quinta-feira, 17 de dezembro de 2009


Estamos em hibernação até ao próximo ano.
Para todos, um felicíííííssimo natal!

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

E depois, quando nos passeávamos fascinados pelos corredores do super-mercado, víamos aqui e ali umas esferas cor-de-laranja penduradas no tecto, parecidas com naves espaciais e donde pendia um letreiro que anunciava "Sorria, você está a ser filmado".
E nós sorríamos mesmo.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Quando as fundações do grande edifício começaram a nascer numa zona pacata da pacata cidade, toda a gente se interrogava sobre o que viria a ser aquilo. Logo logo, porém, se soube a verdade, porque já naquele tempo a coscuvilhice era um desporto tão praticado como agora: Era um super-mercado.
- O que é um super-mercado? - perguntava eu então sem que ninguém fosse capaz de me esclarecer convenientemente.
- É uma mercearia - explicou-me alguém que foi quem conseguiu ficar mais perto do conceito - mas tão grande, tão grande, que as pessoas perdem-se lá dentro!
Fiquei para ali a fazer exercícios mentais, mas não era nada fácil. Imaginava a mercearia da Ti Celeste com umas cem vezes o seu tamanho real. Tão grande que quem estivesse junto do balcão de madeira escura lustrosa, se olhasse para trás no sentido da porta veria um corredor imenso de pipas de vinho e, muito pequenina, a porta onde pendiam coloridas as fitas de plástico que impediam a entrada das moscas. Mesmo assim, custava-me acreditar que alguém se pudesse perder lá dentro.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Decidi que naquele ano ia descobrir o que era a minha prenda de natal sem ter que andar à procura pela casa toda, e afinei uma estratégia. Como sabia que a minha tia sabia o que era mas não me dizia, tentei por aí. Cheguei ao pé da minha mãe e anunciei-lhe:

- Já sei o que vou receber no natal!

- Não sabes nada!

- Sei sei! A Tia Zé disse-me! Eu chateei-a muito e ela disse-me!

- Grande malandra! Ela foi-te contar que te comprei um gira-discos?!

Fiquei muito orgulhosa do meu feito. Mas depois, no dia de Natal, aquilo já não teve a mesma piada não é?

sábado, 12 de dezembro de 2009

- A senhora da DGV - dizia-me ela com a mão direita no peito sobre o coração - é uma alma pura e boa como há poucas! Porra que eu até fico emocionada quando falo nisto, palavra de honra!
- Mas a senhora falou como a funcionária da DGV?
- Não - respondeu-me ela já a começar a chorar - mas ela escreveu-me uma carta tão linda!...
- A DGV escreveu-lhe uma carta bonita???!!!
- Sim! - respondeu ela já a limpar as lágrimas com um lenço de papel reutilizado - Ai, até me arrepio toda! Veja!

Estendeu-me um ofício do IMTT, ex-DGV. Era um texto lacónico, assinado pela responsável local, onde se informava que a destinatária deveria dirigir-se ao Registo Automóvel a fim de autorizar a mudança de proprietário dum veículo que se encontrava em seu nome para o nome doutra pessoa, cujo nome constava abaixo.

- É ou não é uma senhora honesta? - perguntou-me ela com os olhos vermelhos da emoção.

Eu, sem saber o que dizer perante um sentimento tão arrebatado, optei pelo silêncio.

- Sabe minha senhora, - continuou ela - eu ofereci em tempos uma mota ao meu ex-namorado, que vivia lá em casa. Só que depois a gente zangou-se, ele saiu de casa, mas deixou lá a mota.
- Sim...
- Entretanto apareceu lá uma mulher a dizer que me queria comprar a mota. Que me dava quinhentos euros por ela (era uma mota quase nova! Impecável!). Então eu disse "Não! Quinhentos não quero! Quero quatrocentos que foi o que me custou e eu não fico com o que é de ninguém só o que é meu!". Está-me a compreender?
- Sim...
- Então ela disse-me "Então dou-lhe quatrocentos, mas deixe-me levá-la a um mecânico meu amigo para ele ver", e eu deixei. E depois ela disse "Ah! Mas tem que me dar o livrete, porque posso apanhar a polícia pelo caminho", e eu deixei. Está-me a compreender?
- Sim...
- Então ela não apareceu mais nem me trouxe o dinheiro, e depois eu fiquei a saber que era a nova namorada do meu ex-namorado, está-me a compreender?
- Sim...
- E ele vai, foi à DGV para mudar a mota para nome dele, o malandro! Está-me a compreender?
- Sim...
- Mas a senhora da DGV, que é uma santa senhora, graças a Deus (ai que eu até fico arrepiada quando falo nisto!), botou a mão à consciência e mandou-me esta carta a avisar-me! Ainda há gente séria neste mundo, não é minha senhora?

É (pensei eu), ainda há gente séria. E gente ingénua. E gente ignorante. Muito. Graças a Deus...

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

A senhora brasileira à minha frente ganhou finalmente coragem e pediu:
- Você escreve a carta p'ra mim?
Eu, ciente de que ela não era analfabeta e vendo a fila imensa de gente que ainda tinha para atender, recusei amavelmente:
- A senhora senta-se ali, calmamente, e escreve. Depois entrega-me. Se tiver alguma dúvida estou ao dispor.
- Mas - insistiu ela - eu vou escrever tudo errado!
- Tudo errado como?
- Errado! O que p'ra gente é certo p'ra vocês é errado!
- A senhora não vai escrever errado, vai escrever com as regras do português do Brasil. Isso não é errado, é só diferente!

Mentalmente, no entanto, o que me apetecia dizer-lhe não era bem isso. O que me apetecia dizer-lhe era mesmo:
-Oh minha! Se tu visses o que eu recebo aqui todos os dias escrito por portugueses de gema!... Ias achar que merecias o nobel da literatura!

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

O meu pai comprou a primeira constituição aprovada pela assembleia da república depois do 25 de Abril. Um dia chegou a casa e deu comigo muito refastelada no sofá da sala a lê-la. Eu, como achei que não estava a fazer nada de mal, nem me mexi. Mas curiosamente ele reagiu como se me tivesse apanhado a preparar um chuto de heroína.
- Que estás a fazer? - perguntou-me ríspido.
- A ler...
- Não! O que é que estás mesmo a fazer?
- A ler, já disse!
- A ler a constituição?! Achas que eu sou parvo ou nasci ontem? O que é que estavas mesmo a fazer? Mostra o que tens aí dentro!
E eu tive que o deixar ver com os seus próprios olhos que dentro do livro não tinha nenhuma carta de namorado nem nenhuma revista porno. Só depois me deixou em paz. Mas ainda assim, desconfiado.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Estava eu na fila da caixa do supermercado quando vi que, mais uma vez, tinha tido má pontaria. A senhora da frente tinha-se esquecido de pesar a fruta. E lá foi ela com os sacos na mão, enquanto o resto do pessoal rosnava qualquer coisa entre dentes e a menina da caixa brincava com a esferográfica a disfarçar o nervoso de ter uma data de marmanjos a olhar para ela na expectativa.
Ao voltar com a fruta pesada (lata das latas!) a senhora vinha nas calmas, como se estivesse a sair da casa de chá com as amigas numa tardinha de férias.
Quando já toda a gente franzia o sobrolho e se preparava para abrir as hostilidades com uma boca mais azeda, ela explicou com um sorriso:
- Vocês desculpem mas eu não podia ir a correr porque estou aflitinha para fazer xixi.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Pela manhã, quando estava na pastelaria do costume a tomar o meu café, ouvia (porque os decibéis tornavam impossível não ouvir) a conversa de duas amigas na mesa ao lado:
- E "bai" eu "disse-le", oitocentos escudos à hora, "num" trabalho por menos!
- "Fizestes" muito bem! Querem a casa limpa limpem-na... ou "atão" paguem!
A dada altura uma delas lembrou-se que estava há demasiado tempo à espera da torrada, virou-se para trás e gritou para a menina que estava ao balcão, a uns cinco metros de distância:
- Oh menina "atão"?
E a menina, atrapalhada:
- Está quase...
- Tanto tempo! - continuou a queixosa - Eu já me tinha "bindo" duas "bezes" ou mais! Foda-se!

... é por isso que ser do Norte tem outro encanto...

