quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Mesmo já com oitenta e dois anos feitos, ela recusava-se a aceitar que era velha. Referia-se às pessoas da mesma idade chamando-lhes "os velhotes coitados", e no dia do seu aniversário, ano após ano, dizia sempre a todos que fazia 69. E não, não era por malícia. Todos à sua volta duvidavam até da sua capacidade para alimentar qualquer tipo de brejeirice. Era porque na sua cabeça, a linha que traçava a fronteira entre a juventude e a velhice estava aí.
Mas a maior preocupação de todos era a noite de fim de ano. Mais concretamente o momento da passagem para o ano seguinte, à meia-noite em ponto. Porque nessa altura, desse para onde desse, ela fazia questão de subir a um banquinho para comer doze passas e formular doze desejos. Durante anos, lembro-me de passar esse momento específico à volta dum banco com mais cinco ou seis pessoas, à espera que ela, invariavelmente, se desequilibrasse e caísse. Alguém sempre a amparou e, também invariavelmente, ela fazia a observação "Não sei como é que isto me aconteceu!". Até hoje, nunca partiu uma perna.

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Conheci-a na loja de bairro onde ambas comprávamos o pão e o leite diariamente. Era gorda (não flácida mas roliça) e falava muito alto e sem pudor. Por isso, todos os pormenores da sua vida eram conhecidos de toda a gente, desde os problemas de pilosidade das clientes que frequentavam o seu salão de estética até ao segredo da eterna juventude que, segundo ela, era esfregar todos os dias a pele com óleo alimentar. Também contava muitas coisas sobre a sua rival nas questões amorosas, que ela apelidava de "a mulher do meu marido, essa vacarrona!", fazendo questão de vincar bem a sua falta de carácter por se recusar a dar o divórcio àquele que por usucapião lhe pertencia. Sabia-se que "na cama, era uma merda!" e que por isso o pobre homem teve que a deixar e arranjar uma mulher à altura que, por coincidência, era ela própria.
Não gostava dela, nem deixava de gostar. Achava-lhe piada, até porque todos os dias me provocava um sorriso.
Soube há tempo que morreu. De doença prolongada e sozinha. O seu homem, coitadinho, tinha voltado para a vacarrona que era uma merda na cama.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Na loja de lingerie, um casal movimentava-se com grande à vontade. Ao contrário do que é habitual assistir nessas lojas, ele movimentava-se como se dentro daquelas paredes continuasse a ter vontade própria. Então, num momento em que um se encontrava num canto da loja e o outro no canto oposto, aconteceu o bizarro: Ela levantou bem alto um par de cuecas pretas de fio dental e perguntou com um vozeirão:
- E estas?
Ao que ele, levantando um par de cuecas vermelhas transparentes tipo short, respondeu:
- Não! Estas são muito mais sexy!

As mulheres que circulavam por ali, pouco habituadas a estas intromissões nos seus domínios, puseram um ar enjoado e rosnaram entre dentes qualquer coisa como:
- Quem são estes anormais?

domingo, 28 de dezembro de 2008

Nunca senti um tremor de terra. Quer dizer, no meu tempo de vida já houve tremores de terra, mas eu nunca os senti. Não sei o que provoca esta minha insensibilidade ao fenómeno. Sei que, durante o maior de todos, eu estava ao cuidado da minha avó, no norte, enquanto os meus pais se tinham deslocado a Lisboa em viagem, precisamente onde o terremoto foi mais sentido.
Lembro-me da minha avó me tirar da cama em grande pânico e ficar agarrada a mim na sala de estar, a chorar e a rezar pelos meus pais. E eu a pensar se aquilo seria um pesadelo maluco.

sábado, 27 de dezembro de 2008

Ser analfabeto pode ser um obstáculo em muitas frentes e de muitas maneiras que nós, os que aprendemos a ler, nem nos apercebemos. Eu, por exemplo, tenho uma tia-avó que em tempos, andou a lavar os dentes diariamente com creme de barbear. E só se descobriu quando se queixou aos restantes co-habitantes do péssimo sabor do dentífrico que tinham comprado.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Deprimente.
É ter uma conversa com o chefe do sector financeiro para esclarecer uma dúvida sobre um determinado procedimento e ele pegar na máquina de calcular para ver quanto é dois por cento de cem. À frente dos vossos olhos incrédulos.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

-Odeio futebol!
-Também não gosto muito, de facto.
-Mas eu odeio! O futebol, as pessoas que nele se movimentam e os palermas que pagam para o ver!
-É um bocadinho pateta alimentar esse negócio, de facto. Mas isso é só a minha opinião!
-Mas eu odeio! Odeio essa gente que se deleita em orgasmos múltiplos com os golos do seu clube! Odeio-os!
-Uau! Mantém esse espírito de Natal! - pensei eu.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Hoje não há história. Estou em interrupção natalícia. Também mereço.

MERRY FUCKING CHRISTMAS!!!

