sábado, 31 de outubro de 2009

-Eu estou a cargo duma menina que está a estudar mas o pai dela é burro e não fala. O que faço?

Isto foi-me perguntado assim, mesmo com estas palavras e esta simplicidade, com um profundo sotaque angolano, e no fim a minha interlocutora olhou para mim e ficou à espera duma resposta como se me tivesse perguntado as horas.
É nestas alturas que me apetece ser eu a perguntar: O que faço?

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

A senhora aproximou-se da minha mesa e, muito compenetrada do seu papel, perguntou-me:
- Dê-me uma informação por favor. A polícia mandou-me parar, pediu-me a carta de condução, mas como ela estava "ranhosada", disse-me para a vir trocar. É aqui?
Eu, achando que não era muito elegante perguntar-lhe o que entendia ela por carta "ranhosada", pedi-lhe para a ver. Estava danificada. Por momentos ainda pensei que seria rasurada, começava pela mesma letra... Mas não. Estava danificada. Como se pode trocar essa palavra por "ranhosada"?

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Na esplanada daquele café de bairro, pouco cuidado e também não muito limpo, onde juramos que não vamos consumir nada que não venha já embalado, na mesa ao nosso lado, conversavam animadamente dois rapazes jovens. Um deles era brasileiro e notava-se no seu discurso algum nível de instrução. O outro era português. Falavam sobre planos para o futuro, tema de que falamos geralmente de peito aberto quando temos aquela idade. O primeiro dizia que só queria estar em Portugal mais alguns anos, para amealhar algum dinheiro e se estabelecer no seu país como empresário. Até que afirmou uma coisa que foi a que verdadeiramente me levou a considerar aquele momento singular. Disse que tencionava abrir um café, assim num conceito europeu, como aquele em que estávamos. Para mim vulgaríssimo. A gente senta-se, o empregado chega com uma bandeja na mão, pergunta o que queremos, volta para dentro e regressa depois com o pedido. A partir daí, uma pergunta ficou a bater na minha cabeça: Como são os cafés no Brasil? Sim. Se não são assim, são como? Concluí que tenho viajado pouco.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Conhecíamo-nos há pouco tempo. Por isso, a nossa relação ainda era feita de gentilezas e formalidades. Ela era mulata, filha dum militar português e duma negrinha duma sanzala angolana. De pele escura demais para ser branca e clara demais para ser negra, tinha um nariz aquilino a contrastar com uma farta cabeleira em carapinha. Podia dizer-se que era uma mulher bonita sim. Era mãe solteira. Também fruto de um envolvimento com um militar em missão. Casado. Condição que ela só descobriu após alguns meses de gravidez. Ele voltou para a família e ela jurou que odiaria homens para todo o sempre.
Um dia, mostrou-me uma fotografia onde apareciam várias meninas todas tom de lixívia. Algumas loiras outras nem por isso. No meio delas, uma criança de olhar negro muito brilhante e pele escura fitava-me com uma farta cabeleira em carapinha.
- Adivinha qual é a minha filha - disse ela.
Eu apontei imediatamente a pequena mulatinha, imbuída do mesmo sentimento de lógica com que afirmamos que dois e dois são quatro.
- É esta! - respondi.
De repente, o olhar da Sofia (era assim que ela se chamava) toldou-se duma raiva que eu ainda não lhe tinha visto.
- Porquê? - vociferou furiosa - Porque é que assumiste imediatamente que a minha filha é preta? O meu pai era branco! Ela podia sê-lo também! Perfeitamente!
- Mas - respondi confusa - a tua filha não é aquela?
- É! Mas podia perfeitamente ser uma das outras!
- Bem, foi só um palpite. Se não fosse tu dizias-me que não era e pronto. Se eu te mostrasse uma fotografia cheia de crianças negras e uma branca e te perguntasse qual era a minha filha, o que é que tu dizias?
- Pois fica sabendo que tu até podes vir a ter uma filha preta! Tu não sabes os antecedentes da tua família. Ou sabes?
- Oh Sofia, na boa! Quero lá saber da cor das crianças que posso ou não vir a ter, mulher!
A conversa continuou por mais alguns minutos, nos quais se trocaram mais alguns argumentos surreais. A possibilidade de virmos a ser qualquer coisa mais do que conhecidas, essa, ficou por aí.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Íamos ter uma visita de estudo à maior fábrica dos arredores e as professoras, tomando-nos por vegetais, incentivaram-nos continuamente nas aulas anteriores:
- Oh meninos, vocês aproveitem! Façam perguntas! Mostrem curiosidade!
- Então não? - pensava eu cá com os botões da minha camisa de flanela à ideóloga da revolução - Claro que faço!
Eu já as tinha todas fisgadas, que não era parva, não perdia pitada das novas tendências e via televisão todos os dias. E no dia da visita lá estava eu, na linha da frente, de caderninho em punho, pronta para me tornar mártir da verdade e da defesa dos mais fracos como no dia em que tinha ido comprar uma carteira com a minha mãe.
No final da ronda em que me mantive caladinha, o senhor que nos guiou mandou-nos fazer uma rodinha à volta dele e fez o convite de circunstância:
- Alguém quer pôr alguma questão?
Eu queria. Várias.
- Qual é a diferença entre o ordenado mais baixo e o mais alto dos trabalhadores desta fábrica?
- Qual a média dos ordenados das mulheres? E a dos homens?
- Os trabalhadores têm direito a férias e folgas?
E a professora de português que tinha ido connosco, coitadinha, tão frágil e delicada, a pôr as mãos à cabeça e a dizer num queixume sumido:
- Oh D...!... Francamente!...