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Conta-se que um rapaz, há uns anos, entrou para a universidade numa cidade que desconhecia completamente e hospedou-se numa casa onde já morava um grupo daqueles armados em espertos ao estilo "comemos caloiros todos os dias ao pequeno-almoço".
Logo no primeiro dia, com o pretexto de o integrarem na vida da cidade e lhe darem a conhecer os hábitos e tradições locais (tão queridos!), ensinaram-lhe que o doce regional da terra era os "cusquíleos" e que estes eram realmente deliciosos.
Perante a curiosidade do rapaz e numa demonstração de boa vontade, puseram-lhe 5 contos na mão (ainda foi no tempo do dinheiro antigo) e disseram-lhe que fosse à pastelaria do rés do chão e comprasse meia dúzia deles para o lanche. Eram eles que ofereciam.
O rapaz lá foi, sem saber que tal doce não existia e muito menos que toda a gente na dita pastelaria conhecia a marosca pois já era hábito por lá aparecerem caloiros a pedir aquilo.
De facto, quando ele disse "Queria meia dúzia de cusquíleos" a risada foi geral no estabelecimento. E o pobre lá saiu de cabeça baixa, com vontade de se enfiar num buraco. Só que, num rasgo repentino de inteligência que só os caloiros têm porque depois, como todos sabemos, vamos ficando cada vez mais estúpidos, olhou para a nota que tinha na mão, fez uns rápidos cálculos mentais e voltou para trás.
-O que é que vendem aí que custe mais ou menos 8o0 escudos a unidade?
E lá lhe venderam uns bolos intragáveis feitos de figo ou qualquer coisa assim irreconhecível, que ele levou para casa. Entrou com ar satisfeito, pousou o embrulho e, perante o ar apatetado dos outros declarou:
-Cá estão os cusquíleos. Vamos lanchar?
-Mas... isso não existe...
-Não existe como? Eu pedi meia dúzia de cusquíleos e deram-me isto! E olhem! Foi uma sorte porque o dinheiro chegou por um triz!

É caso para dizer "Toma lá que já almoçaste!"... No caso concreto, cusquíleos.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Em 1970 pensei pela primeira vez no meu futuro longínquo de forma séria. Pensei no ano 2000 e como ia ser divertido mudar de século um ano depois. Haveria naves espaciais para ir a outros planetas? Como nos vestiríamos? As pessoas teriam carros voadores na garagem? A comida seria toda sintética? Como iriam ser os nossos penteados? Que música ouviríamos?
Depois parei um pouco para fazer contas de cabeça. Que idade iria eu ter no ano 2000? Oh não!!! 37!!!
Concluí com grande tristeza que ia ser tão velhinha que já não poderia apreciar nada, fosse o que fosse que se passasse na altura. Fiquei um bocadinho angustiada mas depois passou-me.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Quando eu era miúda (já não sei que idade tinha mas sei que era ignorante no que diz respeito às variantes linguísticas na península ibérica), havia uma canção chamada "Un Canto a Galicia", que era cantada em galego pelo Julio Iglesias. Eu... pensava que era ele a tentar cantar em português mas sem habilidade nenhuma. E convenci-me para sempre que os espanhóis são incapazes de aprender línguas. Nesta última parte não estava enganada.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Vi com alguma antecedência uma senhora idosa, apoiada numa bengala que, parada no passeio com ar amedrontado, aguardava a oportunidade de atravessar a estrada. Travei e fiz-lhe sinal para que passasse. Ela assim fez e, enquanto atravessava muito devagarinho devido às dificuldades de locomoção, reparei na sua fisionomia amarga. Quando ela chegou sensivelmente ao meio da estrada parou. Pensei que estava cansada, mas não. Estava apenas (ou era mesmo) azeda. Nessa altura voltou-se na minha direcção e começou a ameaçar-me com a bengala no ar enquanto proferia palavras que eu não ouvi mas me pareciam pragas de bruxa.
É para eu aprender a ser como os outros todos que se borrifam para os velhinhos que querem atravessar a estrada em hora de ponta.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Há dias tão maus que nem histórias nos apetece contar.
Amanhã volto.
Desculpem.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Na zona de congelados dum super-mercado, um casal conversava sobre a banca dos gelados. Ele era alto, magrinho e usava uma volta de ouro sobre os pêlos do peito. Ela era uma pequena bolinha com pernas. Ele, com um gelado na mão, dava-lhe explicações sobre nutricionismo. Ela seguia-as atentamente.
- Estás a ver este gelado? Este podes comer sem engordar!
- Ai posso! - perguntava ela com olhos gulosos.
- Podes porque este é de praline (ele pronunciava pralaine). Sabes o que é pralaine? É inglês. Quer dizer "para a linha"!

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Há uns anos atrás atendi uma senhora velhinha, de xaile negro que lhe cobria a figura, revelando apenas as mãos e um rosto pequenino. Notei que ambos tinham cicatrizes muito visíveis. A senhora estava completamente confusa e envergonhada. Não sabia ao que vinha nem o que tinha para tratar. Justificou-se:
- É que o meu marido é que tratava disto tudo sabe?
Depois de muito esforço e buscas no arquivo a fim de tentar descobrir o objectivo da sua visita, atrevi-me a perguntar-lhe:
- Mas porque não vem cá o marido da senhora?
- É que ele faleceu no mês passado menina.
Mentalmente castiguei-me – “Sua estúpida! Já meteste água!” – e tentei remediar, claro. Pedi-lhe desculpa, dei-lhe os sentimentos e rematei com aquela conversa de circunstância:
- Deve ser muito difícil para a senhora estar sozinha...
- Não! – atalhou ela apressada – O filha da puta já devia era ter ido há mais tempo! Batia-me todos os dias e duma vez até me obrigou a entrar no forno de lenha ainda cheio de brasas! Eu só pedia a Deus que ele morresse antes de mim nem que fosse só um dia... para eu poder saber o que é viver com descanso!... E Deus atendeu-me!

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Uma amiga minha contou-me que foi a uma sex-shop e quando estava a ver os vibradores a dona aproximou-se e o diálogo foi qualquer coisa como isto:
- Posso ajudá-la?
- Não obrigada, estou só a ver.
- Se precisar de alguma coisa esteja à vontade.
- Bem... procuro um presente para uma despedida de solteira...
- Ah... então estes vibradores aqui são muito bons! É preciso é ter cuidado e nunca deixar as pilhas lá dentro. Eu por exemplo tiro-as sempre e o meu está impecável! Já a minha filha tinha o hábito de as deixar lá dentro e já teve que levar um novo...

domingo, 29 de novembro de 2009

E diz o homem de boné numa mão, de pé à minha frente, e com uma licença na outra mão estendida na minha direcção:
- Vocês fizeram aqui um colapso!

sábado, 28 de novembro de 2009

A mulher do bolo-doce percorria diariamente as ruas da cidade na sua carrinha branca. Conduzia muito devagar e, quando passava à porta das clientes habituais (como era o caso da minha avó), abrandava ainda mais, buzinava longamente, punha a cabeça de fora e gritava num vozeirão que só ela:
- Bolo-doooooooooooooooooooooce!!!
Dizia-se que, persistente, tinha feito exame de condução trinta vezes até os tipos se fartarem dela e lhe darem a carta de condução.
Ainda hoje, quando ouço alguém buzinar assim, mesmo que certamente não o faça com tão boas e doces intenções, ouço imediatamente na minha cabeça aquele longo pregão da mulher mais teimosa que conheci:
- Bolo-doooooooooooooooooooooce!!!

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

A minha filha tinha três anos quando, numa certa noite, ouvi um grande barulho vindo do quarto dela. Corri para lá e, quando abri a porta, dei com ela deitada no chão, embrulhada no edredon que pendia, choramingando levemente sem saber muito bem o que lhe tinha acontecido.
- Oh filha! O que te aconteceu? - perguntei enquanto a levantava do chão.
- Foi a cama! - repondeu-me ela queixosa - A cama acabou!
É um ponto de vista como qualquer outro...

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O filho único de catorze anos da minha amiga arranjou a sua primeira namorada. A mãe descobriu, como sempre descobrem tudo as chatas das mães. E interrogou-o. Queria saber quem era, como era, qual o nome, que idade tinha. O miúdo, como sempre fazem todos os miúdos, fechou-se em copas e da boca dele não saiu um som. Mas a minha amiga não é das que desistem. O seu instinto maternal à mistura com o cabrão do sexto sentido que dizem que as mulheres têm, levou-a a concluir que se tratava duma colega da equipa feminina de andebol e não perdeu um minuto, tratou de ir assistir ao treino. Já no pavilhão, sentada na bancada a tentar esquadrinhar todas as raparigas que via, na tentativa de descobrir de quem se tratava, foi vista pelo filho que, nervoso, se apressou a ir ter com ela para a convencer a ir para casa:
- Mãe! O que fazes aqui???
- Vim conhecer a tua namorada! Qual é? Qual é?
E o rapaz, completamente à toa, aproximou-se e em surdina, suplicou:
- Está calada! A mãe dela está mesmo atrás de ti!
Sempre discreta, a minha amiga virou-se para trás e deu de caras com uma altiva mulher negra de turbante cor-de-laranja à volta da cabeça. Completamente surpresa, olhou o filho e exclamou sem preocupação nenhuma:
- A tua namorada é preta???

