sexta-feira, 31 de julho de 2009
A minha mãe, por exemplo, já tinha uns cinco ratinhos em biscuit branco com uns retoques a tinta dourada e uma batuta na mão como se estivessem a dirigir uma orquestra. Muito nós nos divertimos anos a fio com a prateleira dos ratinhos maestros oferecidos pela D. Lurdes!...
quinta-feira, 30 de julho de 2009
- Fressureiras! Fressureiras!
Nós, totalmente desconhecedoras do que poderia querer dizer aquela palavra, ainda nos virámos para trás a ripostar:
- Isso são vocês!
Mas continuámos na ignorância.
Quando cheguei a casa perguntei à minha mãe:
- Oh mãe! O que é uma fressureira?
Notei que um ligeiro arrepio a percorreu de alto a baixo com aquela pergunta, mas ainda assim, disfarçou bem.
- Quem te disse isso? - perguntou.
- Umas miúdas lá da escola chamaram-me. O que é?
- Olha... não sei. Deve ser uma palermice qualquer. Não ligues.
Se ela não sabia não sabia, não valia a pena insistir. Por isso fui perguntar a uma outra rapariga mais velha, que me explicou como sabia. Orgulhosa, cheguei a casa e fiz questão de partilhar o meu novo saber com a minha mãe, para que também ela pudesse sair da ignorância:
- Mãe! Já sei o que é uma fressureira! É uma mulher que faz pára-choques com outra!
quarta-feira, 29 de julho de 2009
Uns dias depois, chegou-me ofegante de manhã. Já sabia de alguém que o conhecia! Por isso, ia apresentar-me a essa pessoa (uma prima dela mais velha que também estudava lá) e depois a prima apresentava-me a ele. Plano perfeito! Nos dias que antecederam o acontecimento, eu juro que até dormi mal!
Até que o momento chegou. O meu coração batia descompassadamente. Só me lembro vagamente duma voz que dizia:
- Este é o Joaquim! Joaquim, esta é a *****!
E depois, uma vozinha de falsete:
- Olá *****!
E foi aí que acabou o meu primeiro sonho de um tórrido romance. O meu herói chamava-se Joaquim e falava como os sobrinhos do Pato Donald!
terça-feira, 28 de julho de 2009
Quando olho para as minhas fotografias desse tempo, concluo que só me consegui conciliar com as calças e saias de lycra, as sabrinas e uns camisolões por cima disso tudo.
Ainda hoje me pergunto quem raio se lembrou de inventar aquelas modas...
segunda-feira, 27 de julho de 2009
As meninas, nesse tempo, dividiam-se em quatro grupos distintos, segundo o comportamento que evidenciavam na hora do recreio:
1. As que brincavam sem sequer se lembrar que havia um recinto proibido a uns escassos metros.
2. As que assomavam até perto do muro, a medo, tentando imaginar o que seria poder brincar do outro lado, mas não se atreviam a mais.
3. As que subiam o muro durante escassos segundos tremendo com varas verdes, fingindo uma coragem que não tinham e sabendo que levariam uma boa dose de reguadas se fossem apanhadas.
4. As que, de facto, saltavam o muro e faziam uma espécie de streak pelo recreio dos rapazes voltando logo de seguida ao seu habitat natural. Todas lhes aplaudiam a imensa coragem. Mas no fundo, também todas sabiam que essas estavam condenadas a nunca ser ninguém na vida.
domingo, 26 de julho de 2009
- Uma planta topográfica?
- Não, tipográfica.
- Tipográfica não existe, deve ser topográfica que a senhora quer.
- Não, tenho a certeza que é tipográfica!
- Então vamos lá ver se nos conseguimos entender. Uma planta topográfica é onde aparece um determinado local, numa escala que pode variar para podermos ter mais ou menos pormenor. Certo?
- Certo. Mas não é isso que eu quero.
- Outro tipo de planta que lhe posso fornecer é uma planta de arquitectura. Essa mostra um determinado edifício visto de cima, com as divisórias interiores...
- É isso que eu quero! Mas isso não é uma planta de arquitectura, é uma planta tipográfica.
- Acha?