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Era o fim da tarde de 23 de Dezembro e eu tinha acabado da fazer as compras de Natal, em filas intermináveis de lojas atulhadas. Atirei para dentro do carro os sacos que continham, em coisas inúteis, um valor suficiente para alimentar várias famílias durante um mês em certos locais do globo. Ainda bem que o mundo fica tão longe.

Com os níveis de stress no volume máximo saí para o trânsito, infernal, como se toda a gente que possui uma viatura tivesse combinado parar numa fila idiota entre o centro comercial e a minha casa. Dei a volta e resolvi apanhar a via rápida, mais longe porque me obrigava a sair da cidade e entrar de novo, mas, pensei eu, mais rápido. Assim que entrei, sem possibilidade de fazer inversão de marcha, um agente da autoridade de colete florescente fez-me parar. Tinha havido um acidente. Gravíssimo. E não se sabia durante quanto tempo a circulação iria permanecer interrompida. E então, naquela véspera de véspera de Natal, época de paz, amor e dizem, solidariedade, eu pensei, irritada, que raio de gente se teria lembrado de ter ali um acidente àquela hora só para me chatear.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Na minha infância não houve Pai Natal. Houve Menino Jesus. Era ele que trazia os presentes e nós acreditávamos. Embora no meu caso, com algumas reservas. O Menino Jesus que eu conhecia, aquele que jazia no presépio lá de casa e também nas imagens da igreja, era uma figura de loiça de aspecto barroco. Um bebé beje com bochechas redondas em rosa clarinho e muitas gordurinhas nas pernas, braços e tronco. De olhos muito abertos e cabelos em caracóis loiros. Sempre frágil de bracinhos abertos como se estivesse a cair de costas num precipício.Fechava os olhos e concentrava-me com muita força a tentar imaginar aquela figura de criança tristonha a descer pela chaminé enorme lá de casa e a deixar em cima do fogão a gás um embrulho com uma boneca. E não dava. Havia com certeza uma qualquer chave para o mistério de que eu não dispunha.
Mas enquanto o Menino Jesus continuasse a deixar-me, todos os anos, uma boneca linda com um vestido de folhos e olhos de abrir e fechar, não iria questionar a veracidade da história.

domingo, 21 de dezembro de 2008

Na perfumaria, em hora de ponta das compras, movimentava-se um casal de aspecto rude e alguma idade, cheirando testers. Ela, de lenço na cabeça e avental, lamentava-se de forma particularmente audível:
- Não sei que faça! Nada aqui me cheira bem! Há uma coisa ou outra que não me cheira assim mal! Mal! Mas bem, nada me cheira! Que chatice! A gente tem que lhe fazer uma atençãozinha, temos que comprar qualquer coisa!
Até que ele, grande e embrulhado num sobretudo à pastor, acabou com a conversa:
- Olha, sabes o que te digo? Quando ela morrer já não precisa dessa merda para nada! Vamos embora!

sábado, 20 de dezembro de 2008

Lembrei-me desta conversa que tive com um dos homens mais toscos que já conheci e que infelizmente era director da organização onde eu trabalhava, e escrevi-a para participar no Grande e Espectacular Concurso Incompreensível

ELE: Tenha paciência, eu não a posso promover!
ELA: Porquê?
ELE: Porque é que acha? Pense lá!
ELA: Não sei...
ELE: Já viu que se for promovida passa a ganhar mais que o seu marido? Ah! Ah! Ah! Essa era muito boa! Os dois a trabalhar no mesmo sítio e a mulher a ganhar mais! Depois como era lá em casa?
ELA: Como era o quê?
ELE: Ora! Não se faça desentendida!

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Fui abordada por um homem carregado de autocolantes e folhetos.
- Só um minutinho minha senhora! É para as criancinhas cancerosas!
Senti uma repulsa instantânea e afastei-me. Alguém que realmente se preocupe com o bem-estar de crianças doentes, ou que viva o problema duma forma próxima, poderá pôr aquele sorriso de vendedor de banha da cobra e chamar-lhes "criancinhas cancerosas"?
Até estremeci.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Hoje cruzei-me na rua com um casal. De idade avançada e ar circunspecto. Apenas consegui fixar uma frase da conversa que travavam, e foi quando ela disse:
- Eu, tudo o que me põem na mão tento deixar o mais direito possível.

- Meu Deus! - pensei - Que frase tão rica! Poderia levar tão longe numa história!

