadamente o resultado da minha avançada técnica. De facto, toda a cabeça do dedo, na parte da frente, tinha sido decepada e estava presa apenas por um pequeno pedaço de pele. Continuei e não querer dar parte de fraca. Embrulhei o dedo e o que sobrava dele num lenço e tranquei-me na casa de banho. O sangue jorrava em grande quantidade. Com a água da torneira sempre a correr, tentei juntar as duas "peças" conforme o formato original e embrulhei tudo com força numa ligadura que havia no armário. Colei com adesivo e voltei para a mesa, onde acabei de jantar com a mão esquerda sempre escondida. Talvez porque fosse noite de natal e toda a gente estava muito animada, ninguém se apercebeu de nada, nem me chamaram à atenção por estar a usar apenas a mão direita. Mais tarde fui dormir e na manhã seguinte já pude substituir a ligadura enorme por um penso mais pequeno. Quando me perguntaram, finalmente, o que era aquilo, disse que tinha roído uma unha muito rente.
O que é certo é que, embora a pele tenha acabado por cair e ser substituída por uma nova, a carne colou direitinho no local onde pertencia.
Ainda hoje tenho uma cicatriz que completa uma forma arredondada no meu polegar esquerdo. É de estimação.

terça-feira, 10 de março de 2009

O meu filho tinha seis anos e frequentava a escola há um mês quando decidiu que uma das missões da sua vida seria infernizar a minha através dum invulgar desprezo por tudo quanto fosse estudo. E comunicou-mo oficialmente, muito solene, desta forma:
- Mãe, tenho uma coisa para te dizer: Eu (e fez uma pequena pausa) não sou um homem de pensamento. Sou um homem de trabalho!
Eu achei piada e ri-me muito. Nesse momento ainda não sabia que era mesmo verdade.

segunda-feira, 9 de março de 2009

No dia do exame da quarta-classe estreei um vestido novo. Azul com bolinhas brancas e debruado a vermelho nos folhos. Horrível. Embora na altura eu estivesse orgulhosíssima dentro dele, o que foi bom, por ter feito aumentar a minha auto-estima, tão necessária para aquela verdadeira provação por que todos tínhamos que passar aos dez anos de idade: Ter que provar perante um júri carrancudo que sabíamos de cor a tabuada, os reis de Portugal e as respectivas dinastias, os rios e seus afluentes, montanhas e respectivas alturas em metros, as províncias e as suas cidades e a agricultura mais praticada em cada região do país. Isso era, à primeira vista, coisa pouca, dados os pouco mais de 90.000 km2 do território. Qual quê? Havia ainda as colónias e suas populações mestiças e negras, mas tão patriotas, diziam-nos, como nós. Felizmente, na altura, já o Brasil fazia parte dos renegados e era apenas uma pequena menção dos territórios que tinham feito parte do grandioso império. Felizmente, porque se tivéssemos que saber a geografia daquela imensidão, nem mil anos a marrar nos livros nos safavam, comentávamos nós umas com as outras numa tentativa de ver o lado bom de tanto estudo inútil. De lá, e até porque as novelas ainda não tinham aportado do lado de cá, só sabíamos da existência de um rei duma única dinastia: O Roberto Carlos. Não podíamos era dizer isso à frente da professora. Não era patriótico.
O exame da quarta classe marcava também outra coisa por que todas ansiávamos, fosse qual fosse o nosso destino pré-reservado consoante a classe social: Para umas, a maioria, o fim da escola e das habituais tareias de régua e cana da índia. Para outras, o liceu, onde já não era permitido dar tareias aos alunos com régua nem cana da índia...