- Claro! É a planta que mostra que tipo de casa é aquela. Por isso, é uma planta tipográfica!
sábado, 25 de julho de 2009
Há alguns anos conheci um homem de quem não se pode dizer que tenha gostado. Lembro-me que a filha mais velha tinha acabado de se divorciar e tinha juntado os trapinhos com outro homem, e ele dizia aos quatro ventos para quem quisesse ouvir que - "A minha filha? A minha filha é uma puta!!! É a vergonha da família!". Aquilo fazia impressão a toda a gente, mesmo aos mais retardados e retrógrados membros da comunidade, pois até esses seriam capazes de, na altura em que a natureza chama, se tranformarem em ursas ou leoas e defenderem as suas crias, como toda a gente. Aquilo era como ouvir uma faca afiada a raspar numa panela de alumínio.
Anos mais tarde conheci uma mulher, um pouco mais nova do que eu, preocupada com a saúde do pai que já tinha tido uma ameaça de enfarte e ia todos os dias lá a casa saber dele. Com o evoluir da conversa, concluí que se tratava, nem mais nem menos, da horrível criatura que anos antes assim tinha tratado a própria filha e que essa filha... era ela!
Agora, de cada vez que a ouço falar do pai com preocupação e natural amor filial, apetece-me tanto mandá-la calar!...
Mas não posso fazer isso pois não?
sexta-feira, 24 de julho de 2009
Eu tentei não lhes dar importância, mas a insistência da conversa entranhou-se na minha cabeça e eu dei comigo a ler um livro sobre sintomas de doenças que havia lá em casa. Dizia às tantas que um dos sintomas da leucemia era a pela extremamente macia. Com a pulga atrás da orelha, perguntei ao meu marido: - "Achas que eu tenho a pele muito macia?" - "Acho pois!" - respondeu ele, certo de estar a fazer o que era correcto.
Eu desatei a chorar, e acho que essa foi uma das vezes em que um homem pensou que nunca se sabe como é que se pode agradar a uma mulher.
quinta-feira, 23 de julho de 2009
quarta-feira, 22 de julho de 2009
Sentaram-se ambos à minha frente e chamou-me imediatamente a atenção a postura adulta e compenetrada da criança. Vinham por umas cópias dum projecto de arquitectura do qual não sabiam, nem o número, nem o nome. Mostrei-lhes o local em fotografia aérea, no monitor, e pedi-lhes que assinalassem o prédio exacto.
- Não é nada disso! - respondeu logo o pai - Não há lá nada que seja assim!
- É é! - adiantou-se o filho - então não vês aqui a nossa rua? E aqui a escola?
- Não é nada! Não queiras saber mais do que eu! - respondeu o pai já a ficar irritado.
- Ai isso é que é! - insistiu o garoto. E numa atitude surpreendente, dirigiu-se directamente a mim - Minha senhora, isso dá para pôr os nomes das ruas a aparecer?
- Dá - respondi - mas na verdade ainda nem todas estão cadastradas! - e accionei o layer com a toponímia.
- Estás a ver que não é? - disse o pai orgulhoso - A nossa rua não é essa!
-É - explicou o menino pacientemente - o nome que aqui está é o da rua ao lado, porque o nome da nossa rua ainda não aparece. Mas o prédio está aqui, é este! - e apontou com o dedo.
Depois de tudo estar resolvido e de ter chegado a altura de emitir a guia para pagamento das cópias, pedi ao pai o número de contribuinte, que ele papagueou logo ali sem se enganar e sem olhar a cábula.
- Ena! - comentou o filho - Tu sabes o teu número de cor? Eu não sei os meus!
- É para que vejas que no meu tempo, só com a quarta-classe, ficávamos a saber mais do que vocês agora com a universidade toda feita! Sabíamos decorar! Vocês não sabem nada! - e a seguir dirigiu-se a mim - É ou não é verdade minha senhora?
Eu... desviei os olhos e nem respondi.
terça-feira, 21 de julho de 2009
O menino, sentado na mesa do café, jogava playstation, alheado. A empregada que veio saber o que se encomendava comentou, orgulhosa como se tivesse acabado de formular uma teoria matemática para a posteridade:
- Tu tens uma playstation cor-de-rosa? Não tens vergonha? Cor-de-rosa é para as meninas!
A criança, sem responder, aproximou mais o rosto do jogo e calculo que tenha entrado para o lado de dentro e ficado rodeado de personagens fantásticas dum mundo onde não há cores apropriadas. A avó, em vez de a defender (ou pelo menos pôr aquela empregada empertigada no lugar o que valeria o mesmo), olhou condescendente para o neto, e adivinhou-se-lhe no olhar que concordava, como quem há muito se sente embaraçada por ter um neto “mariquinhas”.