E pronto. Assim ficou o rapaz com uma história que há-de um dia contar aos netos ao serão, no meio de grande risota.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Saímos para caminhar um pouco aproveitando uma noite menos má neste outono que já começa a esfriar. A certa altura, numa rua pouco movimentada apenas com alguns bares e restaurantes, vimos adiante uma mulher muito jovem com aspecto preocupado que pareceu um pouco aliviada por nos ver. Quando nos aproximámos ela abordou-nos. Estava um bocadinho envergonhada, o que reforçou a ideia de que fez aquilo porque estava numa situação limite. Que tinha mesmo que abordar o primeiro estranho que aparecesse:
- Desculpem - disse ela com as mãos encrespadas junto à gola do casaco - eu sei que isto vai parecer um bocadinho estranho mas... podiam tirar aquela aranha do meu saco?
Olhámos na direcção que ela apontava e lá estava, atirado no chão, um saco de viagem sobre o qual passeava despreocupada uma pequena aranha, daquelas que o povo classificou como portadoras de dinheiro.
O meu marido enxotou a aranha com um jornal. Ela agradeceu. Eu, numa reacção primária e imediata, ri-me. Mas arrependi-me logo a seguir.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

De todas as histórias de que me lembro e conto, aos outros e a mim, não consigo identificar nenhuma que tenha contribuído para a minha maior fobia, que só os muito íntimos conhecem. Sei que vou viver assim até ao fim. A recuar, a afastar-me discretamente em determinadas circunstâncias, a disfarçar um horror tão ridículo quanto real, para mim. E não vale a pena andar a vasculhar nos armários da minha vida. Há coisas que se escondem sem remédio. Já me habituei.
Na verdade, como já devem ter visto, isto não é uma história. É só uma tentativa de descobrir se toda a gente tem segredos.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Quando nos mudámos para um apartamento, daqueles com quarto e casa de banho de criada ao pé da cozinha, a maior novidade foi a campainha de chamada. Para os meus pais, aquilo foi um objecto exótico que eles não tencionavam usar, para nós foi um fascínio e fonte de inúmeras e animadas brincadeiras. Uma delas era ver quem conseguia, em menos tempo, percorrer a casa toda a tocar a campainha de chamar a criada até todos os números terem caído no mostrador da cozinha. Eram cinco. Claro que hoje em dia continuamos a brincar, como todos os adultos fazem, mas perdemos a capacidade de abrir um sorriso sincero com estas coisas simples.

domingo, 22 de novembro de 2009

Quando os meus pais não estavam em casa, fazíamos um restaurante. As mesas eram os bancos da cozinha e as cadeiras eram cadeiras mesmo, mas daquelas miniatura, de madeira, que na altura se compravam nas feiras e romarias por cinco escudos. Eu era a dona do restaurante e acumulava com o cargo de cozinheira. Os meus irmãos eram os clientes. Eu ia ao frigorífico e fazia omoletes recheadas de pão ralado, cascas de fruta ou bolachas maria, que eles comiam (de verdade). No fim, eu levava-lhes a conta e eles pagavem-me com notas que nós próprios tínhamos desenhado e recortado. Nesse tempo não havia ASAE nem livros de reclamações.

sábado, 21 de novembro de 2009

Esqueci-me de mencionar. Não estou ainda habituada a estas coisas. Mas este blog fez um ano no passado dia 18. Ainda é pequenino. Mas pronto, já tem pelo menos um aniversário na sua história. Obrigada.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

A minha tia (que era a costureira oficial lá de casa) fazia arranjos, bainhas e passajava as meias. Sim, deitar meias para o lixo num tempo em que as famílias eram numerosas, ainda que mais ou menos desafogadas, era impensável.
O problema com a minha tia é que ela fazia às meias aquilo que eu acho que se pode designar por passajadela de autor. Se a meia fosse azul, ela passajava de vermelho, se fosse amarela passajava de verde. Usava sempre uma cor contrastante, como que a deixar a sua assinatura na obra. Chegava mesmo ao requinte de malvadez de passajar a mesma meia de várias cores diferentes. Eu, pessoalmente, só me apetecia chorar quando pensava que ia ter que tirar os sapatos na aula de educação física, e acho que acabei por bater o record mundial de velocidade entre tirar os sapatos e calçar as sapatilhas só para ninguém ver as obras de arte costuradas nas minhas meias.
Hoje em dia, pensando melhor, acho que a minha tia foi a percursora do estilo "Desigual".

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Cresci num tempo em que não havia pudor de tratar as pessoas pelos defeitos ou limitações que apresentavam. Não por maldade ou intenção de ferir, mas sim com a mesma naturalidade com que hoje chamamos Chico a um Francisco ou Fáfá a uma Fátima. Na minha rua, que era uma rua onde toda a gente se conhecia duma ponta à outra, havia um conjunto de pessoas das quais eu nunca soube o nome de baptismo. Era a "Mãos Aleijadinhas", o "Maneta", o "Gordo das Bicicletas", a "Dos Cães e dos Gatos" e o "Retornado". Que eu me lembre, eram estes.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Ainda certas coisas como os telemóveis e outras coisas do género eram coisas para além da imaginação de qualquer mortal, já o meu pai me dizia que se não aprendesse a trabalhar com computadores seria uma analfabeta como quem naquele tempo não sabia ler nem escrever. Eu não entendia o que ele queria dizer com aquilo porque os únicos computadores que conhecia eram os dos filmes e das séries de ficção científica e, quando me imaginava, qual mister Spock em versão feminina, a descodificar cartões perfurados que saíam de máquinas gigantescas cheias de bobines numa qualquer nave espacial, achava que o meu pai, coitado, não devia andar a bater bem. Apesar disso aquela mensagem entranhou-se-me na cabeça de tal forma que fui uma das primeiras a comprar um spectrum e os respectivos calhamaços que ensinavam linguagem BASIC, divertindo-me então a fazer programas complexíssimos que permitiam dizer qual era o maior de dois algarismos ou fazer uma conta de somar. Mais tarde, assim que tive uma oportunidade, fui aprender MS-DOS, UNIX, e depois a versão mais primitiva do Windows. No fundo, vivia um bocadinho preocupada com a ideia de vir a ser uma analfabeta apesar de saber ler e escrever sem erros.
Há muito que pude concluir que o meu pai, muito antes do tempo, estava cheio de razão. Só me espanta que ele próprio não tenha qualquer interesse em aprender informática e só se digne a passar por um computador a uma distância segura.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Depois de aconselhar uma senhora sobre a melhor estratégia para resolver um problema burocrático que lhe atormentava a vida, ela mostrou-se agradecida e comentou:
- A senhora está mais apática nestas coisas não é?
Surpreendida, tentei entender:
- Desculpe?!
- Mais apática - repetiu ela, e depois explicou uma vez que era óbvio que eu não atingia aquele nível mais elevado de vocabulário - Quer dizer que está mais a par!

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Telefonou-me uma senhora que me perguntou se me podia fazer um inquérito de satisfação de cliente. Era do concessionário da marca do carro que eu comprei há algum tempo. Acedi. Com pouca vontade mas acedi. Tenho por hábito pelo menos tentar respeitar o trabalho dos outros. Ela fez-me talvez umas vinte perguntas, não menos, e no fim de cada uma delas, religiosamente, colocou-me todas as hipóteses de resposta: "Plenamente satisfeito, muito satisfeito, satisfeito, pouco satisfeito, nada satisfeito". Eu tentei calcular mentalmente o número de vezes que aquela mulher tem que pronunciar a palavra "Satisfeito" num dia de trabalho. Na verdade, para ela, a palavra "satisfeito" deve estar completamente esvaziada de sentido, de tanto a repetir. Como se fosse um conjunto de sílabas sem significado algum.
Pensei que finalmente tinha encontrado alguém com um emprego pior que o do papel higiénico.