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

- Sabe... - justificava-se ele humildemente por não ter sido capaz de explicar ao que vinha e só muito a custo termos conseguido descobrir - eu não tenho estudos nenhuns.
E depois, como que em jeito de explicação:
- Eu sou de 1966...
Disse aquilo como se estivesse a falar dum ano terrível, que tivesse ficado famoso pelas más colheitas e por tragédias terríveis que não permitiram que nada bom tivesse germinado e crescido.
Ninguém entendeu muito bem. Mas toda a gente achou que era melhor não entrar em pormenores.

domingo, 25 de outubro de 2009

Ao longo de muitos anos a trabalhar em profissão mal paga, aprendi um sem número de expressões utilizadas para designar o estado de "sem dinheiro". Todas elas eufemismos, que é a arte de fazer de conta que o mau é bom ou pelo menos divertido.
Uma das primeiras que ouvi foi a um colega que puxava o forro dos bolsos para fora e dizia: "Tenho imenso cotão! Acho que o vou investir na bolsa antes que desvalorize!". Por essas alturas, um outro contava, uns dias antes de receber que "Tive que vir a correr porque, teso como ando, se algum cão ma apanha parado mija-me nas pernas!". Depois, num registo menos filosófico, tínhamos aquele que jurava andar, pelo menos uma semana por mês, a "tirá-las do cu com um gancho", às notas, entenda-se. Mais recentemente, aprendi que ficar nas lonas antes do dia de receber, é uma sensação equiparada à de "andar a travar no ferro".
Tudo isto, no fundo, se resume a uma só expressão: Pobrete mas alegrete.

sábado, 24 de outubro de 2009

Ouvi esta numa loja dum centro comercial, entre duas amigas, e fiquei enternecida com tanta sinceridade:

- E depois ela pôs-se a mandar bocas!
- Ah foi?
- Foi! - e depois a fazer aquela voz fininha, requebrando-se, como quem imita alguém que detesta mesmo que esse alguém tenha voz de trovão - Ai não sei quê! Há gajas que são apanhadas a pôr os cornos ao marido e não sei quê!...
- Xi! E era para ti???
- Para mim não devia ser, eu nunca fui apanhada!

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

A M******** era a mais velha. Quase na idade da reforma, era ela que nos ensinava os mistérios da vida, duma forma que só as mulheres daquela geração sabiam fazer, convencidas de que o facto de terem conhecido um homem com quem casaram lhes conferia uma supremacia sobre as solteiras em matéria de assuntos obscuros. Era também ela a saber as novidades em primeira mão e a passar a informação ao grupo.
- A S**** está-se a divorciar, - disse-nos um dia à laia de bom dia - e a culpa é toda dela.
- Porquê??? Como é que sabes a vida da S****???
- Por causa do sexual (era assim que ela construía as frases). Ele contou-me várias vezes, coitadinho, que se "chegava" a ela e a cabra lhe dizia que não.
- Se calhar é porque não lhe apetecia...
- Apetecer?! Oh meninas! Se fosse por aí os desgraçados nunca faziam, porque a nós, depois de casadas, nunca nos apetece! Temos é que fazer esse sacríficio! É a nossa obrigação!
- Obrigação???!!!
- Ah pois! Vocês não pensem que a vida é um mar de rosas! Eu cá, sabe Deus, as vezes que estou cheia de nojo daquilo e a fingir que estou a gostar muito! E sabem o que é que eu faço? Conto as pecinhas do candeeiro de cristal que tenho no quarto. Já as contei umas poucas de vezes! E nunca me dá igual! Tenho ali com que me entreter até ele um dia se fartar! Mas sou uma boa mulher!