domingo, 8 de março de 2009

O M***** nasceu e cresceu numa família a que se costuma chamar humilde porque se tem (e bem) pudor de lhes chamar outras coisas. Todos os clãs começaram da mesma maneira, a catar piolhos uns aos outros e a comer carne crua à mão. Os motivos que levaram uns a andar mais depressa do que outros na cadeia da evolução são tão complexos e têm uma tão grande dose da componente "acaso", que não vale a pena, na verdade, vangloriarem-se muito os que já atingiram a meta do escorreito. Aqueles em que os artifícios fazem com que quase não se note que também comungam das mais básicas fraquezas naturais humanas.
Com 40 anos, o M***** pertence à primeira geração que aprendeu a ler. Os filhos, são a primeira geração que fez o nono ano, a ferros e com currículos especiais. Ainda lhes faltarão umas quantas gerações para que o primeiro membro da família deixe de arrotar à mesa. Mas já se notam alguns avanços, ou pelo menos, desejos disso. O M*****, quando foi tirar o último bilhete de identidade, decidiu num momento louco que ia ter uma assinatura de elite. Sacou da esferográfica Bic ponta grossa (sim, que nem aceitou a que a funcionária lhe estendia) e desenhou, num rasgo de inspiração raro, uma assinatura ilegível com curvas, voltas, linhas rectas e, a rematar, dois pontinhos. Ficou tão, mas tão orgulhoso, que decidiu que aquele bilhete de identidade não chegaria a andar encardido nem com o formato das "nalgas" marcado por anos de bolso das calças. Guardou-o numa carteira de plástico própria para documentos que nem sequer levou para a oficina para não a sujar.
O pior veio depois, quando teve que começar a assinar como no bilhete de identidade para que a assinatura pudesse ser oficialmente reconhecida. Simplesmente porque já não sabia que voltas, que curvas e que linhas tinha que fazer e por que ordem para conseguir reproduzir aquela obra única com o selo branco da república. Os dois pontinhos finais ainda lá iam, mas o resto...
Apareceu-me há dias um primo do M*****, a entregar um impresso assinado por ele mas já não em forma de assinatura artística. Era apenas o nome, escrito com uma caligrafia derrotada pelo desânimo desde o M****** até ao Silva.
Sem saber da história, observei que aquele senhor tinha que assinar como no BI, caso contrário não lhe poderia reconhecer a assinatura. Respondeu-me o primo, com ares de quem já teve que explicar aquilo vezes sem conta:
- E ele lá se atreve! Quis-se armar em doutor e agora já não consegue assinar igual nem que treine o dia todo! Mas está bem, eu vou lá à oficina dizer-lhe isso...
Levantou-se para ir embora, mas ainda fez um último reparo:
- O que ele vai ter que fazer é tirar um BI novo, essa é que é essa! Foi o que ele arranjou com as manias...

sábado, 7 de março de 2009

"Já provaste coca-cola?" - era uma das perguntas que mais se ouvia entre adolescentes logo após a revolução. A coca-cola foi para os jovens, absurdamente, um dos símbolos mais fortes da liberdade recém-conquistada.
A proibição tinha gerado as histórias mais fantásticas sobre o produto, a ponto de o tornar um mito. Dizia-se que era viciante, que conseguia corroer metal, que provocava doenças várias e estranhas. Mas a que eu sempre gostei mais foi a que a minha mãe me contava como verdadeira: Que quem tomasse uma aspirina com o mágico e pernicioso líquido, experimentaria uma "trip" que o levaria do mundo dos lúcidos para o mundo da loucura num "ai".
Por isso, entre nós, sussurrava-se maliciosamente a pergunta, quase em tom de cumplicidade num crime:
- E tu? Já provaste coca-cola?

sexta-feira, 6 de março de 2009

Às vezes queremos ser tão simpáticos e corre-nos tão mal!
A minha colega estava a atender uma jovem estudante universitária que precisava de vários documentos para um trabalho de investigação. Entre as duas desenvolvia-se um diálogo amigável. Até que, devido certamente ao tom escuro de pele da sua interlocutora, a minha colega fez a pergunta fatal, embora sorridente e, tenho a certeza, sem qualquer segunda intenção:
- E então, quando acabar o curso, gostava de ficar por cá, ou regressa?
E ela, um pouco sem jeito:
- Eu nasci cá...

