sexta-feira, 31 de julho de 2009

A D. Lurdes era uma querida! Nunca se esquecia do aniversário de ninguém! Só se esquecia do que tinha oferecido nos anos anteriores, mas também não se pode exigir tudo a uma pessoa só, ninguém é perfeito!
A minha mãe, por exemplo, já tinha uns cinco ratinhos em biscuit branco com uns retoques a tinta dourada e uma batuta na mão como se estivessem a dirigir uma orquestra. Muito nós nos divertimos anos a fio com a prateleira dos ratinhos maestros oferecidos pela D. Lurdes!...

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Um grupo de miúdas da escola primária, talvez por inveja, talvez por despeito, talvez porque não tinham mais que fazer nem sabiam fazer melhor, decidiram que era giro vir atrás de nós todo o caminho (de mim e das minhas três amigas inseparáveis), a insultar-nos:
- Fressureiras! Fressureiras!
Nós, totalmente desconhecedoras do que poderia querer dizer aquela palavra, ainda nos virámos para trás a ripostar:
- Isso são vocês!
Mas continuámos na ignorância.
Quando cheguei a casa perguntei à minha mãe:
- Oh mãe! O que é uma fressureira?
Notei que um ligeiro arrepio a percorreu de alto a baixo com aquela pergunta, mas ainda assim, disfarçou bem.
- Quem te disse isso? - perguntou.
- Umas miúdas lá da escola chamaram-me. O que é?
- Olha... não sei. Deve ser uma palermice qualquer. Não ligues.

Se ela não sabia não sabia, não valia a pena insistir. Por isso fui perguntar a uma outra rapariga mais velha, que me explicou como sabia. Orgulhosa, cheguei a casa e fiz questão de partilhar o meu novo saber com a minha mãe, para que também ela pudesse sair da ignorância:
- Mãe! Já sei o que é uma fressureira! É uma mulher que faz pára-choques com outra!

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Eu tinha doze anos e tinha acabado de chegar ao liceu mais carismático da cidade, aquele onde toda a gente queria poder dizer que tinha andado. Ele era finalista. Eu não o conhecia de lado nenhum e ele a mim, muito menos. O que quer dizer que me ignorava totalmente. Era assim uma espécie de matulão com um lindíssimo cabelo loiro liso pelos ombros. Fazia-me lembrar um dos meus ídolos da música na altura e, desde o primeiro dia, não consegui tirar os olhos dele. Não lhe sabia o nome, nem a idade, nem se estudava letras ou ciências, só sabia que era a coisa mais gira que andava naquele liceu todo e eu queria conhecê-lo. Partilhei estas angústias com uma colega que, a partir daquele momento, decidiu que ia ajudar-me com a mesma convicção com que se entra como voluntário para a Cruz Vermelha. Fez disso uma missão.
Uns dias depois, chegou-me ofegante de manhã. Já sabia de alguém que o conhecia! Por isso, ia apresentar-me a essa pessoa (uma prima dela mais velha que também estudava lá) e depois a prima apresentava-me a ele. Plano perfeito! Nos dias que antecederam o acontecimento, eu juro que até dormi mal!
Até que o momento chegou. O meu coração batia descompassadamente. Só me lembro vagamente duma voz que dizia:
- Este é o Joaquim! Joaquim, esta é a *****!
E depois, uma vozinha de falsete:
- Olá *****!

E foi aí que acabou o meu primeiro sonho de um tórrido romance. O meu herói chamava-se Joaquim e falava como os sobrinhos do Pato Donald!

terça-feira, 28 de julho de 2009

Tive uma convivência difícil com os anos oitenta. Dei-me mal com a música que me parecia sempre igual e depressiva. Dei-me mal com os folhos. Dei-me mal com os vestidos pretos de rendinhas brancas à criada de servir. Dei-me mal com os penteados. Dei-me mal com os móveis e as cortinas. Dei-me mal com os sapatos muito altos e finos que se enfiavam em todos os intervalos de todas as pedras de calçada. Dei-me mal com aqueles espelhos com as quatro estações a imitar Mucha que já ninguém aguentava. Dei-me mal com as mesinhas redondas e as camilhas. Dei-me mal com a maquilhagem à prostituta espanhola.
Quando olho para as minhas fotografias desse tempo, concluo que só me consegui conciliar com as calças e saias de lycra, as sabrinas e uns camisolões por cima disso tudo.
Ainda hoje me pergunto quem raio se lembrou de inventar aquelas modas...