Mas depois decidi deixar isso para vocês.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Quando eu era criança, mesmo criança, morava numa aldeia onde quase ninguém tinha, pasme-se, casa de banho. Portanto, aquele compartimento com uma banheira, uma retrete, uma bidé, um lavatório e água corrente quente e fria. Isso. Na minha casa havia uma por isso, para mim, era uma coisa tão normal como respirar ou existir. Fiquei a saber que não era assim tão normal para toda a gente quando um dia fui brincar para casa duma colega depois da escola. Foi quando lhe disse que queria fazer xixi e lhe perguntei onde era a casa de banho. Ela levou-me então numa pequena viagem a pé por entre couves, milho e campos de batatas, até se avistar uma pequena cabana de madeira com cerca de um metro quadrado. Quando lá chegámos, ela abriu a porta e disse-me:
- É aqui.
Eu, completamente sem palavras, olhava para um local escuro, mal-cheiroso até à náusea, com uma espécie de banco de madeira no qual havia um buraco redondo, um pano branco que já era castanho pendurado por um prego e milhares, milhares de moscas a sobrevoar furiosamente tudo aquilo.
- Ah! - disse eu - Tenho que ir para casa! Estou atrasada!
E corri, deixando a minha colega à porta da retrete rural a olhar para mim sem perceber o que se passava. Corri até chegar à minha casa, sem parar, e era seguramente uma distância de um quilómetro. Não sei porquê, mas corri sem me cansar nem olhar para trás, como se fugisse dum perigo terrível.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Por insistência duma grande amiga, versada em coisas da igreja e da religião e já crismada com distinção, acedi a ingressar no grupo de jovens cristãos da nossa paróquia. Devia ter nessa altura uns catorze anos e o catecismo interessava-me tanto como ser atropelada por um autocarro desgovernado e sem travões. Mas perante a descrição que ela me fez dum grupo sensacional de jovens onde se vivia um ambiente de amizade e entreajuda sem igual, lá fui.
O primeiro problema que tive foi convencer a minha mãe de que ia para ali. Desconfiada, quis saber que coisa horrível ia eu fazer que precisava de ser disfarçada com a desculpa do grupo de jovens. Tive que jurar a pés juntos e pela minha vida até ela me liberar, não sem me olhar duma forma estranha, como se achasse que eu tinha sido trocada por aliens e já não era a filha dela.
O segundo problema foi quando entrei na sala adjacente à sacristia da igreja. O líder do tal grupo de jovens era apenas o garoto mais insuportável do liceu, aquele que me provocava voltas no estômago só de passar por mim, que tinha mais borbulhas na cara do que eu tinha discos da Susi Quatro e que era conhecido pela alcunha de "Pastinha" por se fazer acompanhar sempre duma pasta com papéis que ninguém sabia para que serviam. Depois de estar ali há uns quinze minutos, ainda só tinha ouvido o Pastinha a dar ordens, inclusive à minha amiga, que lhe obedecia como se ele fosse o guru das reuniões de jovens.
No intervalo, fui embora. Ainda tive a tentação de ir até casa em marcha-atrás, como se dessa forma pudesse fazer rewind e desfazer o que tinha feito. Mas depois achei que não dava. Já tinha mesmo ido a uma reunião de jovens cristãos.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Quando me casei pela primeira vez fi-lo, por insistência duma futura agora ex sogra beatíssima, pela igreja. Fi-lo contrariada mas, por variadíssimas razões que um dia contarei se me apetecer, fi-lo. O padre, sabedor das minhas qualidades anti-eclesiásticas, insistiu que eu deveria assistir pelo menos a uma missa antes de contrair matrimónio. Porque, explicou ele como se eu fosse muito burra, não é normal uma pessoa que nunca vai à missa nem sabe bem o que isso é, casar pela igreja. Anuí. Era mais uma no meio de muitas que não iria aumentar nem diminuir o meu risco de contrair úlcera.
Então, no dia seguinte, levantei-me da cama às seis da manhã e, pela calada, ainda de noite, apareci muito embrulhada num casacão, na missa das sete. Quando entrei, já atrasada, as cabeças de várias velhas veladas de preto voltaram-se na minha direcção. Ao contrário do que me pateceu fazer, não lhes levantei o dedo médio nem as mandei dar banho ao cão. Durante o tempo que durou a missa senti-me a Alice caída sem pára-quedas no reino da Rainha de Copas. Depois, saí para o ar fresco da manhã com a missão cumprida... e sem que ninguém conhecido me tivesse visto a... ir à missa.

domingo, 14 de dezembro de 2008

A D. Orquídea era a organista da igreja, casada com o maestro do coro de jovens. Tinham dois filhos branquinhos de bochechas rosadas que, apesar de não conseguirem acertar, nem no tom nem no compasso, também faziam parte do coro.
O maestro, em tempos, antes de conhecer a D. Orquídea, tinha sido o padre da paróquia. Depois, abandonou a carreira. E para quem ainda não soubesse da história, ela fazia questão de esclarecer a todos quantos elogiavam aos filhos, bem alto e ajudada pela acústica da casa de Deus, que transportava o eco da sua voz poderosa a todos os recantos, que:
-Pois claro que são uns anjinhos! Foram feitos ali na sacristia!