quinta-feira, 5 de março de 2009

A mulher à minha frente tinha urgência. Não de resolver o assunto que trazia, mas de aliviar a alma. E resolveu fazê-lo comigo.
Sem me conhecer de lado nenhum e em menos de cinco minutos, contou-me que vive com a mãe velhinha e doente, que a irmã e o cunhado não querem saber de nada.
- Conhece a Julinha das Muletas? - perguntou-me de rajada.
- Eu... não... - respondi confusa.
- Como não? Aquela a quem a segurança social tirou o Bruninho! Toda a gente a conhece!...
Pois bem, a tal Julinha das Muletas era a irmã dela, a que não quer saber e só lhe ronda a casa para conseguir dinheiro. Antes dela sair com a certidão emitida, fiquei ainda a saber que, tanto ela como o homem dela, já agarraram o vírus da SIDA.
Chamei o cliente seguinte e esqueci tudo.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Nas tardes quentes de verão, quando o calor sufocava demais para brincar no quintal, aprendi as minhas primeiras frases em língua estrangeira.
Aprendi-as com a boneca espanhola que a minha avó me tinha trazido duma viagem. Era uma boneca morena de vestido branco aos favos e cabelo ondulado pelos ombros. Tinha uma guita na parte de trás do pescoço que se puxava para a fazer falar.
E eu ficava ali, preguiçosa e melancólica, puxando vezes sem conta e ouvindo as frases em número limitado que saíam aleatoriamente, por vezes tentando adivinhá-las antecipadamente, num jogo solitário.
"Te quiero mucho!", era a minha preferida...

terça-feira, 3 de março de 2009

Cresci, até à minha pré-adolescência, num meio rural, mas protegida como qualquer menina urbana mimada. Não me era permitido sair dos muros da nossa propriedade a não ser para ir à escola e à missa, onde os meus horários de ida e volta eram controlados ao minuto. Por isso, eu não conhecia nenhum dos segredos que as crianças rurais conheciam. Sabia tocar um instrumento musical, pois tinha um professor particular para isso, sabia o que era uma televisão, um aspirador, uma máquina de lavar e um frigorífico, coisas que para as minhas colegas eram apenas mitos de que tinham ouvido falar vagamente. Sabia comer de faca e garfo, tinha uma casa de banho com banheira e água quente corrente, coisas quase desconhecidas na aldeia.
Desconhecia totalmente o que era a vida do seu início até ao seu fim porque, ao contrário das outras crianças que corriam livres pelos campos, eu nunca tinha visto os animais do rebanho a acasalar, nem um vitelo nascer, nem o ritual de espetar uma faca na jugular dum porco, nem a vida a jorrar-lhe de lá de dentro em forma de sangue para alimentar os homens.
Quando tinha nove anos, eu ainda pensava que as crianças se mandavam vir de França embrulhadas numa embalagem endereçada. E quando as minhas colegas ignorantes tinham, à minha frente, conversas que ouviam aos adultos do seu meio, que viviam as suas vidas com a simplicidade da dos animais, sem tocarem instrumentos musicais nem usarem electrodomésticos, eu nunca percebia nada. Depois, ia para casa perguntar à minha mãe o que queria dizer "alcançar um bebé", "parir", "desonrar e casar", "por-se nela", "servir-se dela" e outras coisas normais na vida das pessoas duma aldeia do Portugalzinho cinzento de então, ao que ela me respondia sempre que tinha tempo. Tinha tempo...