Eu observava da mesa ao lado e não interferi. Mas tive muita vontade. Vontade de ir lá e dizer ao menino que fosse sempre feliz pela vida fora, feliz e simples como as árvores e como os rios, que se limitam a “ser” sem pensar em cores. Que teria que ser respeitado, até mesmo pela avó, com o seu ar de peninha dele e de si própria. Mas não fui. Fora dos jogos da playstation, as personagens não interagem à vontade, quando lhes apetece. Obedecem a regras, como a do “conhecimento pessoal”.
segunda-feira, 20 de julho de 2009
Eu olhei para o écran a tentar descortinar o que se passaria de tão importante. Como só vi imagens desfocadas e cheias de grão como quando havia temporal e a antena se virava no telhado, perguntei o que vinha a ser aquilo que os prendia a todos daquela maneira.
- É o homem na lua! - respondeu-me a minha mãe como se fosse imperdoável não estar tão entusiasmada como ela - O homem chegou à lua! Estão a aterrar lá!
Assim sendo, decidi prestar mais alguns minutos de atenção àquelas imagens sem interesse nenhum.
- Mas então a lua é assim? - perguntei.
- Como querias que fosse?
- Então mas onde estão as casas dos homens da lua? E onde estão os homens da lua? Não acontece nada?
- Não vive ninguém na lua, é só um satélite!
Então se não vivia ninguém na lua, se não havia qualquer hipótese de aparecer um ser fantástico com duas cabeças e três caudas como nos filmes do Thunderbird, se não ia haver nenhuma cena de perseguição nem de perigo, o que estava eu a fazer ali? A perder o meu tempo.
E regressei ao meu mundo imaginário onde o espaço era todo, todo, povoado.
domingo, 19 de julho de 2009
Eu, tentando pôr ordem na cabeça dela e na minha: Oh minha senhora, mas então vamos lá ver: A senhora veio cá tratar de quê?
A senhora idosa, com a voz cada vez mais estridente e suplicante: É que eu queria "lebar" duas! Percebe? Mas só "lebei" uma!
Eu: Mas duas quê minha senhora? Eu preciso de saber! Aqui tratamos de muita coisa!
Ela: Foi assim, eu queria duas e só "lebei" uma! Eu queria duas!
Eu (só mentalmente): Ai a minha "bida"!
Eu (em voz alta): Mas então vamos aqui esclarecer uma coisa: Eu preciso de saber o que é que a senhora veio cá tratar, senão não a posso ajudar!
Ela: "Atão"! Eu "bim" cá "pra" "lebar" duas!
Eu (já sem paciência nenhuma mas com vontade de gozar uma bocado - já agora! -, chamei o meu colega à minha mesa): D****, estou aqui com uma dúvida. Esta senhora diz que queria que tu lhe desses duas e tu só lhe deste uma. É verdade?
Ele, com dificuldade em aguentar-se, foi lá atrás rir um bocado e compor-se. Enquanto isso eu fiquei em frente à mulher, continuando a tentar perceber qual a natureza do acto que ela tinha apreciado tanto que queria levar duas vezes. Mas entratanto ele voltou, já concentrado e composto.
Ele: Essa senhora veio cá ontem buscar uma declaração para pedir a nova matrícula de ciclomotor.
Eu: É isso minha senhora? Uma declaração para o ciclomotor?
Ela (mais suplicante do que antes): Eu queria duas e ele só me deu "uma"!
Eu (só em pensamento): Oh minha senhora! Na verdade, nem percebo como é que ele lhe deu uma! Eu, no lugar dele, não lhe dava nenhuma! Nem de cortesia!
sábado, 18 de julho de 2009
Eu cruzei-me com eles várias vezes, e de todas elas disse mal da minha visão raio x para a vida particular das pessoas que não conheço de lado nenhum e nem de longe sonham que estão a ser observadas desta forma. Mas como é que eu podia não os achar óptimas personagens de romance picaresco? Só se fosse ceguinha!