domingo, 15 de novembro de 2009

Num dos momentos menos fáceis da minha vida, daqueles em que tive que puxar pela cabeça e fazer qualquer coisa para pagar as contas, dediquei-me ao já velho negócio das explicações. Tinha o décimo segundo ano mais um ano de universidade em letras, não tinha sido má aluna, tinha aprendido qualquer coisa, talvez pudesse também ensinar qualquer coisa aos outros. E foi assim que decidi colocar um anúncio numa montra. Os clientes não tardaram a aparecer mas, para meu desespero, queriam explicações de matemática, aquela coisa pavorosa que tanto me tinha custado a levar sem dor até ao nono ano. Mas como é uso dizer-se, a necessidade aguça o engenho. Aceitei. Peguei nos livros de matemática e fiz-me à tarefa de aprender sozinha. Eu, os meus botões e o meu desespero, no meio de fórmulas e algarismos, a tentar compreender algo que antes só tinha compreendido pela rama dos dez valores. E mal.
Ao fim de alguns dias já tinha conseguido desvendar alguns dos diabólicos segredos da lógica. E ensinei-os aos meus pupilos seguindo os mesmos raciocínios que eu própria tinha feito para lá chegar, cheios de aproximações ao mundo concreto. Na verdade, foi um sucesso. Com algumas aulas minhas qualquer miúdo conseguia, se não ser um Einstein, pelo menos tirar notas positivas nos testes.
Foi nessa fase da minha vida que concluí brilhantemente que o problema dos professores de matemática... é saberem demasiado daquilo.

sábado, 14 de novembro de 2009

A minha profissão assemelha-se muitas vezes à de barman, mas sem álcool. Quando uma pessoa nos abre o coração e a vida sem o auxílio do torpor que a bebida causa, é porque o quer fazer. Porque de alguma maneira estranha confiou em nós para nos contar um segredo, ou uma angústia, ou uma alegria. Muitas vezes, sentimos que temos que respeitar aquele momento como uma confissão.
Por isso, por sentir que seria quase uma violação, não fui capaz de contar aqui a história de emigração que me contou hoje aquela mulher russa que insistiu em preencher sozinha o formulário quase sem conhecer o português escrito e que constatou que depois de seis anos a trabalhar como operária já não sabia reproduzir a caligrafia irrepreensível de quando era professora. Às vezes fico assim. Acontece.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

EU: Bom dia!
ELA: Bom dia.
EU: Eu estou a falar da ****** *********. Estou a ligar para lhe comunicar que foi aprovado um pedido seu para colocação duma garrafa gigante na via pública para fins publicitários.
ELA: Ah, obrigada!
EU: Vou só precisar de uma informação, para calcular o valor da taxa a cobrar.
ELA: Sim, faz favor de dizer.
EU: Queria saber quantos metros quadrados o objecto vai ocupar.
ELA: Minha senhora, o objecto não pode ocupar metros quadrados!
EU: Não?! Porquê?
ELA: Porque é redondo!
EU: Mas é possível calcular a área dum objecto redondo.
E depois de alguns momentos de silêncio esmagador do lado de lá:
EU: Vamos fazer assim, diga-me a medida do diâmetro.
ELA: Diâmetro?! Que diâmetro?
EU: Pronto, diga-me então a medida do raio.
ELA: Mas qual raio?
EU: Olhe, diga-me só quanto mede a garrafa dum lado ao outro.
ELA: São nove metros de altura.
EU: Sim, e de largura?
ELA: Quatro.
EU: Obrigada. Bom dia.
ELA (visivelmente enfastiada): Bom dia.
E desligou. E eu quase que a conseguia imaginar a contar a toda a gente como são burros os funcionários públicos.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Naquele tempo os restaurantes chineses não eram comuns e eu nunca tinha ido a nenhum. Aliás, na minha cidade ainda não havia nenhum. Assim, como estava fora em viagem, vi um e resolvi experimentar.
Sentámo-nos e logo apareceu uma mocinha muito baixinha e de olhos amendoados dar conta do que havia nesse dia para almoçar. Havia vários pratos de frango. Azar. Se fosse vaca, ou peixe, tudo tinha corrido bem, mas frango??? De cada vez que a pobre criatura pronunciava "felaaango" duma maneira que eu nunca tinha ouvido na vida a não ser em rábulas revisteiras, eu ria-me que nem uma saloia. E sem conseguir evitar. É chato. Muito chato.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Quando os meus filhos eram pequenos, o meu pai, já reformado, levava-os a dar uns passeios pelos arredores. Com uma particularidade: Assim que chegavam à aldeia ou vila mais próxima, a uns dois ou três quilómetros de distância, dizia-lhes que tinham chegado ao Japão. Deste modo, os meus filhos passaram uma parte das suas infâncias convencidos que o Japão era um lugar com um largo, uma casa do povo, um café e uma capela, onde se chegava em menos de um quarto de hora.
Um dia fizemos as nossas primeiras férias no Algarve. O meu filho tinha na altura uns cinco anos e passou as cinco horas da viagem toda a massacrar-me, de dez em dez minutos, com a pergunta: "Ainda falta muito?"
Quando chegámos finalmente a Vilamoura, o puto estava mais do que desesperado e jurava a pés juntos que nunca, mas nunca mais, mesmo sem ter experimentado as praias nem as piscinas, iria ao Algarve. "Mas porquê?" - perguntei-lhe. "Isto é mais longe do que ir ao Japão!" - respondeu-me ele, agastadíssimo.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Uma história que eu sempre achei estúpida mas não podia dizer era a de S. Martinho. Naquele tempo não podíamos dizer que achávamos imbecil uma coisa que vinha no nosso livro de leitura. Mas a mim, ninguém metia na cabeça que Deus era uma pessoa de bem e muito menos que tivesse os cinco litrinhos aferidos. Cabe na cabeça de alguém que quem tem poder para tudo e mais alguma coisa...

a) deixe que faça frio e chova em cima dum mendigo quase nu?
b) espere que um cavaleiro corte ao meio uma capa que deve ter sido super-cara para logo a seguir fazer parar a chuva e abrir o sol?

Deus anda a gozar com isto tudo? Se fosse filho do meu pai e da minha mãe, já estava a levar um ralhete! Dos grandes!

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

A minha mãe estava a arranjar o jantar.
- Mãe! O que é isso?
- Carapau.
- De corrida?
- O quê?!
- Se esse carapau era de corrida.
- Não...
- Os de corrida têm um número nas costas?
- Não há carapaus de corrida!
Não foi exactamente como no dia em que descobri que não havia Pai Natal, mas também foi com um certo grau de decepção que descobri que o animal de que o meu pai mais falava... não existia.

domingo, 8 de novembro de 2009

Perguntei à minha mãe:
- Quando for grande vou ter bilau? - Bilau era a palavra usada para pénis lá em casa.
- Não! - respondeu a minha mãe horrorizada, talvez a antecipar o estigma de ter uma filha que viesse a querer ser camionista.
- Mas o P**** tem! - retorqui, implorando por uma explicação lógica para as diferenças óbvias entre mim e o meu irmão mais novo.
- Mas tu não!
As crianças às vezes são umas incompreendidas. Eu só queria mesmo perceber se estava muito atrasada no desenvolvimento em relação ao meu irmão porque ele tinha nascido há poucos meses e tinha bilau, enquanto que eu já tinha quase cinco anos e ainda não tinha!

sábado, 7 de novembro de 2009

Passei por uma fase em que queria ser a Anita. Sim, a Anita das histórias, que tinha a vida que todas as crianças desejavam. Ia sozinha à feira popular, com dinheiro no bolso, ia à praia, deixavam-na em casa à vontade para mexer em tudo, incluindo o fogão e demais electrodomésticos, e à vontade para se vingar como quisesse do irmãozinho mais novo. A Anita tinha um jardim só dela e aulas de dança onde fazia pontas sem nenhum esforço. Tinha uma quinta com porquinhos que não cheiravam mal e patos que não corriam como loucos atrás das pessoas. Ia às compras sem a mãe, o sonho mais louco que se podia concretizar...
Sim, a seguir a aparecer-me o Peter Pan à janela a convidar-me para ir à terra do Nunca, o que eu mais queria era mesmo ser a Anita!

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Quando cheguei ao ciclo preparatório tinha uma disciplina chamada matemática que, segundo os adultos da minha família, era uma coisa moderna. Foi então com bastante expectativa que assisti pela primeira vez a uma dessas aulas. Coisas modernas era o que a gente queria, porque de ensaios de rancho e de catequese já estávamos mesmo fartinhos. E na verdade as suspeitas confirmaram-se. O professor passou uma hora inteirinha a desenhar rodas no quadro e a dizer que aquilo eram conjuntos. Um conjunto de cinco bolinhas, outro de três estrelinhas, depois mais outro de dez triângulos... "É canja!" - pensei eu, habituada a problemas que metiam sempre agricultores que plantavam batatas e as vendiam e nós tínhamos que adivinhar por quanto e quantos quilos - "Isto vai ser como decorar o Pai Nosso na catequese, ou ainda mais fácil!"
Bem me enganei! Acabada a treta dos conjuntos vieram outras, mais complicadas e ainda mais inúteis do que as das colheitas agrícolas!