segunda-feira, 27 de julho de 2009

A minha escola era dividida em duas: Uma para as meninas e outra para os rapazes. As duas absolutamente simétricas e paredes-meias. A dividi-las, um muro. Não um muro alto como se poderia supor sabendo que era terminante proibido a qualquer fêmea passar para o lado dos machos e vice-versa. Era propositadamente um muro baixinho que nos dava pelo joelho, a lembrar que o poder de persuasão do regime valia por todos os muros.
As meninas, nesse tempo, dividiam-se em quatro grupos distintos, segundo o comportamento que evidenciavam na hora do recreio:
1. As que brincavam sem sequer se lembrar que havia um recinto proibido a uns escassos metros.
2. As que assomavam até perto do muro, a medo, tentando imaginar o que seria poder brincar do outro lado, mas não se atreviam a mais.
3. As que subiam o muro durante escassos segundos tremendo com varas verdes, fingindo uma coragem que não tinham e sabendo que levariam uma boa dose de reguadas se fossem apanhadas.
4. As que, de facto, saltavam o muro e faziam uma espécie de streak pelo recreio dos rapazes voltando logo de seguida ao seu habitat natural. Todas lhes aplaudiam a imensa coragem. Mas no fundo, também todas sabiam que essas estavam condenadas a nunca ser ninguém na vida.

domingo, 26 de julho de 2009

- Eu queria uma planta se faz favor.
- Uma planta topográfica?
- Não, tipográfica.
- Tipográfica não existe, deve ser topográfica que a senhora quer.
- Não, tenho a certeza que é tipográfica!
- Então vamos lá ver se nos conseguimos entender. Uma planta topográfica é onde aparece um determinado local, numa escala que pode variar para podermos ter mais ou menos pormenor. Certo?
- Certo. Mas não é isso que eu quero.
- Outro tipo de planta que lhe posso fornecer é uma planta de arquitectura. Essa mostra um determinado edifício visto de cima, com as divisórias interiores...
- É isso que eu quero! Mas isso não é uma planta de arquitectura, é uma planta tipográfica.
- Acha?
- Claro! É a planta que mostra que tipo de casa é aquela. Por isso, é uma planta tipográfica!

sábado, 25 de julho de 2009

O mundo é pequeno, é certo que isto é um cliché, mas às vezes é mesmo mais pequeno do que gostaríamos que fosse.
Há alguns anos conheci um homem de quem não se pode dizer que tenha gostado. Lembro-me que a filha mais velha tinha acabado de se divorciar e tinha juntado os trapinhos com outro homem, e ele dizia aos quatro ventos para quem quisesse ouvir que - "A minha filha? A minha filha é uma puta!!! É a vergonha da família!". Aquilo fazia impressão a toda a gente, mesmo aos mais retardados e retrógrados membros da comunidade, pois até esses seriam capazes de, na altura em que a natureza chama, se tranformarem em ursas ou leoas e defenderem as suas crias, como toda a gente. Aquilo era como ouvir uma faca afiada a raspar numa panela de alumínio.
Anos mais tarde conheci uma mulher, um pouco mais nova do que eu, preocupada com a saúde do pai que já tinha tido uma ameaça de enfarte e ia todos os dias lá a casa saber dele. Com o evoluir da conversa, concluí que se tratava, nem mais nem menos, da horrível criatura que anos antes assim tinha tratado a própria filha e que essa filha... era ela!
Agora, de cada vez que a ouço falar do pai com preocupação e natural amor filial, apetece-me tanto mandá-la calar!...
Mas não posso fazer isso pois não?

sexta-feira, 24 de julho de 2009

E naquele tempo eu era muito jovem, muito branca e muito leve e tinha permanentemente por baixo dos olhos umas leves olheiras. Precisamente o oposto dos ideiais de beleza das senhoras velhinhas amigas da minha sogra, que eram do tempo em que as moças beliscavam as faces antes de ir à janela e usavam anquinhas por baixo dos vestidos. Assim, em conselho de anciãs, concluíram que o meu aspecto, aliado ao facto de eu comer yogurtes (essa mistela esquisita feita de leite estragado), era sinal inequívoco de que o meu sangue era mau, e contavam-me histórias de meninas que comiam yogurtes e morreram de leucemia no meio de grande agonia e sofrimento, como forma de me explicar que devia comer bifes e batatas e gemadas com cerveja preta.
Eu tentei não lhes dar importância, mas a insistência da conversa entranhou-se na minha cabeça e eu dei comigo a ler um livro sobre sintomas de doenças que havia lá em casa. Dizia às tantas que um dos sintomas da leucemia era a pela extremamente macia. Com a pulga atrás da orelha, perguntei ao meu marido: - "Achas que eu tenho a pele muito macia?" - "Acho pois!" - respondeu ele, certo de estar a fazer o que era correcto.
Eu desatei a chorar, e acho que essa foi uma das vezes em que um homem pensou que nunca se sabe como é que se pode agradar a uma mulher.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