Porque a figurinha deles era esta, sem pôr nem tirar: Uns dez passos atrás vinha o pai, magrinho e frágil, de camisa aberta com muitos pelos no peito, de mão dada com a miúda que como já disse era franzinha. À frente, a abrir caminho e a indicar a direcção a tomar, vinha a mãe. Grande e gorda, com muitos pneuzinhos estilo michelin e exibindo uma t-shirt cor-de-rosa schock, com a frase, a dourado: I'M TOO SEXY!
sexta-feira, 17 de julho de 2009
Não encontrei os ovos, nem caveiras de pirata nem tesouros de princesa, mas também não me decepcionei. O lixo do chão já não saía à vassoura, mas saiu à picareta, em grossas camadas de bedum cinzento que, pensei eu, fariam as delícias de qualquer arqueólogo! Ou então, podia servir de plasticina, em quantidade suficiente para construir majestosas estátuas. Infelizmente não me deixaram mexer naquilo.
quinta-feira, 16 de julho de 2009
Levantei-me e fui à janela tentar descobrir de que apartamento vinha aquele chinfrim. Era do lado direito. "Caramba! Não me digam que são os velhotes do 3.º B!".
Voltei para a cama. Fosse quem fosse, talvez se cansasse e desligasse aquilo em breve. Mas nem pensar. A festa continuou por mais uma boa meia-hora, e eu já a ficar numa pilha de nervos e com vontade de atirar um vaso da varanda contra a janela de alguém. Decididamente, assim, nem valia a pena tentar dormir. Levantei-me para ir ao xixi e a seguir fui à cozinha fazer um chá. Ainda ia no corredor quando vi umas luzes que piscavam da porta da minha cozinha. "O que é isto?" - pensava eu já um bocado assustada.
Entrei. E nem me digam nada. A minha própria televisão, que andava um bocado marada, tinha-se ligado sozinha e estava sintonizada na MTV em altos berros. Desliguei-a, envergonhada, e fui-me deitar.
quarta-feira, 15 de julho de 2009
Era uma espécie de casota de cão pequenina mas decorada a flores brancas de plástico e com uma portinha de vidro que permitia ver, lá dentro, a imagem da santa olhando de viés para o chão como se não tivesse nada a ver com nada. E depois abria-se a portinha de vidro e a música arrancava. Era a versão instrumental em xilofone barato do tema que eu estava habituada a ouvir em vozes esganiçadas de beatas velhas: A treze de Maio, na Cova de Iria, aos três pastorinhos, apareceu Maria. Avéééééé!!! Avééééé!!! Avé Mariaaaaaaaaaaa!!!!...
Quando não tinha nada para fazer e estava à espera que começasse a emissão da RTP, sentava-me na poltrona do meu avô a abrir e a fechar a porta da caixa de música muito depressa para fazer a música parar e arrancar sem nexo. Quando me fartei dessa brincadeira, tentei pôr a música a tocar de trás para a frente, o que exigiu alguns ajustes técnicos na máquina, embora sem sucesso. Depois, tentei virar a cabeça santa para cima e arranquei as pombinhas pousadas em cima da base da imaculada vestimenta.
E foi assim que a minha avó ficou sem a caixinha de música.
terça-feira, 14 de julho de 2009
Era uma aluna um pouco abaixo de medíocre. Durante as aulas, olhava para nós com os olhos muito abertos como se estivesse a acontecer alguma coisa fantástica e para aí a quinze minutos de acabar, perguntava:
- Oh professora, isso já é matéria?
Era um desespero. Mas não era má rapariga. Pelo contrário, apesar de nos moer o juízo com as suas ideias disparatadas, era fácil simpatizar com ela. Estava sempre feliz.
Encontrei-a. Pesa mais uns vinte quilos e vende peixe numa carrinha frigorífica.
segunda-feira, 13 de julho de 2009
- Isso é o que vamos ver!
- Estou apenas a informá-lo, como me compete (que é como quem diz, estou-me a borrifar para os teus esquemas, não te conheço, não sou tua amiga nem quero ser)
Ele arrumou os papéis e levantou-se para sair. Mas antes, ainda fez o favor de deixar a dica:
- Sabe que há muita maneira de fazer um burro comer palha!
Sei. E também sei que devia ganhar o dobro.
domingo, 12 de julho de 2009
sábado, 11 de julho de 2009
sexta-feira, 10 de julho de 2009
Depois de muita seca e de miúdas e graúdas a dançar porcarias sem jeito nenhum, chegou a vez dela. Eu, lá me levantei, de câmara em punho, e escolhi o melhor ângulo para captar para a posteridade aquele grande momento para a humanidade. Nervosa, claro! E se ela se enganasse? E se corresse mal?