sábado, 13 de dezembro de 2008

Às vezes lembro-me dela. Tinha umas posições políticas muito peculiares. Por exemplo, era contra a homossexualidade porque tinha medo que um malandro qualquer lhe seduzisse o marido, o que deixava toda a gente à volta a perguntar para dentro que raio de casamento tinha ela. Apesar de ser provavelmente a pessoa com o mais baixo QI que conheci até hoje, tinha um lugar de chefia num serviço público. Ainda muito jovem e muito ingénua, perguntei a alguém como era possível. Responderam-me que o marido era deputado do Partido Xis, e olharam para mim com aquele olhar que significa "Bem vinda ao mundo real".
Apesar disso, não entrei ainda totalmente nos mistérios do mundo real. Custou-me. Foi aos bocadinhos. Tanto que uns meses mais tarde, quando o tal Partido Xis teve uma derrota brutal nas eleições cedendo a maioria absoluta para a oposição, eu ainda me consegui surpreender quando a vi fazer uma grande festa e um brinde com champanhe. Explicaram-me depois que o marido, apesar da derrota, tinha conseguido mais uma vez o lugar de deputado. Foi o último da lista a conseguir entrar.
Acho que ainda hoje não me habituei a estas "coisas normais".

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

- Ficas aqui sentadinha e não sais!
Eu tinha quatro anos mas a minha mãe sabia que eu não sairia dali. E nesse tempo não se ouvia falar em rapto de crianças. Fiquei à espera, sentada na soleira da porta gigantesca dum prédio velho e degradado. Também não saberia onde ir. Não conhecia aquele bairro, nem aquela cidade, nem as pessoas que passavam e olhavam curiosas para uma miúda forasteira de saia de pregas e sapatinhos de verniz.
O assunto que a minha mãe tinha ido tratar com a amiga que tinha vindo no comboio connosco não era apropriado para crianças. Não era suposto eu saber do que se tratava e muito menos assistir. Só que eu sabia muito bem. As crianças, quando querem, são os seres mais atentos do mundo a pequenos sinais, pequenas frases e ao que está para além delas.
Esperei obediente. Quando elas voltaram, a amiga da minha mãe vinha a sangrar do nariz e o vestido estava descosido de lado. Consequências do ajuste de contas que tinha ido fazer com a amante do marido, caixeiro-viajante. Não perguntei nada porque nada me diriam a não ser mentir. Eu sabia.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Em hora de ponta no centro comercial, com centenas de pessoas nas filas para os diversos "fast-food", uma senhora algures ali no meio atrapalhava a fluidez dos almoços das formiguinhas. Debruçada sobre um carrinho de bebé, fazia aquelas figuras todas que alguns adultos fazem ao pé dos bebés: Falava com uma voz estranha esganiçada, produzia sons não identificáveis e abanava a cabeça muito excitada.
Quando se afastou para se juntar à filha adolescente que estava perto de mim, fiquei a saber que ela nem conhecia o bebé em causa, nem a mãe. Muito entusiasmada e com muitos decibéis, partilhava com a miúda, visivelmente envergonhada, as suas emoções:
- Ai o que eu gosto de bebés! Gosto tanto!!! Mas só tenho uma!
E enquanto dizia isto, fazia festinhas no queixo da sua bebé, seguramente com uns quinze anos de idade e uma vontade louca de ser teletransportada naquele momento para o Alasca.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

É sempre enternecedor ver um grupo de homens a assistir a um jogo de futebol na televisão.
Hoje eram quatro, num restaurante onde eu estava. Dois deles, sentados do lado errado da mesa, arriscaram um torcicolo durante 90 minutos. Mas os seus olhos brilhavam como se tivesse chegado o Pai Natal. Foi bonito!

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

É uma vila lindíssima, situada entre montanhas e rodeada de verde. Mesmo antes de chegarmos, enquanto serpenteamos pela estradinha que nos leva ao vale, já estamos de a pensar como é possível um lugar ser tão belo como as paisagens que vimos em lugares virtuais, inventadas por construtores profissionais de beleza. Num museu, por exemplo.
Estes pensamentos foram interrompidos por um jovem que, na beira da estrada, contemplava uma pedra de forma obsessiva. Nem levantou os olhos para o carro, o que seria de esperar tendo em conta que passam lá tão poucos. Avançámos e esquecemos.
Fomos ao que ali nos levava. Ao longo das horas em que lá estivemos, reparámos que não havia rede de telemóvel, nem um café ou restaurante (apenas uma pequena taberna), nem lojas, nem qualquer tipo de diversão. Isso não nos incomodou muito porque logo partiríamos para o meio da confusão onde temos tudo. Não nos lembrámos, claro, que talvez incomodasse quem ali mora.
No caminho de volta, o mesmo jovem que tínhamos visto à chegada, continuava à beira da estrada, agora de pé, hirto como uma estátua e tentando equilibrar sobre a cabeça a pedra que antes observava.
Será este o efeito da interioridade?