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

- Eu nunca tomo banho quando estou com o "chico"! - afirmava muito séria a C***** enquanto passava ao de leve o pano do pó pelos armários de arquivo como quem acaricia velhos amigos.
- Oh mulher! - respondíamos nós disfarçando o nojo - Isso já nem se usa!
- Os cuidados não têm modas! A minha avó já contava de mulheres que foram tomar banho, ou lavar a cabeça, e morreram!
- C*****! De certezinha que se eu lavar a cabeça hoje hei-de morrer um dia! Mas se não lavar também morro!
- Ah! Vocês são mas é parvas. - insistia ela - eu não tomo banho "nesses dias" e ponto final!
- Mas... - exclamou uma de nós - Isso é... é... muito...
- Eu sei! - arrumou ela despachada - No fim daquilo pareço uma ovelha que se deitou na lama e depois foi para o sol. Mas não quero saber!

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Lembro-me sempre dela com um sorriso e nessas alturas penso que espero que ninguém se lembre nunca de mim com um sorriso igual. Já não me lembro como se chamava mas toda a gente a tratava, menos do que carinhosamente, por "Bolinha". Aparecia nas instalações quando nós estávamos a sair, para fazer a limpeza. No pino do verão, despia-se e limpava os vidros das grandes montras em soutien e cueca, ambos beges ou brancos com muito elástico e reforços, enquanto cá fora os transeuntes ficavam a apreciar a cena única de ver a mulher do boneco Michelin a fazer a lida. Era loira e muito branca e o calor em exagero provocava-lhe alergias e irritações cutâneas constantes.
Um dia apareceu sem o sorriso habitual e confidenciou como costumava fazer (em alta voz e à frente de todos), que tinha desenvolvido uma infecção genital e não sabia como pois há três meses que já não traía o marido. Entrou na casa-de-banho e, uns minutos depois, chamou uma das nossas colegas. Ela foi expedita, cuidando que a Bolinha se tivesse sentido mal. Quando entrou, estava ela sentada na sanita, com as cuecas nos tornozelos e a saia bem subida com a ajuda de ambas as mãos. Muito preocupada perguntou-lhe em jeito de quem pede a opinião:
- Estás a ver? Tenho tudo vermelho!

terça-feira, 20 de outubro de 2009

A minha mãe saiu de casa disposta a comprar uma carteira nova. E levou-me com ela. Erro de estratégia. Porque depois de eu a ter ouvido dizer numas dez lojas que "Gosto muito desta. Vou dar mais uma volta e, se não encontrar nenhuma melhor, venho buscá-la", já sem paciência nenhuma, resolvi dar com a boca no trombone e dizer ao senhor da loja, muito penteadinho e de fato como se apresentavam dantes os trabalhadores do comércio, todos com ar de boas pessoas, que era mentira:
- É mentira. - disse eu quase com um sentido de missão dentro de mim - Ela diz isto em todo o lado!
A minha mãe, qual camaleão, mudou de cor para um tom que até aí só tinha nas faces graças ao "rouge", desculpou-se sem saber muito bem como e saímos para a rua onde levei a maior reprimenda da minha vida.
Achei injusto. Pois se a minha mãe, a minha própria mãe, aquela que me dava educação e não me deixava mentir nem fazer mal a ninguém, andava de loja em loja a enganar aquelas pobres almas depois delas terem desarrumado todas as carteiras que lá tinham só para lhe mostrar! E eu bem sabia como era um massacre arrumar os legos depois de brincar! A verdade tinha que ser reposta!

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

- Quero um gelado que não tenha chocolate! - dizia o puto fofinho com uma vozinha infantil para a empregada do restaurante, perante o sorriso enternecido de todos os clientes.
- O meu pai não me deixa comer chocolate porque eu estou com uma grande diarreia! - completou ele logo a seguir, achando que se tratava de informação importante.

domingo, 18 de outubro de 2009

A minha avó, que já não está connosco, gostava de dar longos passeios a pé, a ver quintas e casas que imaginava um dia comprar. Tão longos que chegou a acontecer ver-se no meio de aldeias vizinhas que já não conhecia e ter que pedir ajuda para voltar. Um dia vinha muito indignada. Num desses passeios, ela e uma amiga, já cansadas e com calor, resolveram entrar num cafezinho, que pela descrição dela era mesmo uma taberna, para tomar uma laranjada.
Chegaram-se ambas ao balcão de pedra e esperaram. O taberneiro, ainda que rude mas num gesto de cavalheirismo que era o melhor que conseguia dar, quando viu duas senhoras bem postas e desconhecidas ali ao balcão do seu modesto estabelecimento, chamou-as com um movimento de olhos para um lugar mais recatado, lá dentro ao pé dos barris, e numa voz muito discreta para que não o ouvissem os quatro homens que jogavam dominó numa mesa com uma toalha de oleado, chegando-se a elas com um cotovelo apoiado na pedra e um pano da loiça ao ombro, perguntou:
- Branco ou tinto?