E eis que o senhor muito bem posto e supostamente bem falante se sentou e abordou a questão do seguinte modo:

- Eu estava convencido que o processo já tinha seguido todos os seus "traumas", e afinal agora "recevi" esta carta!

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Era um homem quase grosseiro quase bonacheirão e o seu filho, miúdo de uns oito anos, vivaço.
Sentaram-se ambos à minha frente e chamou-me imediatamente a atenção a postura adulta e compenetrada da criança. Vinham por umas cópias dum projecto de arquitectura do qual não sabiam, nem o número, nem o nome. Mostrei-lhes o local em fotografia aérea, no monitor, e pedi-lhes que assinalassem o prédio exacto.
- Não é nada disso! - respondeu logo o pai - Não há lá nada que seja assim!
- É é! - adiantou-se o filho - então não vês aqui a nossa rua? E aqui a escola?
- Não é nada! Não queiras saber mais do que eu! - respondeu o pai já a ficar irritado.
- Ai isso é que é! - insistiu o garoto. E numa atitude surpreendente, dirigiu-se directamente a mim - Minha senhora, isso dá para pôr os nomes das ruas a aparecer?
- Dá - respondi - mas na verdade ainda nem todas estão cadastradas! - e accionei o layer com a toponímia.
- Estás a ver que não é? - disse o pai orgulhoso - A nossa rua não é essa!
-É - explicou o menino pacientemente - o nome que aqui está é o da rua ao lado, porque o nome da nossa rua ainda não aparece. Mas o prédio está aqui, é este! - e apontou com o dedo.

Depois de tudo estar resolvido e de ter chegado a altura de emitir a guia para pagamento das cópias, pedi ao pai o número de contribuinte, que ele papagueou logo ali sem se enganar e sem olhar a cábula.
- Ena! - comentou o filho - Tu sabes o teu número de cor? Eu não sei os meus!
- É para que vejas que no meu tempo, só com a quarta-classe, ficávamos a saber mais do que vocês agora com a universidade toda feita! Sabíamos decorar! Vocês não sabem nada! - e a seguir dirigiu-se a mim - É ou não é verdade minha senhora?

Eu... desviei os olhos e nem respondi.

terça-feira, 21 de julho de 2009

O menino, sentado na mesa do café, jogava playstation, alheado. A empregada que veio saber o que se encomendava comentou, orgulhosa como se tivesse acabado de formular uma teoria matemática para a posteridade:

- Tu tens uma playstation cor-de-rosa? Não tens vergonha? Cor-de-rosa é para as meninas!

A criança, sem responder, aproximou mais o rosto do jogo e calculo que tenha entrado para o lado de dentro e ficado rodeado de personagens fantásticas dum mundo onde não há cores apropriadas. A avó, em vez de a defender (ou pelo menos pôr aquela empregada empertigada no lugar o que valeria o mesmo), olhou condescendente para o neto, e adivinhou-se-lhe no olhar que concordava, como quem há muito se sente embaraçada por ter um neto “mariquinhas”.