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Na minha escola havia prémios para as melhores alunas no final do ano e o podium era decidido pelo número de vintes que se tinha tido nos ditados e nos exercícios de aritmética (nesse tempo ainda não se chamava matemática). Os desenhos, os lavores e as redacções não contavam porque estavam a meio caminho entre o trabalho e a brincadeira. Mesmo assim, só se podia fazer redacções sobre a vaca, a primavera, as férias grandes e o Natal, os lavores só variavam entre as colagens (uma modernice), as construções com fósforos, o tricot e o ponto-de-cruz, e os desenhos só se faziam quando a professora tinha acordado muito bem disposta.
Houve um ano em que, por um mísero vinte, um único, fiquei em segundo lugar e ganhei um livro da Anita em vez dum globo terrestre que rodava e tinha os nomes dos países e as capitais. Acho que foi na segunda classe. Como eu gostava de decorar capitais! Acho que era mesmo a coisa que eu mais gostava de decorar a seguir aos reis.
Nesse ano senti-me derrotada como se me tivessem posto umas orelhas de burro e me tivessem mandado para trás da porta virada para a parede durante uma hora inteira. Ainda que no tempo em que eu andei na escola já não se pusesse as orelhas de burro a ninguém. "É anti-pedagógico" - explicou-nos uma vez a professora. Por isso limitava-se a pôr-nos de castigo viradas para a parede que não tinha janela sem nos podermos mexer nem olhar para trás.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

A avozinha, sem ninguém lhe perguntar nada mas entusiasmada pelo calor da festa de aniversário, resolveu desvendar um dos segredos mais bem guardados da família:
- Sabes quantos anos faço hoje? Setenta e nove!
A neta manteve-se calada.
- Sei o que deves estar a pensar - continuou a avó - deves estar a pensar que eu sou mesmo velha!
- Não - pensou a neta - estou a pensar que és mesmo mentirosa.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Foi a minha segunda experiência literária. Depois dum conto que escrevi como trabalho de casa na disciplina de português, resolvi abalançar-me numa novela. E mais uma vez também, num tema de que não sabia nada, não tinha qualquer experiência nem fazia a menor ideia do que fosse. Assim, de peito aberto e com catorze ou quinze anos de existência sobre o planeta, compenetradíssima no meu papel de escritora, inventei e passei ao papel uma história de adultério. Melhor, achava eu, que as do Eça. Era sobre um homem que contratava um detective particular para seguir a mulher, que ele desconfiava ser-lhe infiel. No fim, descobria-se que ela andava justamente com o detective contratado. Escrevi tudo num caderninho e achei-me um pequeno génio. Depois escondi com muito cuidado. Se alguém lá em casa lesse aquilo ia ser o fim do mundo.
Meu Deus, porque é que eu não guardei estas coisas?

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Estão a ver aquelas histórias entre o número de circo em que o palhaço pobre tropeça e cai e a anedota da Dica da Semana? Aquela situação clássica em que uma pessoa muito, mas mesmo muito surda, entende tudo ao contrário? Não tem piada nenhuma, dizem vocês. Pois não, respondo eu. Mas isso é na teoria. Na prática, quando perguntei ao senhor idoso à minha frente "Onde é a sua casa?", e ele, com a mão em concha na orelha me respondeu "O quê? Se eu já fui à caça?", eu tive que pedir licença, retirar-me lá para trás e dar com a cabeça na parede até perder a vontade de rir.

domingo, 1 de novembro de 2009

Um dos meus tios jogava futebol num clube da terceira divisão. Eu sabia que ele jogava porque ouvia as conversas e via-o de vez em quando com um penso na cabeça ou um olho negro. Ele explicava, ou que tinha caído, ou que tinha levado com uma pedra atirada da assistência e que se destinava ao árbitro. Essa parte eu percebia, e ia concluindo que o futebol não tinha tanta piada como brincar com as minhas bonecas. A parte que eu nunca entendia era quando ouvia alguém perguntar-lhe:
- Jogaram em casa hoje?
E ele respondia:
- Jogámos.
Como é que a minha avó, tão ciosa das suas coisas e da limpeza e da arrumação, deixava uma quantidade de matulões entrar assim à vontade e jogar à bola dentro da casa dela?

sábado, 31 de outubro de 2009

-Eu estou a cargo duma menina que está a estudar mas o pai dela é burro e não fala. O que faço?

Isto foi-me perguntado assim, mesmo com estas palavras e esta simplicidade, com um profundo sotaque angolano, e no fim a minha interlocutora olhou para mim e ficou à espera duma resposta como se me tivesse perguntado as horas.
É nestas alturas que me apetece ser eu a perguntar: O que faço?

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

A senhora aproximou-se da minha mesa e, muito compenetrada do seu papel, perguntou-me:
- Dê-me uma informação por favor. A polícia mandou-me parar, pediu-me a carta de condução, mas como ela estava "ranhosada", disse-me para a vir trocar. É aqui?
Eu, achando que não era muito elegante perguntar-lhe o que entendia ela por carta "ranhosada", pedi-lhe para a ver. Estava danificada. Por momentos ainda pensei que seria rasurada, começava pela mesma letra... Mas não. Estava danificada. Como se pode trocar essa palavra por "ranhosada"?

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Na esplanada daquele café de bairro, pouco cuidado e também não muito limpo, onde juramos que não vamos consumir nada que não venha já embalado, na mesa ao nosso lado, conversavam animadamente dois rapazes jovens. Um deles era brasileiro e notava-se no seu discurso algum nível de instrução. O outro era português. Falavam sobre planos para o futuro, tema de que falamos geralmente de peito aberto quando temos aquela idade. O primeiro dizia que só queria estar em Portugal mais alguns anos, para amealhar algum dinheiro e se estabelecer no seu país como empresário. Até que afirmou uma coisa que foi a que verdadeiramente me levou a considerar aquele momento singular. Disse que tencionava abrir um café, assim num conceito europeu, como aquele em que estávamos. Para mim vulgaríssimo. A gente senta-se, o empregado chega com uma bandeja na mão, pergunta o que queremos, volta para dentro e regressa depois com o pedido. A partir daí, uma pergunta ficou a bater na minha cabeça: Como são os cafés no Brasil? Sim. Se não são assim, são como? Concluí que tenho viajado pouco.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Conhecíamo-nos há pouco tempo. Por isso, a nossa relação ainda era feita de gentilezas e formalidades. Ela era mulata, filha dum militar português e duma negrinha duma sanzala angolana. De pele escura demais para ser branca e clara demais para ser negra, tinha um nariz aquilino a contrastar com uma farta cabeleira em carapinha. Podia dizer-se que era uma mulher bonita sim. Era mãe solteira. Também fruto de um envolvimento com um militar em missão. Casado. Condição que ela só descobriu após alguns meses de gravidez. Ele voltou para a família e ela jurou que odiaria homens para todo o sempre.
Um dia, mostrou-me uma fotografia onde apareciam várias meninas todas tom de lixívia. Algumas loiras outras nem por isso. No meio delas, uma criança de olhar negro muito brilhante e pele escura fitava-me com uma farta cabeleira em carapinha.
- Adivinha qual é a minha filha - disse ela.
Eu apontei imediatamente a pequena mulatinha, imbuída do mesmo sentimento de lógica com que afirmamos que dois e dois são quatro.
- É esta! - respondi.
De repente, o olhar da Sofia (era assim que ela se chamava) toldou-se duma raiva que eu ainda não lhe tinha visto.
- Porquê? - vociferou furiosa - Porque é que assumiste imediatamente que a minha filha é preta? O meu pai era branco! Ela podia sê-lo também! Perfeitamente!
- Mas - respondi confusa - a tua filha não é aquela?
- É! Mas podia perfeitamente ser uma das outras!
- Bem, foi só um palpite. Se não fosse tu dizias-me que não era e pronto. Se eu te mostrasse uma fotografia cheia de crianças negras e uma branca e te perguntasse qual era a minha filha, o que é que tu dizias?
- Pois fica sabendo que tu até podes vir a ter uma filha preta! Tu não sabes os antecedentes da tua família. Ou sabes?
- Oh Sofia, na boa! Quero lá saber da cor das crianças que posso ou não vir a ter, mulher!
A conversa continuou por mais alguns minutos, nos quais se trocaram mais alguns argumentos surreais. A possibilidade de virmos a ser qualquer coisa mais do que conhecidas, essa, ficou por aí.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Íamos ter uma visita de estudo à maior fábrica dos arredores e as professoras, tomando-nos por vegetais, incentivaram-nos continuamente nas aulas anteriores:
- Oh meninos, vocês aproveitem! Façam perguntas! Mostrem curiosidade!
- Então não? - pensava eu cá com os botões da minha camisa de flanela à ideóloga da revolução - Claro que faço!
Eu já as tinha todas fisgadas, que não era parva, não perdia pitada das novas tendências e via televisão todos os dias. E no dia da visita lá estava eu, na linha da frente, de caderninho em punho, pronta para me tornar mártir da verdade e da defesa dos mais fracos como no dia em que tinha ido comprar uma carteira com a minha mãe.
No final da ronda em que me mantive caladinha, o senhor que nos guiou mandou-nos fazer uma rodinha à volta dele e fez o convite de circunstância:
- Alguém quer pôr alguma questão?
Eu queria. Várias.
- Qual é a diferença entre o ordenado mais baixo e o mais alto dos trabalhadores desta fábrica?
- Qual a média dos ordenados das mulheres? E a dos homens?
- Os trabalhadores têm direito a férias e folgas?
E a professora de português que tinha ido connosco, coitadinha, tão frágil e delicada, a pôr as mãos à cabeça e a dizer num queixume sumido:
- Oh D...!... Francamente!...