sábado, 17 de outubro de 2009

Quando apareceram as notas de dez contos (quem se lembra?), a minha avó ficou ao mesmo tempo tão maravilhada e tão consternada por ser possível, com um só papelinho, fazer as compras todas do mês, que decretou ser um pecado gastá-las. Por isso, de cada vez que o meu avô lhe dava uma, ela guardava-a dentro da terrina e, simplesmente, esquecia o assunto.
Um belo dia o meu avô, vislumbrando uma ponta de papel esverdeado a sair de dentro da terrina que decorava a mesa da sala-de-jantar, levantou a tampa curioso, e o que viu foi dinheiro suficiente para comprar um bom carro.
Quando me lembro desta história, penso como seria bom eu poder fazer isto com as actuais notas de quinhentos. Isto se elas se dignassem a aparecer por cá. E se eu tivesse uma terrina.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

- Eu não tenho balança em casa. Não preciso.
Pasmei. Se uma balança é um companheiro inseparável de qualquer mulher que não goste de ser chamada João Manuel ou Zé Augusto, nunca imaginei que justamente para ela, sempre tão preocupada com a aparência, não o fosse.
- Mas tu passas a vida a fazer dietas! Como não tens balança?!
- Não tendo. Eu não avalio o meu estado físico em kilos, é em números de roupa.
- Sim, claro. Mas isso é perigoso. Eu consigo engordar uns cinco kilos à vontade antes das minhas calças me deixarem de servir.
- Ah, mas isso és tu que usas sacos de batatas! - explicou ela - Eu só compro roupa que me fique tão justa mas tão justa que eu me veja à rasquinha para apertar! O que é que pensas? Eu só respiro em condições depois de chegar a casa e vestir um fato de treino!

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

A senhora falava ao telemóvel. Alto demais para o tema de certa forma delicado que estava a tratar.
- A Teresa tem dois pais! Não! Três! A Teresa tem três pais!
- (...)
- Tem três pais não tem? Eu bem sabia! É uma mãe e três pais, aponta aí!
- (...)
Quando se sentou na minha mesa explicou. Era professora e estava a falar com alguém da escola sobre os atendimentos a engarregados de educação que uma das suas colegas tinha que fazer naquele dia: Uma mãe e três pais.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

À minha frente estava o presidente da junta duma freguesia pequenina nos confins dos limites concelhios. Vinha com uma senhora assustada demais e humilde demais para se apresentar sozinha numa repartição. Ele, de dentro dum fato muito largo e de xadrez castanho, falava alto e com palavras "caras" enfiadas à força no discurso. Tratava-me por doutora. Não porque me respeitasse ou desrespeitasse de forma particular, mas porque a senhora tinha que ter a certeza do investimento feito ao solicitar a sua companhia. Se vinha à cidade para falar com doutoras, ainda bem que tinha vindo protegida. O senhor presidente exibia com modéstia mal treinada a sua faceta de homem do povo, igual embora iluminado.
- Eu, aqui onde me veêm, já fui um sem-abrigo!
A senhora, que desde a sua chegada ainda não tinha tirado a malinha de cima dos joelhos bem apertados e a agarrava com ambas as mãos como se estivesse com medo de um assalto naquele meio inóspito, mostrou-se impressionada. Olhou para ele como se olha para as imagens dos santos nas igrejas e exclamou um "Vejam só!".
No seguimento da conversa, foi fácil concluir que a experiência de sem-abrigo do senhor presidente se resumia a ter levado uma coça do pai aos catorze anos e ter passado alguns dias a dormir num celeiro com medo de voltar a encarar a fúria paterna.
Não posso dizer que gostei deles sem parecer paternalista nem que não gostei sem parecer snob. Por isso, não digo nada nessa matéria. É um facto que há vários mundos que só se tocam ao de leve, aqui e ali.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Tinha catorze anos quando um colega me emprestou "O Último Tango em Paris", numa edição de bolso que ele tinha roubado ao pai e já tinha rodado meio liceu. Era um livro "lido", não um livro daqueles em bom estado, bom para ter na estante da sala. Estava gasto e via-se bem que muitos dedos tinham passado por aquelas folhas e muitos olhos tinham devorado aquelas letras. Os cantos exibiam uma ligeira curvatura e as folhas tinham amarelecido. Por qualquer motivo que não sei explicar, é mais convidativo ler um livro assim com aspecto de ter acabado de sair do alfarrabista do que um com aspecto de ter acabado de sair da livraria. Mas por isso mesmo, o benemérito que emprestava o livro à comunidade escolar vivia no dilema entre voltar a arrumá-lo no sítio de onde o tinha tirado e ser apanhado ou não o voltar a arrumar e ser apanhado na mesma quando o pai se desse ao trabalho de os contar.
No dia em que me coube a mim a vez de o ler, fui para a cama mais cedo, fechei a porta à chave e disse a todos que estava muito cansada porque tinha tido dois testes. Pela noite dentro, umas vezes espantada, outras incrédula, fiz uma das minhas primeiras incursões ao mundo desconhecido dos adultos. Mas nenhuma cena me deixou tão escandalizada como aquela já clássica da manteiga. Não sei quantas vezes voltei atrás para a ler de novo, na esperança de que afinal tivesse lido mal e não fosse aquilo. Mas não, era mesmo aquilo.
No dia seguinte, ensonada pela directa, entrei às oito e meia na aula de francês. Olhei para professora quarentona e com uns óculos na ponta do nariz. Era a primeira adulta que via sem ser os meus pais, que esses não faziam de certeza absoluta aquelas coisas. Senti uma desconfiança nova.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Uma coisa que eu acho que devia ser mais divulgada, se possível com spots publicitários na televisão e na rádio, é que uma pessoa pode ter mais do que um endereço electrónico. Devia-se explicar às pessoas que podiam ter um email para a brincadeira, para os hi-fives e os blogs e outro para quando andassem "à civil". Assim, eu escusava de mandar emails a dizer, por exemplo, que uma certidão está pronta para um charmoso50, para uma diabinha_sexy ou para uma fu.dilhona.maluka. É que não havia mesmo necessidade.

