Conhecíamo-nos há pouco tempo. Por isso, a nossa relação ainda era feita de gentilezas e formalidades. Ela era mulata, filha dum militar português e duma negrinha duma sanzala angolana. De pele escura demais para ser branca e clara demais para ser negra, tinha um nariz aquilino a contrastar com uma farta cabeleira em carapinha. Podia dizer-se que era uma mulher bonita sim. Era mãe solteira. Também fruto de um envolvimento com um militar em missão. Casado. Condição que ela só descobriu após alguns meses de gravidez. Ele voltou para a família e ela jurou que odiaria homens para todo o sempre.
Um dia, mostrou-me uma fotografia onde apareciam várias meninas todas tom de lixívia. Algumas loiras outras nem por isso. No meio delas, uma criança de olhar negro muito brilhante e pele escura fitava-me com uma farta cabeleira em carapinha.
- Adivinha qual é a minha filha - disse ela.
Eu apontei imediatamente a pequena mulatinha, imbuída do mesmo sentimento de lógica com que afirmamos que dois e dois são quatro.
- É esta! - respondi.
De repente, o olhar da Sofia (era assim que ela se chamava) toldou-se duma raiva que eu ainda não lhe tinha visto.
- Porquê? - vociferou furiosa - Porque é que assumiste imediatamente que a minha filha é preta? O meu pai era branco! Ela podia sê-lo também! Perfeitamente!
- Mas - respondi confusa - a tua filha não é aquela?
- É! Mas podia perfeitamente ser uma das outras!
- Bem, foi só um palpite. Se não fosse tu dizias-me que não era e pronto. Se eu te mostrasse uma fotografia cheia de crianças negras e uma branca e te perguntasse qual era a minha filha, o que é que tu dizias?
- Pois fica sabendo que tu até podes vir a ter uma filha preta! Tu não sabes os antecedentes da tua família. Ou sabes?
- Oh Sofia, na boa! Quero lá saber da cor das crianças que posso ou não vir a ter, mulher!
A conversa continuou por mais alguns minutos, nos quais se trocaram mais alguns argumentos surreais. A possibilidade de virmos a ser qualquer coisa mais do que conhecidas, essa, ficou por aí.