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

A senhora à minha frente na fila da caixa do super-mercado tinha algumas embalagens cujo conteúdo não identifiquei mas que, à distância, me pareceram conter adereços para um remake do Saw. Dado o contexto, no entanto, devia tratar-se de outra coisa qualquer.
- Ai, eu gosto tanto disto! – comentou a empregada quando passou o código de barras – Eles vendem isto como se fosse para cães mas é mal empregadinho!
- Ah mas eu não o levo para os cães! É para mim! – respondeu a cliente gorda e a cheirar a uma mistura de lareira com humidade – O meu marido é que não come. Anda sempre a arrotar a isso. Não pode.
Foi um belo momento de demonstração de amor conjugal.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Até hoje, ela guarda na memória o momento mais embaraçoso da sua vida: o dia em que viu parar à sua porta um ex-colega a quem pediu que fosse a casa dos pais buscar o que ela pensava ser um saco de vegetais. Trazia o carro novinho, lavadinho... a abarrotar de tralhas que a sua família demoraria mais de um ano a consumir. Isso até nem era o pior, podia partilhar com ele e o favor ficava pago, digamos. O pior era a galinha viva! Numa avenida com lojas da moda nos pisos de baixo e apartamentos nos de cima, com parqueamento pago e onde, apesar de não saber o nome de ninguém, todos se conheciam de vista, ela ficou à porta do prédio com uma galinha viva, presa a uma pata por um cordel do qual ela segurava a outra ponta, como se fosse um cãozinho de estimação mas que cacarejava. Lembra-se que olhou para todos os lados e, discretamente, largou o cordel e subiu.
No dia seguinte de manhã, a galinha debicava à volta duma das árvores da avenida e à tardinha, quando chegu do emprego, ainda lá estava. Claro que não ia matá-la! A experiência mais radical que tinha em assassinato de coisas vivas era a de pôr insecticida nos quartos antes de sair de casa! Se tivesse um revólver!... Com silenciador!... Era rápido e nem tinha que lhe tocar!... Abanou a cabeça para afastar a ideia estúpida e nessa noite, pela calada, saiu de casa às três da manhã, pegou na galinha, meteu-a no porta-bagagens, e foi abandoná-la na faixa central da via rápida mais próxima.

sábado, 6 de dezembro de 2008

Já na adolescência, decidi que iria viver de actividades para-normais. Tinha acabado de ler um livro das selecções do Reader's Digest sobre pessoas com poderes psíquicos extraordinários e aquilo não me pareceu nada difícil. Mesmo nada.
Sentei-me à secretária, pousei uma esferográfica no meio da dita e concentrei-me totalmente, na intenção de a fazer mexer por meio da psicocinese ou poder da mente sobre a matéria. Uns minutos depois, ela continuava imóvel, insensível a todos os meus esforços mentais.
Talvez não me tenha concentrado o suficiente. Talvez tenha escolhido mal o objecto a mover. Mas foi nesse dia que decidi que, provavelmente, iria ter que trabalhar e que era melhor pensar em estudar qualquer coisa.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Mais tarde decidi que iria enveredar pela carreira espiritual. Ia ser vidente e viver de dar autógrafos aos peregrinos. Fui ter com a minha mãe e perguntei-lhe:
- Porque é que a senhora de Fátima escolheu aquelas três crianças para aparecer e não outras ? - é que eu já tinha visto a fotografia dos pastorinhos e juraria que, se fosse eu a virgem imaculada, muito mais depressa aparecia a alguém limpinho, penteado e bem vestido como eu própria do que àqueles miúdos de sobrancelhas espessas e olhar número zero.
- Porque aquelas crianças portavam-se muito bem e nunca faziam disparates!
Ora pois então, se o segredo estava em portar bem, que não fosse por isso! Retirei-me para o meu quarto e dei início ao que pensei ser o início da minha carreira de vidente e santa. Sentei-me na cama e fiquei muito quieta e calada (que era a única maneira que eu conhecia de me portar bem) e fiquei à espera que a nossa senhora aparecesse, envolta num manto branco, pousada numa nuvem e rodeada de luz, e que me dissesse qualquer coisa como:
- Uf! Finalmente aparece-me uma criança normal!
Passados uns dez minutos e como nada acontecia, concluí que as aparições da mãe de Jesus eram uma treta... e decidi rever os meus parâmetros.
Enquanto isso, para me entreter, corri lá para fora a cortar mais uns rabos a lagartixas.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Teria talvez uns seis anos e atravessava a fase dos contos de princesas e fadas quando, pela primeira vez, pensei a sério no meu futuro. Fui ter com a minha mãe e perguntei-lhe:
- Onde estão as princesas e os príncipes?
- Princesas e príncipes já não há!
- Como não???!!!
Logo quando eu tinha acabado de delinear um plano perfeito em que me iria tornar princesa vinda directamente da plebe, ao casar com o príncipe num golpe semelhante ao do sapatinho de cristal! Logo quando eu tinha decidido que iria passar o resto da vida, a partir daí, a escolher vestidos e a participar em bailes de gala!
Infelizmente, este pequeno revés fez-me pensar que tinha que rever os meus parâmetros.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