domingo, 11 de outubro de 2009

(continuação)
São duas horas, uma em Portugal, já ali a uns quilómetros de distância. Sem nada que o justifique, a vida começa a desaparecer. As lojas fecham, trancam-se portões e grades, recolhem-se toldos. Cada vez há menos gente nas ruas e os que permanecem são estrangeiros. Vamos deixando de ouvir as interjeições típicas. Mira, hombre! Que aconteceu? Pensamos que vai haver um ataque terrorista com armas químicas e só não nos avisaram a nós. Sentimo-nos perdidos. Afinal não. Por volta das cinco recomeça o burburinho da cidade sem que nada de grave tenha acontecido. Acreditemos ou não, eles foram dormir. Dormir? Sim, dormir! Como nas anedotas, como nas comédias de televisão, foram fazer a siesta. E quando entramos na primeira loja ouvimos um "Hola!" sem culpa. Não um cumprimento acabrunhado de quem pede desculpa por se ter deixado adormecer a ter perdido três horas de trabalho em pleno dia, como esperávamos, mas sim um "Hola!" de quem está a começar o dia fresquinho. É estranho, muito estranho! Somos tão iguais e tão diferentes!

sábado, 10 de outubro de 2009

(continuação)
Na mesa ao lado um casal conversa baixinho, mais do que nós. Tão baixinho que não dá para distinguir a língua em que falam. Andaram às compras e têm duas mesas ocupadas com sacos vários. Uma mulher aproxima-se a pedir uma cadeira: - "Está alguien sentado ahi?" - pergunta apontando. "No." - é a resposta que obtém, com ar enjoado, da rapariga que nem se mexe para tirar os sacos, como quem diz: - "És mesmo estúpida! Não vês que isto não é alguém, são sacos?". Fazemos apostas, são portugueses! Só um português é capaz deste exercício de sarcasmo, nunca um espanhol. Para um espanhol uma cadeira é uma cadeira, ou se pode tirar ou não se pode. Um português diz em média metade daquilo que pretende dizer, o resto cabe ao receptor adivinhar. Disse-me uma vez alguém que para os espanhóis os portugueses e os galegos são tipos que quando estão numa escada, ninguém sabe se vão a subir ou a descer. Visto do outro lado, talvez seja. Lembrei-me disso ao ver esta cena. Apurámos o ouvido, muito atentos, a partir daí. Afinal não acertámos. Com muita dificuldade, conseguimos distinguir. Não são portugueses, são espanhóis. Surpresa! Excepções? Não! Como bons portugueses que somos, logo desenvolvemos uma teoria. Devem ser catalães, ou bascos. Nunca extremeños, muito menos andaluzes. Assunto resolvido com os espanhóis antipáticos da mesa ao lado.
(continua)