segunda-feira, 2 de março de 2009

A minha infância foi impregnada de pecado. Desde muito pequena, aprendi que o pecado era a fonte de todo o mal e me poderia levar, à mínima falha, a arder no inferno para sempre. Não aquele pecados grandes como matar ou roubar a que normalmente chamamos crimes. Eram antes pequenos gestos nos quais, duma forma insidiosa, Deus tinha incorporado fáceis deslizes só para se divertir connosco. Era mais ou menos como jogar um jogo que já sabíamos viciado contra nós.
Tocar com os dentes na hóstia sagrada era pecado. Brincar com as serpentinas a partir da quarta-feira de cinzas era pecado, mesmo que nos tivessem sobrado muitas e das nossas cores preferidas. Comer carne ou simplesmente pensar que nos apetecia um bife durante as sextas-feiras da quaresma era pecado. Ter um ataque de riso incontrolável durante a missa era pecado. Apanhar uma flor dum jardim alheio, mesmo que ela estivesse do lado de cá do muro, era pecado. Desobeder aos pais e aos professores era pecado... De cada vez que cometíamos um destes actos (e cometíamos muitas vezes pois o contrário seria impossível), passávamos noites de angústia solitária, pensando no que nos esperava um dia, quando morrêssemos e nos fosse negada a entrada no céu, martirizando-nos com a nossa própria imagem ardendo no fogo eterno e tentando inventar uma solução milagrosa para escapar ao castigo.
E depois havia ainda o tal pecado original, o cometido por Adão e Eva ao terem comido uma maçã duma espécie rara que eu não sabia qual era, mas não era com certeza as que cresciam nas árvores do quintal lá de casa, que essas eu sabia que não era pecado comer, nem cruas, nem assadas, nem em compotas ou bolos.

domingo, 1 de março de 2009

Eu era adolescente e estava ali sozinha, com a minha filha de quatro meses (como se fosse o meu Nenuco mas com uma virose real) e com o médico pediatra mais respeitado da cidade e da nata da mesma.
Ali estava eu, com a minha filha de quatro meses deitada numa marquesa, à espera que aquele homem mais velho e sabedor me salvasse da minha desorientação com um antibiótico milagroso e com uma palavra de sossego. Precisava que ele me dissesse com toda a certeza que aquela coisa viva deitada na marquesa e pela qual eu já tinha passado mais temores, angústias e dores físicas do que a maior parte dos mortais passa durante a vida inteira, não ia morrer nem nada disso.
Não sei se naquele momento era eu a mais frágil ou a minha filha de quatro meses. Acho que era eu.
Para minha surpresa, o respeitado doutor, em vez de perguntar pela febre, pelos vómitos, pelos choros da criança, perguntou-me a mim pela minha precocidade sexual. Perguntou-me, com aquele sorriso que fazem os homens quando metem nojo, se eu era "fresquinha". Quantas pilas já tinham passado por mim e se não me importava que passasse mais uma.
Eu, olhava para a minha filha de quatro meses, nua como o menino Jesus e deitada na marquesa e não sabia o que me estava a acontecer. Não disse nada. Pensei apenas: - Por favor, não me faça isto! - e esperei pelo xarope milagroso.
Ainda com aquele riso imbecil por toda a cara, o médico sentou-se para escrever qualquer coisa num papel que me entregou. Arranquei-lho da mão, vesti a minha filha, sempre em silêncio e vim embora depois de pagar à empregada velha que estava sentada numa secretária velha à porta do consultório a fazer tricot.
Contei à minha mãe o que tinha acontecido. Ela disse-me que não podia ser, que eu tinha percebido mal. Que o Dr. ***** ******, médico respeitado e que já tinha tratado de mim e de todos os meus irmãos, não seria capaz disso. Que eu tivesse juízo.
Depois, contei ao pai da minha filha, adolescente como eu, que me disse que eu era uma doida, sempre tinha sido e havia de continuar a ser, que até o pediatra fui provocar. Insultou-me ainda com mais algumas palavras que não repito aqui.
Nunca mais contei a ninguém. Estou a contar-vos agora a vocês.
O Dr. ***** ****** morreu há algus anos, de velhice e em paz. Não tive pena.