Eu observava da mesa ao lado e não interferi. Mas tive muita vontade. Vontade de ir lá e dizer ao menino que fosse sempre feliz pela vida fora, feliz e simples como as árvores e como os rios, que se limitam a “ser” sem pensar em cores. Que teria que ser respeitado, até mesmo pela avó, com o seu ar de peninha dele e de si própria. Mas não fui. Fora dos jogos da playstation, as personagens não interagem à vontade, quando lhes apetece. Obedecem a regras, como a do “conhecimento pessoal”.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Estava a chegar da escola e a minha mãe chamou-me ansiosa. Não era aquela ânsia na voz que denunciava que eu tinha feito uma asneira qualquer e ia ficar de castigo. Era uma espécia de excitação que eu ainda não conhecia, por isso respondi ao chamado tranquila. A família estava quase toda reunida na sala de olhos postos na televisão. Quase, porque faltava o meu pai que estava sempre em qualquer lugar distante onde havia guerra contra pessoas escuras que eram más.
Eu olhei para o écran a tentar descortinar o que se passaria de tão importante. Como só vi imagens desfocadas e cheias de grão como quando havia temporal e a antena se virava no telhado, perguntei o que vinha a ser aquilo que os prendia a todos daquela maneira.
- É o homem na lua! - respondeu-me a minha mãe como se fosse imperdoável não estar tão entusiasmada como ela - O homem chegou à lua! Estão a aterrar lá!
Assim sendo, decidi prestar mais alguns minutos de atenção àquelas imagens sem interesse nenhum.
- Mas então a lua é assim? - perguntei.
- Como querias que fosse?
- Então mas onde estão as casas dos homens da lua? E onde estão os homens da lua? Não acontece nada?
- Não vive ninguém na lua, é só um satélite!
Então se não vivia ninguém na lua, se não havia qualquer hipótese de aparecer um ser fantástico com duas cabeças e três caudas como nos filmes do Thunderbird, se não ia haver nenhuma cena de perseguição nem de perigo, o que estava eu a fazer ali? A perder o meu tempo.
E regressei ao meu mundo imaginário onde o espaço era todo, todo, povoado.

domingo, 19 de julho de 2009

A senhora idosa: Oh menina! O seu colega, "onte", eu "bim" cá "pra" ele me dar duas, mas ele só me deu uma!
Eu, tentando pôr ordem na cabeça dela e na minha: Oh minha senhora, mas então vamos lá ver: A senhora veio cá tratar de quê?
A senhora idosa, com a voz cada vez mais estridente e suplicante: É que eu queria "lebar" duas! Percebe? Mas só "lebei" uma!
Eu: Mas duas quê minha senhora? Eu preciso de saber! Aqui tratamos de muita coisa!
Ela: Foi assim, eu queria duas e só "lebei" uma! Eu queria duas!
Eu (só mentalmente): Ai a minha "bida"!
Eu (em voz alta): Mas então vamos aqui esclarecer uma coisa: Eu preciso de saber o que é que a senhora veio cá tratar, senão não a posso ajudar!
Ela: "Atão"! Eu "bim" cá "pra" "lebar" duas!
Eu (já sem paciência nenhuma mas com vontade de gozar uma bocado - já agora! -, chamei o meu colega à minha mesa): D****, estou aqui com uma dúvida. Esta senhora diz que queria que tu lhe desses duas e tu só lhe deste uma. É verdade?
Ele, com dificuldade em aguentar-se, foi lá atrás rir um bocado e compor-se. Enquanto isso eu fiquei em frente à mulher, continuando a tentar perceber qual a natureza do acto que ela tinha apreciado tanto que queria levar duas vezes. Mas entratanto ele voltou, já concentrado e composto.
Ele: Essa senhora veio cá ontem buscar uma declaração para pedir a nova matrícula de ciclomotor.
Eu: É isso minha senhora? Uma declaração para o ciclomotor?
Ela (mais suplicante do que antes): Eu queria duas e ele só me deu "uma"!
Eu (só em pensamento): Oh minha senhora! Na verdade, nem percebo como é que ele lhe deu uma! Eu, no lugar dele, não lhe dava nenhuma! Nem de cortesia!

sábado, 18 de julho de 2009

Era uma família que passeava pelo centro comercial: Pai, mãe e uma miúda franzina de uns 10 anos.
Eu cruzei-me com eles várias vezes, e de todas elas disse mal da minha visão raio x para a vida particular das pessoas que não conheço de lado nenhum e nem de longe sonham que estão a ser observadas desta forma. Mas como é que eu podia não os achar óptimas personagens de romance picaresco? Só se fosse ceguinha!
Porque a figurinha deles era esta, sem pôr nem tirar: Uns dez passos atrás vinha o pai, magrinho e frágil, de camisa aberta com muitos pelos no peito, de mão dada com a miúda que como já disse era franzinha. À frente, a abrir caminho e a indicar a direcção a tomar, vinha a mãe. Grande e gorda, com muitos pneuzinhos estilo michelin e exibindo uma t-shirt cor-de-rosa schock, com a frase, a dourado: I'M TOO SEXY!