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Duas crianças corriam uma atrás da outra por entre as mesas. Gritavam muito como se não houvesse amanhã. Ninguém ligava excepto nós, que concordávamos na necessidade de pregar dois estalos nos fedelhos para que parassem de importunar os demais. Os pais nem os viam. Sentados à volta duma mesa com muitas cervejas a que chamam cañas e alguns amigos, conversavam também animadamente, com o mesmo furor com que em Portugal se vende cobertores e colchas nas feiras com microfone, nunca numa conversa de amigos. De vez em quando ouve-se um "Mira!", um "Venga!" um "Hombre!"ou um "Vale!", mais sonoros ainda do que o resto da conversa. A empregada corre debaixo dum calor insuportável para conseguir atender toda a gente. Levanta as mesas e atira para o chão guardanapos usados e pacotes de açúcar vazios que são levados pela brisa que corre a espaços. Os pacotes de açúcar são enormes. Davam para três cafés dos nossos, mas não para os cafés con leche de quem mata toiros na arena, berra desesperado nas procissões ou atira toneladas de tomates aos vizinhos numa festa. Tudo tem que ser maior, mais dramático e mais exagerado. Acho que um espanhol chora tão desesperadamente por morrer a mãe como por perder um guarda-chuva. Ri com tanta alegria por ganhar a lotaria como por ter chegado sexta-feira.
Os miúdos pararam de correr. Estão agora a um canto a fazer negócios de "cromos", que vão separando em montinhos de "Ja lo tengo" e "No lo tengo". A lenga-lenga deve ouvir-se até ao fim da rua, mas eles não têm culpa. É impossível dizer "No lo tengo" com a discrição com que se diz "Não tenho". "No lo tengo" tem que levar um ponto de exclamação no final, e a palavra "tengo" tem que ser dita com a música dum flamenco. Imagino a lenga-lenga dos pivetes acompanhada de bater de pés no chão e palmas. Aaaaaaiiiiiiiii!!! Que vontade de rir!
(continua)

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

O calor do sul de Espanha... Não o sul das praias e dos resorts, mas sim o sul das cidades históricas que não têm mar. Um calor que dá a quem vem de fora a impressão de se ter instalado ali há muitos séculos, com as oliveiras e as laranjeiras, as catedrais e as mesquitas. Vencidos pelo cansaço, parámos numa esplanada à sombra duma parede branca cheia de pequenos vasos pendurados. À volta ouviam-se muitas línguas diferentes. Aqui e ali sobressaía uma mesa de nativos, sempre superiores em decibéis como é sabido. O local era agradável e fresco. Pedimos refrescos, recostámo-nos e estudámos mais uma vez o mapa para planear as visitas seguintes. De vez em quando, passava uma charrette a cavalos com turistas. Até que uma delas se deteve um pouco, o suficiente para que um dos animais aliviasse os intestinos, de forma audível e abundante. Ao retomar a marcha, deixou no meio da estreita estrada, mesmo em frente aos turistas que gozavam dum momento de relaxe, o produto resultante, que por força do calor encheu o ar dum cheiro insuportável em poucos segundos. Em poucos segundos também pousou no local um bando de pardais, para quem o "presente" representava um inesperado festim de nutrientes. Enojados e desagradados com a interrupção do seu descanso, os turistas voltavam a cara. Os nativos, esses, continuavam a conversar entre si sonoramente como se nada tivesse acontecido. E na verdade, pensando bem, nada aconteceu de relevante.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Eu estava a ver um tele-filme na televisão sobre um menino que era preto e queria ser branco. Depois de várias peripécias, concluía-se que a cor da pele não interessa quando se tem um bom coração e eu até já estava a ficar um bocadinho emocionada. A única coisa de que tive pena foi que ele não tivesse conseguido, efectivamente, ficar branco. Aí sim, seria o perfeito final feliz. Perguntei à minha mãe se não havia nenhum tratamento que transformasse os pretos em brancos e ela respondeu-me negativamente. Lembro-me que fiquei angustiada e com pena deles como se se tratasse duma doença horrível com que se nasce. Lembro-me que a minha mãe me respondeu qualquer coisa sobre não me preocupar com isso pois tinha nascido branca. Hoje, esta memória arrepia-me. Mas depois penso que não, nós não éramos uns monstros, nem eu nem mesmo a minha mãe que pensava assim já depois de adulta. Nós éramos apenas o resultado dum país que vivia de colonizar e onde não era permitido introduzir variantes ao pensamento dominante. Ponto final.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

A MINHA COLEGA: Ontem vi-te com a tua filha! Está tão alta!
EU: Sim, a minha filha é alta. Não muito, mas é alta.
A MINHA COLEGA: Está enorme!!!
EU: Oh mulher, a minha filha tem vinte anos! Já está daquela altura há montes de tempo!
A MINHA COLEGA: Ai mas eu vou-te dizer... Ela e o meu Nuno os dois "emparedados", não sei qual seria o maior!
EU: Emparedados?!
A MINHA COLEGA: Sim! Os dois lado a lado!