A empresa era francesa, por isso, naturalmente, chegou um director francês. Particularmente arrogante. Todos os trabalhadores eram portugueses. E como bons portugueses, nunca questionaram a autoridade, nem nunca se defenderam das humilhações diárias. Mas também, como bons portugueses, contornaram a questão da vingança.
Logo nas primeiras semanas, ao ouvir repetidamente a expressão "não tenho pachorra", o chefe francês perguntou o que queria dizer aquilo. O funcionário que lhe explicou, explicou-lhe bem, mas "esqueceu-se" de mencionar que ele não estava a pronunciar correctamente. O director passou anos em Portugal a usar a expressão "não tenho pachacha", sem saber o que estava dizer, e quando toda a gente à sua volta se ria, ele achava apenas que tinha um sentido de humor de primeira água.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

A pedido duma ex-colega que morava longe, ele foi a casa dos pais dela buscar umas "coisinhas" que eles lá tinham para lhe mandar. Depois de vários quilómetros por terra batida, facilmente ultrapassáveis, apesar de tudo, com a ajuda do GPS, mas impossíveis de vencer sem ele, lá chegou a uma casinha com quintal e um portão, atrás do qual a aproximação do automóvel provocou a excitação duma canzoada imparável.

Surgiu então uma senhora enrugada, de lenço na cabeça, bata de chita e botas de borracha. Que ia só buscar as coisas, era um instantinho. Apareceu com três sacos de laranjas e dois garrafões de vinho caseiro. Silenciosa e sem qualquer tique daquela delicadeza urbana mais ou menos de plástico a que estamos habituados, voltou para dentro. Deve faltar qualquer coisa. E faltava. Uma cesta com uma galinha viva lá dentro, só com a cabeça assustada e inquieta de fora da tampa amarrada com cordas. Quando tudo já estava dentro do carro, a senhora comentou qualquer coisa sobre ser uma pena desperdiçar tanto espaço. Desapareceu novamente e trazia mais um garrafão de azeite e uns enchidos que cheiravam pela aldeia toda assim que espreitavam da abertura do saco de hiper-mercado. Olhou para o carro. Já estava compostinho. Mas ainda levava mais uns quilos de feijão inchado e umas batatas. Foi buscar. Finalmente, ainda havia hipótese de transportar uma couvinha-penca que foi cortar na hora.

Depois de fechado o porta-bagagens do último modelo alemão, era visível através do vidro a cabeça duma galinha em pânico, encostada a um canto pela força duma frondosa couve. Ao lado, alguns sacos de plástico amontoados.

Sabendo que era superior a essas coisas, ele desejou "quand même", que nenhum conhecido se lhe cruzasse no caminho.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

- Eu nem tenho tempo para sofrer!...
Soou-lhe bem. Com impacto e dramatismo. Por isso repetiu, mas com pausas teatrais:
- Eu!... Nem tenho tempo!... Para sofrer!
Disse aquilo com a pose de protagonista de telenovela. Tanto, que por momentos cheguei a vislumbrá-la a preto e branco. Os seus interlocutores puseram um ar consternado. Isso encorajou-a a continuar o relato da sua saga. No entanto, a reacção dos ouvintes não significava, de facto, consternação. Era apenas o reconhecimento íntimo de que se encontravam perante uma daquelas pessoas a quem tudo corre pior do que às demais e disso tira um prazer masoquista inexplicável. E que por isso não vale a pena contrariá-la. Se nós tivemos 39º de febre, ela teve 40. Se partimos uma perna, ela também partiu mas com fractura exposta. Se os nossos filhos tiveram sarampo, os dela tiveram sarampo duas vezes. Se o nosso carro avariou, o dela está irremediavelmente perdido. Se a nossa mãe morreu, a dela morreu, levantou-se e voltou a morrer.

domingo, 30 de novembro de 2008

A senhora estendeu-me a carta que vinha entregar. Dizia que pretendia dar início às obras no dia 31 de Novembro. Eu, sem saber muito bem como referir o assunto, disse-lhe:
- É melhor emendar aqui para 1 de Dezembro. Novembro só tem trinta dias.
Logo depois, perante o embaraço da minha interlocutora, inventei uma história completamente idiota para a fazer sentir-se melhor:
- É muito natural! Não se sinta mal! Eu, uma vez, estava a pôr a data limite duma licença como 30 de Fevereiro e o computador não aceitava. E eu sempre a insistir feita parva!

Ou seja, não havia necessidade. Ela ficou com cara de quem estava a pensar qualquer coisa como:
- Trinta de Fevereiro! Que estúpida! Toda a gente sabe que Fevereiro nunca tem trinta dias!

sábado, 29 de novembro de 2008

Por motivos vários, entrei na universidade tardiamente. Por isso, nos primeiros tempos, sentia-me deslocada, às vezes até inferiorizada, pois achava que por não estudar há mais de dez anos teria dificuldade em acompanhar os outros, jovens e com os conhecimentos ainda frescos.
Esse sentimento abandonou-me completamente quando, em conversa com uma professora, ela me disse qualquer coisa como:
- Não se sinta mal! Eu pessoalmente até gosto dos alunos mais velhos. São pessoas que sabem o que é um verbo, um substantivo, um adjectivo...