O esquema começou com as miúdas em pose de partida, todas penteadinhas e de fatinho igual, tão lindas! Mais linda a minha do que as outras, claro! Mas a cerca de um minuto do fim, aconteceu o que eu mais temia: A fita da minha filha enrolou-se na fita de outra e ambas deram um nó que, quanto mais se puxava, mais cego se tornava. E enquanto o resto do grupo continuava o esquema, confuso com o que estava a acontecer, a minha filha e a outra miúda desatavam um nó à unha, paradas no meio do pavilhão. E eu ali, de câmara de vídeo na mão, lavada em lágrimas...
quinta-feira, 9 de julho de 2009
Finalmente, quando chegou a hora, o destino confirmou que todos os deuses estavam contra mim, nasceu mesmo um rapaz! Pior ainda! Embora eu esperasse pacientemente dia após dia que ele saísse daquela espécie de coma consciente em que os bebés vivem mergulhados para o ensinar a brincar às casinhas e a andar de triciclo, ele não aparentava qualquer sintoma de progresso. Como se não bastasse, a minha mãe passou a andar obcecada por aquela cagona criatura e deixou, como por magia, de me fazer as vontades. Por isso, resolvi tomar o assunto nas minhas próprias mãos: Um belo dia em que todos os adultos da casa estavam distraídos, aproximei-me do casulo de rendas e folhinhos onde a entidade dormia descansada e de consciência tranquila como se não tivesse culpa de nenhum dos cataclismos que se passavam à sua volta e tentei desmontá-la como fazia às bonecas de que já estava farta. Não consegui. Ainda eu estava no princípio da missão, a tentar separar a mão direita do braço, quando os berros histéricos daquela coisa atraíram a atenção de toda a gente que acorreu em seu auxílio. Fiquei de castigo, e que me lembre foi a primeira vez que tal aconteceu. Passei muitos dias e meses a perguntar a mim mesma se não seria possível devolver aquela encomenda à cegonha francesa que a tinha trazido. Foi preciso passar alguns anos para que eu me habituasse ao novo ser sem ter vontade de o tele-transportar para marte.
quarta-feira, 8 de julho de 2009
- Ai, obrigada, porque é que se esteve a maçar? - perguntava ela antes de abrir o presente, com aquele tom de quem quer dizer de facto "Esta gaja pensa que eu não tenho batons? Para que raio quero eu esta porcaria?"
E logo a seguir, com aquilo na mão já de segredo desvendado, os netinhos à volta em grandes risadas, sem saber se devia rir também ou atirar com o fálico cosmético à cabeça da velha. Optou por um sorriso muito, mas mesmo muito amarelo. E sobretudo, indisfarçavelmente contrariado.
terça-feira, 7 de julho de 2009
Fazíamo-lo por carta. Sim, carta, aquelas coisas escritas em papel com esferográfica e metidas dentro dum envelope, que por sua vez leva um selo colado com cuspe e demora pelo menos um dia a chegar ao destinatário. Eu, por volta dos meus treze ou catorze anos, tinha um enorme grupo de amigos virtuais, que não conhecia pessoalmente, e com quem trocava ávida correspondência. Hoje, lembro-me particularmente dum rapaz que morava na Venda do Pinheiro. Trocámos mensagens sucessivas acerca da localização geográfica de tal sítio, eu a perguntar onde ficava e ele a responder-me que era ao pé da Asseiceira Grande. Até que desisti de perceber. Se ele me tem dito que era xis kilómetros a norte de Lisboa, tudo tinha sido simples. Mas acho que nesse tempo, o mundo de cada um era mais pequenino.
segunda-feira, 6 de julho de 2009
EU: Porque é que vocês só ouvem música velha?
ELA: Nós ouvimos música do tempo em que éramos jovens como tu.
ELE: É assim que as coisas acontecem sempre. As pessoas ficam marcadas pela música da sua juventude e é dessa que gostam durante toda a vida. Percebes?
EU: Eu acho que não vou ser assim...
ELA: Vais vais! Tu agora é que achas que não vais! Mas com os anos vais ver, lembra-te desta conversa daqui a uns trinta ou quarenta anos e pensa - Afinal eles tinham razão!"
E eu lembro-me. Muitas vezes. Lembro-me que afinal eles não tinham razão.
domingo, 5 de julho de 2009
- Já viu ali atrás de mim?
Eu olhei e o que vi foi uma sala de espera cheia de gente para atender a dez minutos da hora de encerrar. Já sem muita paciência perguntei-lhe:
- Não vejo nada de especial, é o quê?