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

- Então vocês vão-me dar isso a cores? - perguntou ele.
- Sim, vamos. A impressora a preto e branco está avariada. Mas vamos-lhe cobrar só o custo do preto e branco.
- Mas eu não quero isso a cores!
- Não quer?! Mas o senhor costumava reclamar sempre quando lhe dávamos isto a preto e branco!
- Pois. Mas eu queria que me dessem a cores porque me tinham dado razão. Não porque a impressora avariou!

domingo, 4 de outubro de 2009

Uma das coisas que sempre tive dificuldade em entender nas lições de história foi a instauração da república. A professora contava-nos que um tipo chamado José Relvas tinha ido à varanda da Câmara Municipal de Lisboa em 1910 anunciar o fim da monarquia e o princípio da república. Até aqui tudo bem. Mas este episódio suscitava-me dúvidas muito mais profundas que nunca nenhum adulto me soube explicar de forma convincente:
- Quem mandou o José Relvas à varanda dizer aquilo?
- Porque é que uma coisa tão importante foi resolvida assim com uma pessoa a ir à varanda gritar?
- Quem estava cá em baixo para o ouvir?
- Como é que um país inteiro, cuja população estava esmagadoramente longe da varanda da Câmara Municipal de Lisboa, se tornou republicano assim sem mais nem menos?
- As pessoas sabiam? Alguém lhes perguntou se queriam? Ou o José Relvas foi para a varanda dizer aquilo sem ninguém lhe ter encomendado o sermão?
- Porque é que a república passou a ser uma coisa boa de repente em 1910, se durante a escola toda eu tinha andado a aprender os feitos heróicos dos nossos reis? Afinal o que era bom e o que era mau?
- Porque é que o presidente da república era melhor do que os antigos reis, se na verdade ninguém gostava dele e toda a gente dizia mal mas só baixinho e dentro de casa para não ir para a cadeia?
Aquela história toda cheirava-me a esturro. E mais. Levava-me inevitavelmente a algumas perguntas mais pertinentes ainda:
- Basta uma pessoa sozinha ir à varanda da câmara gritar qualquer coisa para ela passar a ser verdade?
- Se eu conseguir subir à varanda da câmara da minha terra e gritar que todas as crianças passam a receber chocolates todos os dias e deixa de ser obrigatório ir à missa, isso torna-se verdade assim tão facilmente? Ou tem que ser um adulto a fazer isso?
Mas estava visto que os adultos só iam às varandas anunciar coisas que não tinham interesse nenhum, por isso nem valia a pena ir por aí.

sábado, 3 de outubro de 2009

O velho cine-teatro ficava na praça central da cidade. Era grande. Levava mais de mil pessoas ao mesmo tempo a vibrar com as aventuras do James Bond, a chorar baba e ranho com as desgraças dum filme indiano ou a trautear as músicas do Grease. Era velho. As escadas já rangiam um bocadinho e as casas de banho estavam aquém do admissível em termos sanitários e ficavam na cave. O segundo balcão tinha a alcunha popular de "piolho" porque ditava a tradição que era para lá que iam ver cinema as pessoas que não tomavam banho e eram mais propensas a criar relações íntimas com o animal homónimo. Tinha camarotes. Primeiro balcão. Plateia para os remediados. Quando eu era criança, adorava ir ao cine-teatro. Gostava de cinema, mas mais do que isso, gostava de estar na fila B do primeiro balcão a ver as luzes gigantes do tecto altíssimo a apagar devagarinho e o pano pesado a abrir indolente. Mentalmente fazia um exercício: Olhava lá para cima, para umas aberturas redondas de onde vinha a luz e que eu imaginava serem túneis de luz sem fim que só acabavam nas núvens, e logo a seguir percorria rapidamente com o olhar todo o pé-direito do edifício até acabar lá em baixo na plateia com muitas cabeças pequeninas em fila e isso provocava-me uma vertigem que me fazia cócegas pequeninas no estômago.
Ao lado da sala principal havia um salão de baile com um palco para a orquestra e vários sofás de veludo vermelho à volta que era onde as donzelas esperavam o convite para dançar. Nunca fui a um baile daqueles mas era assim que eu imaginava. Pares felizes a rodar no soalho muito brilhante e encerado. Nos dias de cinema era para o salão de baile que as pessoas iam no intervalo do filme, conversar e fumar. Nesse tempo fumava-se em qualquer lado, não havia leis anti-tabaco nem preocupação com isso.
Foi no cine-teatro que eu vi o meu primeiro filme de cinema, foi lá que fiz o primeiro ensaio de namoro e foi também lá que eu ri como doida e chorei baldes de lágrimas com as tragédias e as alegrias das personagens que de tão grandes me pareciam verdadeiras.
No cine-teatro trabalhavam algumas senhoras de bata azul que já toda a gente conhecia e um senhor que usava uma farda e um boné e tinha uma lanterna para levar ao lugar as pessoas que chegavam atrasadas. Mais discreto, nos bastidores, trabalhava o Sr. Luís, que era quem projectava os filmes. Eu olhava para trás, para a janelinha lá em cima de onde saíam raios coloridos que percorriam o ar até à tela onde se transformavam magicamente em imagens, e imaginava o Sr. Luís lá dentro, no meio de máquinas complicadas com quilómetros de película que girava em rodas sucessivas. Nunca ninguém o via, mas eu sabia quem era. Porque no final da última sessão, ele vinha cá fora com um balde de letras e um escadote, mudar o título do filme para o do dia seguinte. Era um trabalho de paciência, porque tinha que subir e descer várias vezes, tirar as letras que já não interessavam e pendurar outras e ir avançando com o escadote. O que ele fazia pachorrentamente. Quando acabava, descia, afastava-se um pouco e olhava para a obra terminada. Por detrás dos seus óculos muito graduados, o senhor Luís afagava o rosto pensativo, que era como quem diz que a ortografia não devia estar para vinte valores mas não fazia mal.
Um dia, o cine-teatro ficou tão velho e já ia lá tão pouca gente que teve que fechar. Mais tarde, as pessoas que mandavam na cidade e que tinham com certeza as mesmas memórias que eu, teimaram em não o demolir e fizeram-lhe obras. Ficou bonito, moderno, irrepreensível. Mas nunca mais foi a mesma coisa.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