sexta-feira, 17 de julho de 2009

A minha avó tomou uma decisão e convocou todo o mulherio da família para ir limpar a drogaria do meu avô, à revelia. Segundo ela, aquela loja já não via uma limpeza há mais de trinta anos! Para mim foi uma excitação. Trinta anos era mais do triplo da minha idade na altura, o que significava que era bem possível encontrar ovos de dinossauro ao varrer o chão. Por isso, também quis ir!
Não encontrei os ovos, nem caveiras de pirata nem tesouros de princesa, mas também não me decepcionei. O lixo do chão já não saía à vassoura, mas saiu à picareta, em grossas camadas de bedum cinzento que, pensei eu, fariam as delícias de qualquer arqueólogo! Ou então, podia servir de plasticina, em quantidade suficiente para construir majestosas estátuas. Infelizmente não me deixaram mexer naquilo.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Acordei a meio da noite com um barulho ensurdecedor que não reconheci de imediato. Ainda a meio caminho entre a consciência e o sonho, levantei a cabeça da almofada alguns centímetros e tentei perceber o que se passava. Era música. Música da berra, qualquer coisa que se ouve mal se liga o rádio do carro. Depois alguns comentários em língua inglesa e outra canção mais conhecida do que fazer em França. "Grande lata!" - pensei eu - "A estas horas a ver televisão nestes decibéis, e num prédio! Amanhã tenho que me levantar cedo para ir trabalhar! Quem será o cabrão?"
Levantei-me e fui à janela tentar descobrir de que apartamento vinha aquele chinfrim. Era do lado direito. "Caramba! Não me digam que são os velhotes do 3.º B!".
Voltei para a cama. Fosse quem fosse, talvez se cansasse e desligasse aquilo em breve. Mas nem pensar. A festa continuou por mais uma boa meia-hora, e eu já a ficar numa pilha de nervos e com vontade de atirar um vaso da varanda contra a janela de alguém. Decididamente, assim, nem valia a pena tentar dormir. Levantei-me para ir ao xixi e a seguir fui à cozinha fazer um chá. Ainda ia no corredor quando vi umas luzes que piscavam da porta da minha cozinha. "O que é isto?" - pensava eu já um bocado assustada.
Entrei. E nem me digam nada. A minha própria televisão, que andava um bocado marada, tinha-se ligado sozinha e estava sintonizada na MTV em altos berros. Desliguei-a, envergonhada, e fui-me deitar.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

A minha avó tinha ido a Fátima e trouxe uma caixinha de música que tocava o Avé Maria.
Era uma espécie de casota de cão pequenina mas decorada a flores brancas de plástico e com uma portinha de vidro que permitia ver, lá dentro, a imagem da santa olhando de viés para o chão como se não tivesse nada a ver com nada. E depois abria-se a portinha de vidro e a música arrancava. Era a versão instrumental em xilofone barato do tema que eu estava habituada a ouvir em vozes esganiçadas de beatas velhas: A treze de Maio, na Cova de Iria, aos três pastorinhos, apareceu Maria. Avéééééé!!! Avééééé!!! Avé Mariaaaaaaaaaaa!!!!...
Quando não tinha nada para fazer e estava à espera que começasse a emissão da RTP, sentava-me na poltrona do meu avô a abrir e a fechar a porta da caixa de música muito depressa para fazer a música parar e arrancar sem nexo. Quando me fartei dessa brincadeira, tentei pôr a música a tocar de trás para a frente, o que exigiu alguns ajustes técnicos na máquina, embora sem sucesso. Depois, tentei virar a cabeça santa para cima e arranquei as pombinhas pousadas em cima da base da imaculada vestimenta.
E foi assim que a minha avó ficou sem a caixinha de música.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Encontrei uma ex-aluna, daquelas que ficam na memória. No ano em que fui professora dela, teimou que queria ser modelo fotográfico e queria que a escola a autorizasse a levar uns amigos para a fotografarem na escadaria em bikini. Para fazer o portfolio, dizia ela.
Era uma aluna um pouco abaixo de medíocre. Durante as aulas, olhava para nós com os olhos muito abertos como se estivesse a acontecer alguma coisa fantástica e para aí a quinze minutos de acabar, perguntava:
- Oh professora, isso já é matéria?
Era um desespero. Mas não era má rapariga. Pelo contrário, apesar de nos moer o juízo com as suas ideias disparatadas, era fácil simpatizar com ela. Estava sempre feliz.
Encontrei-a. Pesa mais uns vinte quilos e vende peixe numa carrinha frigorífica.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

- Esse terreno fica em reserva ecológica, duvido que lhe seja autorizada uma construção aí.
- Isso é o que vamos ver!
- Estou apenas a informá-lo, como me compete (que é como quem diz, estou-me a borrifar para os teus esquemas, não te conheço, não sou tua amiga nem quero ser)
Ele arrumou os papéis e levantou-se para sair. Mas antes, ainda fez o favor de deixar a dica:
- Sabe que há muita maneira de fazer um burro comer palha!