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

- Sabe... - justificava-se ele humildemente por não ter sido capaz de explicar ao que vinha e só muito a custo termos conseguido descobrir - eu não tenho estudos nenhuns.
E depois, como que em jeito de explicação:
- Eu sou de 1966...
Disse aquilo como se estivesse a falar dum ano terrível, que tivesse ficado famoso pelas más colheitas e por tragédias terríveis que não permitiram que nada bom tivesse germinado e crescido.
Ninguém entendeu muito bem. Mas toda a gente achou que era melhor não entrar em pormenores.

domingo, 25 de outubro de 2009

Ao longo de muitos anos a trabalhar em profissão mal paga, aprendi um sem número de expressões utilizadas para designar o estado de "sem dinheiro". Todas elas eufemismos, que é a arte de fazer de conta que o mau é bom ou pelo menos divertido.
Uma das primeiras que ouvi foi a um colega que puxava o forro dos bolsos para fora e dizia: "Tenho imenso cotão! Acho que o vou investir na bolsa antes que desvalorize!". Por essas alturas, um outro contava, uns dias antes de receber que "Tive que vir a correr porque, teso como ando, se algum cão ma apanha parado mija-me nas pernas!". Depois, num registo menos filosófico, tínhamos aquele que jurava andar, pelo menos uma semana por mês, a "tirá-las do cu com um gancho", às notas, entenda-se. Mais recentemente, aprendi que ficar nas lonas antes do dia de receber, é uma sensação equiparada à de "andar a travar no ferro".
Tudo isto, no fundo, se resume a uma só expressão: Pobrete mas alegrete.

sábado, 24 de outubro de 2009

Ouvi esta numa loja dum centro comercial, entre duas amigas, e fiquei enternecida com tanta sinceridade:

- E depois ela pôs-se a mandar bocas!
- Ah foi?
- Foi! - e depois a fazer aquela voz fininha, requebrando-se, como quem imita alguém que detesta mesmo que esse alguém tenha voz de trovão - Ai não sei quê! Há gajas que são apanhadas a pôr os cornos ao marido e não sei quê!...
- Xi! E era para ti???
- Para mim não devia ser, eu nunca fui apanhada!

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

A M******** era a mais velha. Quase na idade da reforma, era ela que nos ensinava os mistérios da vida, duma forma que só as mulheres daquela geração sabiam fazer, convencidas de que o facto de terem conhecido um homem com quem casaram lhes conferia uma supremacia sobre as solteiras em matéria de assuntos obscuros. Era também ela a saber as novidades em primeira mão e a passar a informação ao grupo.
- A S**** está-se a divorciar, - disse-nos um dia à laia de bom dia - e a culpa é toda dela.
- Porquê??? Como é que sabes a vida da S****???
- Por causa do sexual (era assim que ela construía as frases). Ele contou-me várias vezes, coitadinho, que se "chegava" a ela e a cabra lhe dizia que não.
- Se calhar é porque não lhe apetecia...
- Apetecer?! Oh meninas! Se fosse por aí os desgraçados nunca faziam, porque a nós, depois de casadas, nunca nos apetece! Temos é que fazer esse sacríficio! É a nossa obrigação!
- Obrigação???!!!
- Ah pois! Vocês não pensem que a vida é um mar de rosas! Eu cá, sabe Deus, as vezes que estou cheia de nojo daquilo e a fingir que estou a gostar muito! E sabem o que é que eu faço? Conto as pecinhas do candeeiro de cristal que tenho no quarto. Já as contei umas poucas de vezes! E nunca me dá igual! Tenho ali com que me entreter até ele um dia se fartar! Mas sou uma boa mulher!

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

- Eu nunca tomo banho quando estou com o "chico"! - afirmava muito séria a C***** enquanto passava ao de leve o pano do pó pelos armários de arquivo como quem acaricia velhos amigos.
- Oh mulher! - respondíamos nós disfarçando o nojo - Isso já nem se usa!
- Os cuidados não têm modas! A minha avó já contava de mulheres que foram tomar banho, ou lavar a cabeça, e morreram!
- C*****! De certezinha que se eu lavar a cabeça hoje hei-de morrer um dia! Mas se não lavar também morro!
- Ah! Vocês são mas é parvas. - insistia ela - eu não tomo banho "nesses dias" e ponto final!
- Mas... - exclamou uma de nós - Isso é... é... muito...
- Eu sei! - arrumou ela despachada - No fim daquilo pareço uma ovelha que se deitou na lama e depois foi para o sol. Mas não quero saber!

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Lembro-me sempre dela com um sorriso e nessas alturas penso que espero que ninguém se lembre nunca de mim com um sorriso igual. Já não me lembro como se chamava mas toda a gente a tratava, menos do que carinhosamente, por "Bolinha". Aparecia nas instalações quando nós estávamos a sair, para fazer a limpeza. No pino do verão, despia-se e limpava os vidros das grandes montras em soutien e cueca, ambos beges ou brancos com muito elástico e reforços, enquanto cá fora os transeuntes ficavam a apreciar a cena única de ver a mulher do boneco Michelin a fazer a lida. Era loira e muito branca e o calor em exagero provocava-lhe alergias e irritações cutâneas constantes.
Um dia apareceu sem o sorriso habitual e confidenciou como costumava fazer (em alta voz e à frente de todos), que tinha desenvolvido uma infecção genital e não sabia como pois há três meses que já não traía o marido. Entrou na casa-de-banho e, uns minutos depois, chamou uma das nossas colegas. Ela foi expedita, cuidando que a Bolinha se tivesse sentido mal. Quando entrou, estava ela sentada na sanita, com as cuecas nos tornozelos e a saia bem subida com a ajuda de ambas as mãos. Muito preocupada perguntou-lhe em jeito de quem pede a opinião:
- Estás a ver? Tenho tudo vermelho!

terça-feira, 20 de outubro de 2009

A minha mãe saiu de casa disposta a comprar uma carteira nova. E levou-me com ela. Erro de estratégia. Porque depois de eu a ter ouvido dizer numas dez lojas que "Gosto muito desta. Vou dar mais uma volta e, se não encontrar nenhuma melhor, venho buscá-la", já sem paciência nenhuma, resolvi dar com a boca no trombone e dizer ao senhor da loja, muito penteadinho e de fato como se apresentavam dantes os trabalhadores do comércio, todos com ar de boas pessoas, que era mentira:
- É mentira. - disse eu quase com um sentido de missão dentro de mim - Ela diz isto em todo o lado!
A minha mãe, qual camaleão, mudou de cor para um tom que até aí só tinha nas faces graças ao "rouge", desculpou-se sem saber muito bem como e saímos para a rua onde levei a maior reprimenda da minha vida.
Achei injusto. Pois se a minha mãe, a minha própria mãe, aquela que me dava educação e não me deixava mentir nem fazer mal a ninguém, andava de loja em loja a enganar aquelas pobres almas depois delas terem desarrumado todas as carteiras que lá tinham só para lhe mostrar! E eu bem sabia como era um massacre arrumar os legos depois de brincar! A verdade tinha que ser reposta!