A televisão costumava dar uns desenhos animados em que as personagens eram os Beatles, que eu por acaso até gostava muito de ver mesmo não sendo tão giros como os do Pitosga. O genérico desses desenhos animados era umas imagens dos quatro rapazes a fugir por ruas e becos de um bando de raparigas histéricas e esta era a parte que eu não percebia. Tentei obter explicações por parte dos adultos sobre o assunto. Se eles tinham feito mal a alguém e lhe queriam bater e porque é que eram só mulheres a correr atrás deles. Principalmente, porque é que eles fugiam das mulheres daquela maneira desesperada. Ainda se fosse animais selvagens, ou polícias zangados, ou criminosos com tatuagens nos braços!...
Não tive qualquer êxito, no entanto, e continuei sem perceber a lógica de todo aquele quadro. O meu pai limitou-se a dizer que eles eram um bando de piolhosos, o que não justificava absolutamente nada, antes pelo contrário. Quanto à minha mãe, era de opinião que eles eram uns estúpidos e uns inúteis, pois com tantas raparigas a andar atrás deles, algumas tão jeitosinhas e provavelmente boas donas-de-casa, todos tinham escolhido ficar com raparigas feias.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

O programa de televisão estava chato por demais e eu entretinha-me por ali a rabiscar desenhos em folhas de papel. Até que uma observação de um dos adultos captou a minha atenção:
- Isto é que vai ser a música clássica do futuro! - dizia alguém - Daqui a uns duzentos anos, quando as pessoas forem a um concerto de música clássica, é isto que vão ouvir!
Detive-me então no homenzinho de figura quase ridícula que fazia soar nuns instrumentos uns sons sintéticos sem qualquer harmonia e até mesmo desagradáveis. Era mais ou menos como os barulhos que fazia o portão das traseiras do nosso quintal quando alguém resolvia abri-lo. Eu, sempre opinativa, intrometi-me na conversa:
- Não! Eu acho que a música clássica do futuro vai ser a dos Beatles.
- Tu não sabes o que dizes - respondeu-me alguém com um sorriso condescendente.
Não discuti, não estava em dia de me arriscar a uma lambada. Mas no meu íntimo fiquei com a certeza que tinha razão. E tinha os argumentos todos a meu favor: Ninguém sabia quem era aquele homenzinho, mas toda a gente sabia quem eram os Beatles. Ninguém conseguia trautear a música daquele homenzinho no duche, mas toda a gente conseguia trautear o "Yesterday", até os mais duros de ouvido. Os Beatles já eram tão velhinhos que faziam músicas desde que eu era muito bebé e se calhar até antes e eu já estava bem crescida. E no entanto ainda eram conhecidos e provavelmente continuariam conhecidos por mais uns trinta ou quarenta anos até eu ser muito velhinha. Isso sim, é clássico!