- Shhhhhhh!!! - recomendou ela aflita - Ali! Mesmo atrás de mim! É a Sónia, a que esteve no Big Brother!!!
- Não conheço - respondi.
Depois, perante o ar decepcionado, quase humilhado, da minha interlocutora, tentei remediar qualquer coisinha:
- Sabe, é que eu não vejo televisão.
sábado, 4 de julho de 2009
No dia em que a levei comigo ao super-mercado, estavam à entrada a oferecer amostras duma marca nova de detergente. Eu entrei, ofereceram-me uma caixinha, eu aceitei e fui à minha vida. Entretanto deixei de a ver e já começava a pensar que, apesar de chata como a potassa, a tinham raptado. Mas meia hora depois desfez-se o mistério. Ela apareceu ao pé de mim com um ar vitorioso como se lhe tivessem conferido um doutoramento honoris causa e contou-me orgulhosíssima o que tinha andado a fazer:
- Eles estavam a oferecer detergente, viste? Então eu passei uma vez e saí, dei meia volta e entrei outra vez. Fiz isso dez vezes! E só parei porque os antipáticos me disseram que já tinha passado muitas vezes e não me davam mais!
Então, feliz como uma noiva de Santo António, desviou um pouco o casaco que trazia dentro do carrinho de compras para que eu visse o espólio: Dez caixas de amostra do novo detergente!
sexta-feira, 3 de julho de 2009
Como sempre acontece em casamentos e baptizados, todos os convidados vão de farpela nova. E assim foi no caso vertente. Apenas com um pequeno pormenor: Naquele tempo, não era costume perguntar-se às crianças o que queriam vestir, apresentava-se-lhe a roupa decidida e estava feito. E foi o que fez a minha mãe, que me comprou umas calças de fazenda e uma camisola de pura lã, tudo de óptima qualidade, afiançava ela com a boca a fugir-lhe para o "Ingrata!", e eu acreditava, mas cuja aspereza me fez andar todo o dia direita, quase sem me mexer. Qualquer movimento em falso me provocava comichões insuportáveis.
Quando olho para mim naquelas fotografias, é isto que vejo: Um robot da legião de tropas do Darth Vader.
quinta-feira, 2 de julho de 2009
Não é que eu não tivesse feito qualquer coisa para o dia da mãe, voluntária e alegremente. Só que talvez não fizesse um poema. Talvez inventasse um novo gadget para a cozinha, talvez fizesse uma pintura abstractamente tosca, ou qualquer outra coisa tão inútil como um poema. Mas se era preciso um poema, que saísse um poema! O meu centrou-se numa metáfora em oito versos e duas estrofes em que eu e os meus irmãos éramos retratados como frágeis passarinhos no ninho e a minha mãe era a incansável mãe pássara que passava o dia à minhoca para nos alimentar, grandes alarves! Azar tive quando a professora ficou tão espantosamente impressionada que enfiou na cabeça que eu havia de declamar aquilo na festa de final de ano que fazíamos habitualmente no salão da paróquia para toda a aldeia. Na verdade, a nossa festa era um êxito tão grande em *** ******** como as peças do La Feria são agora no Porto e todo o povo aguardava ansiosamente e pagava de bom grado os cinco escudos que custava a entrada e cuja receita revertia para a creche e/ou a biblioteca. Houve um ano em que, a pedido de várias famílias, tivemos que fazer duas sessões, sendo que a última acusou o nosso amadorismo em falhas, esquecimentos e barracadas várias.
A verdade é que, quanto mais eu lia o poema, mais o achava estúpido e menos me apetecia lê-lo em público. Só que não havia alternativa, se era para ler era para ler. E no dia da récita lá estava eu, infeliz como um jumento abandonado, a pensar como iria evitar uma apoplexia quando subisse ao palco. Quando chegou a hora fatal pensei que morria. Senti-me a criatura mais estúpida do planeta terra enquanto declamava o meu próprio poema e olhava lá para baixo, com a minha mãe a chorar de emoção e as outras mulheres a acenar com a cabeça em sinal de aprovação por tão grande prova de amor filial.
quarta-feira, 1 de julho de 2009
Nunca contei a ninguém, assim publicamente, mas agora acho que posso, até porque a senhora era tão velhinha e foi há tanto tempo que já nem deve ser viva.
Era a D: Maria da Conceição da Pita Lavada.
Pita da mãe e Lavada do pai...