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

- Quero um gelado que não tenha chocolate! - dizia o puto fofinho com uma vozinha infantil para a empregada do restaurante, perante o sorriso enternecido de todos os clientes.
- O meu pai não me deixa comer chocolate porque eu estou com uma grande diarreia! - completou ele logo a seguir, achando que se tratava de informação importante.

domingo, 18 de outubro de 2009

A minha avó, que já não está connosco, gostava de dar longos passeios a pé, a ver quintas e casas que imaginava um dia comprar. Tão longos que chegou a acontecer ver-se no meio de aldeias vizinhas que já não conhecia e ter que pedir ajuda para voltar. Um dia vinha muito indignada. Num desses passeios, ela e uma amiga, já cansadas e com calor, resolveram entrar num cafezinho, que pela descrição dela era mesmo uma taberna, para tomar uma laranjada.
Chegaram-se ambas ao balcão de pedra e esperaram. O taberneiro, ainda que rude mas num gesto de cavalheirismo que era o melhor que conseguia dar, quando viu duas senhoras bem postas e desconhecidas ali ao balcão do seu modesto estabelecimento, chamou-as com um movimento de olhos para um lugar mais recatado, lá dentro ao pé dos barris, e numa voz muito discreta para que não o ouvissem os quatro homens que jogavam dominó numa mesa com uma toalha de oleado, chegando-se a elas com um cotovelo apoiado na pedra e um pano da loiça ao ombro, perguntou:
- Branco ou tinto?

sábado, 17 de outubro de 2009

Quando apareceram as notas de dez contos (quem se lembra?), a minha avó ficou ao mesmo tempo tão maravilhada e tão consternada por ser possível, com um só papelinho, fazer as compras todas do mês, que decretou ser um pecado gastá-las. Por isso, de cada vez que o meu avô lhe dava uma, ela guardava-a dentro da terrina e, simplesmente, esquecia o assunto.
Um belo dia o meu avô, vislumbrando uma ponta de papel esverdeado a sair de dentro da terrina que decorava a mesa da sala-de-jantar, levantou a tampa curioso, e o que viu foi dinheiro suficiente para comprar um bom carro.
Quando me lembro desta história, penso como seria bom eu poder fazer isto com as actuais notas de quinhentos. Isto se elas se dignassem a aparecer por cá. E se eu tivesse uma terrina.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

- Eu não tenho balança em casa. Não preciso.
Pasmei. Se uma balança é um companheiro inseparável de qualquer mulher que não goste de ser chamada João Manuel ou Zé Augusto, nunca imaginei que justamente para ela, sempre tão preocupada com a aparência, não o fosse.
- Mas tu passas a vida a fazer dietas! Como não tens balança?!
- Não tendo. Eu não avalio o meu estado físico em kilos, é em números de roupa.
- Sim, claro. Mas isso é perigoso. Eu consigo engordar uns cinco kilos à vontade antes das minhas calças me deixarem de servir.
- Ah, mas isso és tu que usas sacos de batatas! - explicou ela - Eu só compro roupa que me fique tão justa mas tão justa que eu me veja à rasquinha para apertar! O que é que pensas? Eu só respiro em condições depois de chegar a casa e vestir um fato de treino!

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

A senhora falava ao telemóvel. Alto demais para o tema de certa forma delicado que estava a tratar.
- A Teresa tem dois pais! Não! Três! A Teresa tem três pais!
- (...)
- Tem três pais não tem? Eu bem sabia! É uma mãe e três pais, aponta aí!
- (...)
Quando se sentou na minha mesa explicou. Era professora e estava a falar com alguém da escola sobre os atendimentos a engarregados de educação que uma das suas colegas tinha que fazer naquele dia: Uma mãe e três pais.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

À minha frente estava o presidente da junta duma freguesia pequenina nos confins dos limites concelhios. Vinha com uma senhora assustada demais e humilde demais para se apresentar sozinha numa repartição. Ele, de dentro dum fato muito largo e de xadrez castanho, falava alto e com palavras "caras" enfiadas à força no discurso. Tratava-me por doutora. Não porque me respeitasse ou desrespeitasse de forma particular, mas porque a senhora tinha que ter a certeza do investimento feito ao solicitar a sua companhia. Se vinha à cidade para falar com doutoras, ainda bem que tinha vindo protegida. O senhor presidente exibia com modéstia mal treinada a sua faceta de homem do povo, igual embora iluminado.
- Eu, aqui onde me veêm, já fui um sem-abrigo!
A senhora, que desde a sua chegada ainda não tinha tirado a malinha de cima dos joelhos bem apertados e a agarrava com ambas as mãos como se estivesse com medo de um assalto naquele meio inóspito, mostrou-se impressionada. Olhou para ele como se olha para as imagens dos santos nas igrejas e exclamou um "Vejam só!".
No seguimento da conversa, foi fácil concluir que a experiência de sem-abrigo do senhor presidente se resumia a ter levado uma coça do pai aos catorze anos e ter passado alguns dias a dormir num celeiro com medo de voltar a encarar a fúria paterna.
Não posso dizer que gostei deles sem parecer paternalista nem que não gostei sem parecer snob. Por isso, não digo nada nessa matéria. É um facto que há vários mundos que só se tocam ao de leve, aqui e ali.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Tinha catorze anos quando um colega me emprestou "O Último Tango em Paris", numa edição de bolso que ele tinha roubado ao pai e já tinha rodado meio liceu. Era um livro "lido", não um livro daqueles em bom estado, bom para ter na estante da sala. Estava gasto e via-se bem que muitos dedos tinham passado por aquelas folhas e muitos olhos tinham devorado aquelas letras. Os cantos exibiam uma ligeira curvatura e as folhas tinham amarelecido. Por qualquer motivo que não sei explicar, é mais convidativo ler um livro assim com aspecto de ter acabado de sair do alfarrabista do que um com aspecto de ter acabado de sair da livraria. Mas por isso mesmo, o benemérito que emprestava o livro à comunidade escolar vivia no dilema entre voltar a arrumá-lo no sítio de onde o tinha tirado e ser apanhado ou não o voltar a arrumar e ser apanhado na mesma quando o pai se desse ao trabalho de os contar.
No dia em que me coube a mim a vez de o ler, fui para a cama mais cedo, fechei a porta à chave e disse a todos que estava muito cansada porque tinha tido dois testes. Pela noite dentro, umas vezes espantada, outras incrédula, fiz uma das minhas primeiras incursões ao mundo desconhecido dos adultos. Mas nenhuma cena me deixou tão escandalizada como aquela já clássica da manteiga. Não sei quantas vezes voltei atrás para a ler de novo, na esperança de que afinal tivesse lido mal e não fosse aquilo. Mas não, era mesmo aquilo.
No dia seguinte, ensonada pela directa, entrei às oito e meia na aula de francês. Olhei para professora quarentona e com uns óculos na ponta do nariz. Era a primeira adulta que via sem ser os meus pais, que esses não faziam de certeza absoluta aquelas coisas. Senti uma desconfiança nova.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Uma coisa que eu acho que devia ser mais divulgada, se possível com spots publicitários na televisão e na rádio, é que uma pessoa pode ter mais do que um endereço electrónico. Devia-se explicar às pessoas que podiam ter um email para a brincadeira, para os hi-fives e os blogs e outro para quando andassem "à civil". Assim, eu escusava de mandar emails a dizer, por exemplo, que uma certidão está pronta para um charmoso50, para uma diabinha_sexy ou para uma fu.dilhona.maluka. É que não havia mesmo necessidade.

domingo, 11 de outubro de 2009

(continuação)
São duas horas, uma em Portugal, já ali a uns quilómetros de distância. Sem nada que o justifique, a vida começa a desaparecer. As lojas fecham, trancam-se portões e grades, recolhem-se toldos. Cada vez há menos gente nas ruas e os que permanecem são estrangeiros. Vamos deixando de ouvir as interjeições típicas. Mira, hombre! Que aconteceu? Pensamos que vai haver um ataque terrorista com armas químicas e só não nos avisaram a nós. Sentimo-nos perdidos. Afinal não. Por volta das cinco recomeça o burburinho da cidade sem que nada de grave tenha acontecido. Acreditemos ou não, eles foram dormir. Dormir? Sim, dormir! Como nas anedotas, como nas comédias de televisão, foram fazer a siesta. E quando entramos na primeira loja ouvimos um "Hola!" sem culpa. Não um cumprimento acabrunhado de quem pede desculpa por se ter deixado adormecer a ter perdido três horas de trabalho em pleno dia, como esperávamos, mas sim um "Hola!" de quem está a começar o dia fresquinho. É estranho, muito estranho! Somos tão iguais e tão diferentes!