Sei. E também sei que devia ganhar o dobro.

domingo, 12 de julho de 2009

- E pronto. É tudo.
- Mas eu agora não me vou embora.
- Desculpe, não entendi.
- Ah pois! Estive uma hora e quarenta à espera da minha vez, agora tenho o direito de ficar aqui uma hora e quarenta a ser atendido!

Será a isto que chamam "A Lógica da Batata"?

sábado, 11 de julho de 2009

-E aqui onde diz "na qualidade de", ponho "pedinte" não é?
-Pedinte??? Porquê?
-Porque sou eu que venho pedir a certidão...
-Ah... pois... Não, ponha proprietário.

A língua portuguesa é muito traiçoeira.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Foi num sarau de ginástica onde ia actuar a minha filha mais velha, num esquema colectivo de fitas e bolas. E eu lá fui, com os outros dois mais novos e armada de câmara de vídeo, daquelas VHS que eram capazes de matar alguém se lhe caísse em cima da cabeça.
Depois de muita seca e de miúdas e graúdas a dançar porcarias sem jeito nenhum, chegou a vez dela. Eu, lá me levantei, de câmara em punho, e escolhi o melhor ângulo para captar para a posteridade aquele grande momento para a humanidade. Nervosa, claro! E se ela se enganasse? E se corresse mal?
O esquema começou com as miúdas em pose de partida, todas penteadinhas e de fatinho igual, tão lindas! Mais linda a minha do que as outras, claro! Mas a cerca de um minuto do fim, aconteceu o que eu mais temia: A fita da minha filha enrolou-se na fita de outra e ambas deram um nó que, quanto mais se puxava, mais cego se tornava. E enquanto o resto do grupo continuava o esquema, confuso com o que estava a acontecer, a minha filha e a outra miúda desatavam um nó à unha, paradas no meio do pavilhão. E eu ali, de câmara de vídeo na mão, lavada em lágrimas...