Ah! Esqueci-me de mencionar que fiz um curso de "letras".

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Umas semanas antes do Natal junta-se a malta do escritório e toca de ir jantar. À marisqueira, ao alentejano que faz bacalhau com natas ou àquela tasca que faz pregos no prato e febras... à tasca. Fazem de conta que se gostam muito, mas não é hipocrisia. É a vontade de se gostarem muito. Alguns, gostam-se mesmo.
Cada um fica com a missão de comprar uma prendinha por um valor que só uma imaginação avançada permite ultrapassar de forma criativa. Depois, mete-se tudo num saco e distribui-se. Com a ajuda do vinho de jarro, todos se riem e batem palmas de cada vez que um presente é aberto e desvendada a surpresa. Os que bebem água, geralmente senhoras em dieta, riem-se também, por efeito do vinho dos outros. As prendinhas são sempre iguais, ano após ano. Velas, caixinhas das pequenas de Mon Chérie e Ferrero, bibelots de bradar aos céus. Também aparecem invariavelmente os gadgets de sex-shop, cuequinhas com tromba de elefante e pilinhas de dar corda. Compradas pelos engraçados. Todos os restaurantes simpáticos, nesta quadra, se enchem de grupos iguais com os mesmos tiques e a mesma rotina.
Depois, vão todos para casa, dormir e preparar-se para mais um ano de convivência com pessoas que não escolheram para passar, afinal de contas, a maior parte dos seus dias.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Como é que se distingue uma tia verdadeira duma tia falsa?
Uma tia falsa tem sempre qualquer coisinha que denuncia a sua origem como mulher de mestre de obras que enriqueceu, tornou-se empreiteiro e lhe ofereceu um jeep.
Esta era as unhas. Compridas e pintadas de vermelho histérico. Mas numa delas, o verniz lascado deixava visível uma linha escura de lixo, pelo lado de dentro.
Claro que, muitas vezes, quando abrem a boca, quase não se distinguem. As conversas são igualmente palermas.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Na esplanada da pastelaria do bairro onde moro, mesmo ao pé da minha casa, dois homens conversavam na mesa ao lado. Um terceiro chegou e disse:
- Então? Aquilo ontem é que foi um susto! Mas graças a Deus tudo correu bem!
Como na véspera tinha havido festa lá em casa, com grande algazarra e copos, por momentos fiquei a pensar que algo grave se tinha passado e que eu não me tinha apercebido. Um tremor de terra? Um incêndio no bairro? Um assalto? Um acidente? Pus-me à escuta, discretamente, para saber o que teria sido.
- O Sporting lá conseguiu ganhar! - continuou ele.
- Ah! Está bem! - pensei eu.
Isolei e continuei a ler o meu jornal.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Há uns anos, num jantar que fiz com um grupo de amigas, fizemos a mesmíssima figura triste que faz qualquer grupo de mulheres com os copos, num local público e sem um homem por perto para se portar ainda pior e elas passarem despercebidas.
Uma do grupo tinha arranjado há pouco tempo um namorado novo, que era camionista. E estava há alguns minutos a explicar às demais, com grande auxílio gestual, como praticavam sexo na cabine do camião, quais as técnicas para usar os bancos ou o volante como suporte, as posições mais favoráveis, essas coisas.
Até que reparámos que o restaurante todo estava em silêncio, com as pessoas voltadas para nós a ouvir atentamente as explicações dela.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Na mesa ao lado, só de mulheres, discutia-se pormenores da vida íntima. Uma, que ganhou um momento na luta pela voz mais sonante, fez-se ouvir em todo o restaurante:
- Eu lá no quarto tenho um varão para fazer uma lap dance ao meu marido de vez em quando!
Depois, tudo se diluiu em mais barulho e confusão de vozes e risos.
Em termos técnicos, uma lap dance não se faz num varão. Mas para efeitos do que ela pretende atingir, em termos práticos, deve dar no mesmo. Ou não. Porque a minha experiência diz-me que estas gajas que precisam de muitos artifícios para que os maridos reparem nelas, enfim...

domingo, 23 de novembro de 2008

Passei por ela na rua, na hora de almoço. Apressada e nervosa, mas perdida. Era uma mulher de meia-idade e com aspecto rural:
- Oh minha senhora! Sabe-me dizer "adonde" é a segurança social?
Expliquei-lhe. De onde estávamos, não era difícil. Preparei-me para ouvir o "muito obrigada" da ordem e virar as costas, mas não. Ela tinha necessidade de mais:
- Sabe, eu tenho que lá ir entregar estes papéis - e abriu o saco para eu ver que tinha mesmo papéis - que são do meu marido. Sabe que ele não deixa ninguém mexer nos papéis que são dele. Se ele descobre! Mas a minha filha foi lá, e sem ele saber, roubou-lhe isto. E ainda um cheque! Ai se ele descobre!
Sem saber o que lhe responder nem que reacção ter, dei-lhe um sorriso amarelo. Como quem diz "que história tão gira, agora deixa-me ir embora". Ela deve ter percebido. Ou não. Porque enquanto se afastava, ainda se virou para trás uma última vez e gritou:
- Quando morrer, deve pensar que leva tudo com ele! Deve levar deve!