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Esperei o meu primeiro irmão com impaciência. Por um lado, porque precisava de alguém para brincar, por outro porque precisava de alguém para brincar, já! Mas na verdade, com o avanço de quatro anos que eu levava do futuro rebento, era com alguma apreensão que via a possível falta de capacidade do dito para me vir a acompanhar, visto que ainda iria passar por aquelas fases chatas das fraldas, de não saber andar e só dormir, de não saber falar mas só chorar e de passar a vida com a chupeta na boca, enquanto que eu não parava de crescer. Para minimizar o prejuízo que todas estas evidências me trariam, desejava que pelo menos saísse rapariga, já que não conhecia nenhum rapaz que fosse suficientemente competente para montar uma casinha de brincar, vestir as bonecas, pô-las por ordem para o chá da tarde ou fingir que uma panelinha de plástico cheia de pedras e terra era uma sopa. Curiosamente, os meus pais passavam a vida a desejar que fosse um rapaz. Logo eles, que até aí sempre me tinham feito as vontades! Falavam com os amigos e os vizinhos e diziam que gostavam de ter "um casalinho", coisa que eu achava estranha por não ter a menor intenção de vir a casar com o meu irmão.
Finalmente, quando chegou a hora, o destino confirmou que todos os deuses estavam contra mim, nasceu mesmo um rapaz! Pior ainda! Embora eu esperasse pacientemente dia após dia que ele saísse daquela espécie de coma consciente em que os bebés vivem mergulhados para o ensinar a brincar às casinhas e a andar de triciclo, ele não aparentava qualquer sintoma de progresso. Como se não bastasse, a minha mãe passou a andar obcecada por aquela cagona criatura e deixou, como por magia, de me fazer as vontades. Por isso, resolvi tomar o assunto nas minhas próprias mãos: Um belo dia em que todos os adultos da casa estavam distraídos, aproximei-me do casulo de rendas e folhinhos onde a entidade dormia descansada e de consciência tranquila como se não tivesse culpa de nenhum dos cataclismos que se passavam à sua volta e tentei desmontá-la como fazia às bonecas de que já estava farta. Não consegui. Ainda eu estava no princípio da missão, a tentar separar a mão direita do braço, quando os berros histéricos daquela coisa atraíram a atenção de toda a gente que acorreu em seu auxílio. Fiquei de castigo, e que me lembre foi a primeira vez que tal aconteceu. Passei muitos dias e meses a perguntar a mim mesma se não seria possível devolver aquela encomenda à cegonha francesa que a tinha trazido. Foi preciso passar alguns anos para que eu me habituasse ao novo ser sem ter vontade de o tele-transportar para marte.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Um momento inesquecível foi quando a Tia M**** trouxe das Caldas da Rainha, para oferecer à D. S*******, senhora com pretensões a muito educada e fina, um baton de onde saía, quando se rodava, uma pilinha vermelha pequenina como a dos cãezinhos lulus.
- Ai, obrigada, porque é que se esteve a maçar? - perguntava ela antes de abrir o presente, com aquele tom de quem quer dizer de facto "Esta gaja pensa que eu não tenho batons? Para que raio quero eu esta porcaria?"
E logo a seguir, com aquilo na mão já de segredo desvendado, os netinhos à volta em grandes risadas, sem saber se devia rir também ou atirar com o fálico cosmético à cabeça da velha. Optou por um sorriso muito, mas mesmo muito amarelo. E sobretudo, indisfarçavelmente contrariado.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Criar enormes redes de amigos não é uma necessidade de hoje quando se tem menos de vinte anos. Hoje, essa tarefa apenas é facilitada pela internet. Mas nós também o fazíamos, duma forma que hoje suscita tantas questões à miudagem como o mistério de termos que nos levantar do sofá para mudar de canal (quando passou a haver mais do que um).
Fazíamo-lo por carta. Sim, carta, aquelas coisas escritas em papel com esferográfica e metidas dentro dum envelope, que por sua vez leva um selo colado com cuspe e demora pelo menos um dia a chegar ao destinatário. Eu, por volta dos meus treze ou catorze anos, tinha um enorme grupo de amigos virtuais, que não conhecia pessoalmente, e com quem trocava ávida correspondência. Hoje, lembro-me particularmente dum rapaz que morava na Venda do Pinheiro. Trocámos mensagens sucessivas acerca da localização geográfica de tal sítio, eu a perguntar onde ficava e ele a responder-me que era ao pé da Asseiceira Grande. Até que desisti de perceber. Se ele me tem dito que era xis kilómetros a norte de Lisboa, tudo tinha sido simples. Mas acho que nesse tempo, o mundo de cada um era mais pequenino.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Lembro-me distintamente desta conversa que tive com o meu professor de música e a minha professora primária, que era a mulher dele, quando tinha nove anos. Lembro-me como se tivesse sido há bocadinho durante o almoço. Lembro-me melhor dela do que de coisas que fiz ontem.

EU: Porque é que vocês só ouvem música velha?
ELA: Nós ouvimos música do tempo em que éramos jovens como tu.
ELE: É assim que as coisas acontecem sempre. As pessoas ficam marcadas pela música da sua juventude e é dessa que gostam durante toda a vida. Percebes?
EU: Eu acho que não vou ser assim...
ELA: Vais vais! Tu agora é que achas que não vais! Mas com os anos vais ver, lembra-te desta conversa daqui a uns trinta ou quarenta anos e pensa - Afinal eles tinham razão!"

E eu lembro-me. Muitas vezes. Lembro-me que afinal eles não tinham razão.

domingo, 5 de julho de 2009

A senhora inclinou-se na minha direcção e segredou-me excitadíssima:
- Já viu ali atrás de mim?
Eu olhei e o que vi foi uma sala de espera cheia de gente para atender a dez minutos da hora de encerrar. Já sem muita paciência perguntei-lhe:
- Não vejo nada de especial, é o quê?
- Shhhhhhh!!! - recomendou ela aflita - Ali! Mesmo atrás de mim! É a Sónia, a que esteve no Big Brother!!!
- Não conheço - respondi.
Depois, perante o ar decepcionado, quase humilhado, da minha interlocutora, tentei remediar qualquer coisinha:
- Sabe, é que eu não vejo televisão.

sábado, 4 de julho de 2009

Ela era assim. Não era totalmente má pessoa, que eu saiba nunca matou ninguém à fome nem com tortura lenta, nunca fez um desfalque no emprego nem tinha cadáveres enterrados no quintal. Mas era assim.
No dia em que a levei comigo ao super-mercado, estavam à entrada a oferecer amostras duma marca nova de detergente. Eu entrei, ofereceram-me uma caixinha, eu aceitei e fui à minha vida. Entretanto deixei de a ver e já começava a pensar que, apesar de chata como a potassa, a tinham raptado. Mas meia hora depois desfez-se o mistério. Ela apareceu ao pé de mim com um ar vitorioso como se lhe tivessem conferido um doutoramento honoris causa e contou-me orgulhosíssima o que tinha andado a fazer:
- Eles estavam a oferecer detergente, viste? Então eu passei uma vez e saí, dei meia volta e entrei outra vez. Fiz isso dez vezes! E só parei porque os antipáticos me disseram que já tinha passado muitas vezes e não me davam mais!
Então, feliz como uma noiva de Santo António, desviou um pouco o casaco que trazia dentro do carrinho de compras para que eu visse o espólio: Dez caixas de amostra do novo detergente!

sexta-feira, 3 de julho de 2009

De todas as fotografias do meu passado, há umas que me perturbam particularmente. São as do primeiro casamento do meu tio J***, que contrariou a tradição casando em pleno inverno. Não foi com certeza por isso que o casamento durou pouco, mas foi por isso que se tornou um dos maiores dramas da minha vida.
Como sempre acontece em casamentos e baptizados, todos os convidados vão de farpela nova. E assim foi no caso vertente. Apenas com um pequeno pormenor: Naquele tempo, não era costume perguntar-se às crianças o que queriam vestir, apresentava-se-lhe a roupa decidida e estava feito. E foi o que fez a minha mãe, que me comprou umas calças de fazenda e uma camisola de pura lã, tudo de óptima qualidade, afiançava ela com a boca a fugir-lhe para o "Ingrata!", e eu acreditava, mas cuja aspereza me fez andar todo o dia direita, quase sem me mexer. Qualquer movimento em falso me provocava comichões insuportáveis.
Quando olho para mim naquelas fotografias, é isto que vejo: Um robot da legião de tropas do Darth Vader.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

A professora mandou fazer um poema para o dia da mãe e eu fiz. Naquele tempo, fazer o que as professoras mandavam era uma questão de sobrevivência.
Não é que eu não tivesse feito qualquer coisa para o dia da mãe, voluntária e alegremente. Só que talvez não fizesse um poema. Talvez inventasse um novo gadget para a cozinha, talvez fizesse uma pintura abstractamente tosca, ou qualquer outra coisa tão inútil como um poema. Mas se era preciso um poema, que saísse um poema! O meu centrou-se numa metáfora em oito versos e duas estrofes em que eu e os meus irmãos éramos retratados como frágeis passarinhos no ninho e a minha mãe era a incansável mãe pássara que passava o dia à minhoca para nos alimentar, grandes alarves! Azar tive quando a professora ficou tão espantosamente impressionada que enfiou na cabeça que eu havia de declamar aquilo na festa de final de ano que fazíamos habitualmente no salão da paróquia para toda a aldeia. Na verdade, a nossa festa era um êxito tão grande em *** ******** como as peças do La Feria são agora no Porto e todo o povo aguardava ansiosamente e pagava de bom grado os cinco escudos que custava a entrada e cuja receita revertia para a creche e/ou a biblioteca. Houve um ano em que, a pedido de várias famílias, tivemos que fazer duas sessões, sendo que a última acusou o nosso amadorismo em falhas, esquecimentos e barracadas várias.
A verdade é que, quanto mais eu lia o poema, mais o achava estúpido e menos me apetecia lê-lo em público. Só que não havia alternativa, se era para ler era para ler. E no dia da récita lá estava eu, infeliz como um jumento abandonado, a pensar como iria evitar uma apoplexia quando subisse ao palco. Quando chegou a hora fatal pensei que morria. Senti-me a criatura mais estúpida do planeta terra enquanto declamava o meu próprio poema e olhava lá para baixo, com a minha mãe a chorar de emoção e as outras mulheres a acenar com a cabeça em sinal de aprovação por tão grande prova de amor filial.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Há muitos muitos anos, num dos meus primeiros empregos, tive uma utente com o nome mais divertido com que já tive a oportunidade de me cruzar.
Nunca contei a ninguém, assim publicamente, mas agora acho que posso, até porque a senhora era tão velhinha e foi há tanto tempo que já nem deve ser viva.
Era a D: Maria da Conceição da Pita Lavada.
Pita da mãe e Lavada do pai...