sábado, 22 de novembro de 2008


- Quero uma licença para apanhar míscaros. É aqui?
- Míscaros?! Não. Não precisa de licença para isso!
- Não? Então disseram-me que sim. Fui tirar licença de uso e porte de arma e tudo! E agora diz-me que não é preciso?!
- Mas o senhor quer apanhar cogumelos com caçadeira?!
- Quais cogumelos? Eu disse míscaros! Míscaros são pássaros que a natureza nos dá!
E ainda remoeu entredentes, que:
- Esta gente da cidade!...

Que míscaros fossem pássaros eu nunca tinha ouvido dizer. Mas a parte interessante mesmo foi aquela do "que a natureza nos dá". Alguém que trata "os da cidade" como aliens, que pensam que os pássaros são fabricados num complexo industrial algures na China:

sexta-feira, 21 de novembro de 2008


- Bom dia!!! – disse ele com entoação de vendedor de enciclopédias. E estendeu-me o bacalhau com a mesma atitude.
Sentou-se e iniciou o seu discurso assim:
- Eu sou o Presidente da Junta de Freguesia de ********!!!
Disse aquilo com tanto entusiasmo e fez um silêncio tão grande no fim, acompanhado dum sorriso tão pepsodent, que eu, também em silêncio, fiquei à espera que ele dissesse qualquer coisa como:
- Mentira!!! Estava a brincar!!! Eu sou o Pai Natal!!!
Ao mesmo tempo, tive a sensação de que ele ficou à espera que eu dissesse qualquer coisa como:
- Oh! Que emoção!!! Dá-me um autógrafo?

quinta-feira, 20 de novembro de 2008


Sábado à tarde havia reunião. Ou domingo, já não sei. Sei que me estragava o fim-de-semana, até porque a minha presença não estava sujeita a regime facultativo. Contrariada e adolescente, mistura conhecida como explosiva, desenvolvi uma técnica de defesa peculiar: Entrava, sentava-me e enquanto durava o evento, ficava catatónica. Não me mexia, não falava, não pestanejava, e limitava-me a olhar um ponto fixo com olhar vazio. Era como se na verdade não estivesse ali. De vez em quando, o pastor, embora perplexo com uma atitude que escapava à sua compreensão, arriscava dirigir-me uma pergunta directa sobre a verdade absoluta contida num versículo que, invariavelmente, eu desconhecia de todo. Esperava a resposta durante alguns segundos e, perante a minha total indiferença e imobilidade, a cena repetia-se. Virava-se para a turba e perguntava em voz de trovão:
-Irmãos! Esta menina não quer ser salva! Quer cair na perdição de Satanás! Nós vamos deixá-la perder-se?
E a pequena multidão, excitada pelas palavras do guru, reagia:
- Não!!!
- Vamos levá-la à salvação nem que seja pelos cabelos???
- Sim!!! Vamos!!! Vamos!!!
Neste ponto, o meu poder de concentração era desafiado ao extremo, mas nunca vacilei. Continuei sempre firme, a olhar vagamente um ponto indeterminado. Como se fosse "retardada, coitadinha", como comentavam depois as mulheres pelos cantos.
Acho que nessa fase, a minha mãe passou as maiores vergonhas da sua vida. Mas nunca mais falámos nisso.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008


A aproveitar o restinho de sol e enquanto o inverno não se instala como já tem direito, as pessoas amontoavam-se na esplanada. Eu fui lá para dentro. O vento fininho e já frio fez-me desconfiar da boa vontade do tempo. Mas foi melhor assim, porque enquanto tomei café disfrutei do espectáculo que foram proporcionando os miúdos que serviam lá fora. Iam entrando e saindo de bandejas na mão e, sempre que se encontravam no interior, trocavam impressões sobre os clientes. "Olha aquela gaja de vermelho fez-me olhinhos", "És um rega!"
Mas a melhor foi quando um deles chegou delirante depois de ter atendido uma família espanhola:
- Oh pá! Sabes como é que se diz "Quanto é?" em espanhol?
- Não, como é?
- Que te dói!!! Ah! Ah! Ah!
E os três riram-se satisfeitos com a sua interpretação pessoal da frase "Que te doy?"
Ainda bem para eles.

terça-feira, 18 de novembro de 2008


Aqui se hão-de contar histórias, para quem quiser lê-las. Histórias da vida, do trabalho, da ida ao super-mercado, das pessoas com quem me cruzo e nem conheço mas adivinho... Não serão mentiras nem verdades, serão o filtro dos meus olhos. A rotina pode ser uma coisa fabulosa.
Depois de contadas, são para deitar fora.