sábado, 10 de outubro de 2009

(continuação)
Na mesa ao lado um casal conversa baixinho, mais do que nós. Tão baixinho que não dá para distinguir a língua em que falam. Andaram às compras e têm duas mesas ocupadas com sacos vários. Uma mulher aproxima-se a pedir uma cadeira: - "Está alguien sentado ahi?" - pergunta apontando. "No." - é a resposta que obtém, com ar enjoado, da rapariga que nem se mexe para tirar os sacos, como quem diz: - "És mesmo estúpida! Não vês que isto não é alguém, são sacos?". Fazemos apostas, são portugueses! Só um português é capaz deste exercício de sarcasmo, nunca um espanhol. Para um espanhol uma cadeira é uma cadeira, ou se pode tirar ou não se pode. Um português diz em média metade daquilo que pretende dizer, o resto cabe ao receptor adivinhar. Disse-me uma vez alguém que para os espanhóis os portugueses e os galegos são tipos que quando estão numa escada, ninguém sabe se vão a subir ou a descer. Visto do outro lado, talvez seja. Lembrei-me disso ao ver esta cena. Apurámos o ouvido, muito atentos, a partir daí. Afinal não acertámos. Com muita dificuldade, conseguimos distinguir. Não são portugueses, são espanhóis. Surpresa! Excepções? Não! Como bons portugueses que somos, logo desenvolvemos uma teoria. Devem ser catalães, ou bascos. Nunca extremeños, muito menos andaluzes. Assunto resolvido com os espanhóis antipáticos da mesa ao lado.
(continua)

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Duas crianças corriam uma atrás da outra por entre as mesas. Gritavam muito como se não houvesse amanhã. Ninguém ligava excepto nós, que concordávamos na necessidade de pregar dois estalos nos fedelhos para que parassem de importunar os demais. Os pais nem os viam. Sentados à volta duma mesa com muitas cervejas a que chamam cañas e alguns amigos, conversavam também animadamente, com o mesmo furor com que em Portugal se vende cobertores e colchas nas feiras com microfone, nunca numa conversa de amigos. De vez em quando ouve-se um "Mira!", um "Venga!" um "Hombre!"ou um "Vale!", mais sonoros ainda do que o resto da conversa. A empregada corre debaixo dum calor insuportável para conseguir atender toda a gente. Levanta as mesas e atira para o chão guardanapos usados e pacotes de açúcar vazios que são levados pela brisa que corre a espaços. Os pacotes de açúcar são enormes. Davam para três cafés dos nossos, mas não para os cafés con leche de quem mata toiros na arena, berra desesperado nas procissões ou atira toneladas de tomates aos vizinhos numa festa. Tudo tem que ser maior, mais dramático e mais exagerado. Acho que um espanhol chora tão desesperadamente por morrer a mãe como por perder um guarda-chuva. Ri com tanta alegria por ganhar a lotaria como por ter chegado sexta-feira.
Os miúdos pararam de correr. Estão agora a um canto a fazer negócios de "cromos", que vão separando em montinhos de "Ja lo tengo" e "No lo tengo". A lenga-lenga deve ouvir-se até ao fim da rua, mas eles não têm culpa. É impossível dizer "No lo tengo" com a discrição com que se diz "Não tenho". "No lo tengo" tem que levar um ponto de exclamação no final, e a palavra "tengo" tem que ser dita com a música dum flamenco. Imagino a lenga-lenga dos pivetes acompanhada de bater de pés no chão e palmas. Aaaaaaiiiiiiiii!!! Que vontade de rir!
(continua)

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

O calor do sul de Espanha... Não o sul das praias e dos resorts, mas sim o sul das cidades históricas que não têm mar. Um calor que dá a quem vem de fora a impressão de se ter instalado ali há muitos séculos, com as oliveiras e as laranjeiras, as catedrais e as mesquitas. Vencidos pelo cansaço, parámos numa esplanada à sombra duma parede branca cheia de pequenos vasos pendurados. À volta ouviam-se muitas línguas diferentes. Aqui e ali sobressaía uma mesa de nativos, sempre superiores em decibéis como é sabido. O local era agradável e fresco. Pedimos refrescos, recostámo-nos e estudámos mais uma vez o mapa para planear as visitas seguintes. De vez em quando, passava uma charrette a cavalos com turistas. Até que uma delas se deteve um pouco, o suficiente para que um dos animais aliviasse os intestinos, de forma audível e abundante. Ao retomar a marcha, deixou no meio da estreita estrada, mesmo em frente aos turistas que gozavam dum momento de relaxe, o produto resultante, que por força do calor encheu o ar dum cheiro insuportável em poucos segundos. Em poucos segundos também pousou no local um bando de pardais, para quem o "presente" representava um inesperado festim de nutrientes. Enojados e desagradados com a interrupção do seu descanso, os turistas voltavam a cara. Os nativos, esses, continuavam a conversar entre si sonoramente como se nada tivesse acontecido. E na verdade, pensando bem, nada aconteceu de relevante.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Eu estava a ver um tele-filme na televisão sobre um menino que era preto e queria ser branco. Depois de várias peripécias, concluía-se que a cor da pele não interessa quando se tem um bom coração e eu até já estava a ficar um bocadinho emocionada. A única coisa de que tive pena foi que ele não tivesse conseguido, efectivamente, ficar branco. Aí sim, seria o perfeito final feliz. Perguntei à minha mãe se não havia nenhum tratamento que transformasse os pretos em brancos e ela respondeu-me negativamente. Lembro-me que fiquei angustiada e com pena deles como se se tratasse duma doença horrível com que se nasce. Lembro-me que a minha mãe me respondeu qualquer coisa sobre não me preocupar com isso pois tinha nascido branca. Hoje, esta memória arrepia-me. Mas depois penso que não, nós não éramos uns monstros, nem eu nem mesmo a minha mãe que pensava assim já depois de adulta. Nós éramos apenas o resultado dum país que vivia de colonizar e onde não era permitido introduzir variantes ao pensamento dominante. Ponto final.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

A MINHA COLEGA: Ontem vi-te com a tua filha! Está tão alta!
EU: Sim, a minha filha é alta. Não muito, mas é alta.
A MINHA COLEGA: Está enorme!!!
EU: Oh mulher, a minha filha tem vinte anos! Já está daquela altura há montes de tempo!
A MINHA COLEGA: Ai mas eu vou-te dizer... Ela e o meu Nuno os dois "emparedados", não sei qual seria o maior!
EU: Emparedados?!
A MINHA COLEGA: Sim! Os dois lado a lado!

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

- Então vocês vão-me dar isso a cores? - perguntou ele.
- Sim, vamos. A impressora a preto e branco está avariada. Mas vamos-lhe cobrar só o custo do preto e branco.
- Mas eu não quero isso a cores!
- Não quer?! Mas o senhor costumava reclamar sempre quando lhe dávamos isto a preto e branco!
- Pois. Mas eu queria que me dessem a cores porque me tinham dado razão. Não porque a impressora avariou!

domingo, 4 de outubro de 2009

Uma das coisas que sempre tive dificuldade em entender nas lições de história foi a instauração da república. A professora contava-nos que um tipo chamado José Relvas tinha ido à varanda da Câmara Municipal de Lisboa em 1910 anunciar o fim da monarquia e o princípio da república. Até aqui tudo bem. Mas este episódio suscitava-me dúvidas muito mais profundas que nunca nenhum adulto me soube explicar de forma convincente:
- Quem mandou o José Relvas à varanda dizer aquilo?
- Porque é que uma coisa tão importante foi resolvida assim com uma pessoa a ir à varanda gritar?
- Quem estava cá em baixo para o ouvir?
- Como é que um país inteiro, cuja população estava esmagadoramente longe da varanda da Câmara Municipal de Lisboa, se tornou republicano assim sem mais nem menos?
- As pessoas sabiam? Alguém lhes perguntou se queriam? Ou o José Relvas foi para a varanda dizer aquilo sem ninguém lhe ter encomendado o sermão?
- Porque é que a república passou a ser uma coisa boa de repente em 1910, se durante a escola toda eu tinha andado a aprender os feitos heróicos dos nossos reis? Afinal o que era bom e o que era mau?
- Porque é que o presidente da república era melhor do que os antigos reis, se na verdade ninguém gostava dele e toda a gente dizia mal mas só baixinho e dentro de casa para não ir para a cadeia?
Aquela história toda cheirava-me a esturro. E mais. Levava-me inevitavelmente a algumas perguntas mais pertinentes ainda:
- Basta uma pessoa sozinha ir à varanda da câmara gritar qualquer coisa para ela passar a ser verdade?
- Se eu conseguir subir à varanda da câmara da minha terra e gritar que todas as crianças passam a receber chocolates todos os dias e deixa de ser obrigatório ir à missa, isso torna-se verdade assim tão facilmente? Ou tem que ser um adulto a fazer isso?
Mas estava visto que os adultos só iam às varandas anunciar coisas que não tinham interesse nenhum, por isso nem valia a pena ir por aí.

sábado, 3 de outubro de 2009

O velho cine-teatro ficava na praça central da cidade. Era grande. Levava mais de mil pessoas ao mesmo tempo a vibrar com as aventuras do James Bond, a chorar baba e ranho com as desgraças dum filme indiano ou a trautear as músicas do Grease. Era velho. As escadas já rangiam um bocadinho e as casas de banho estavam aquém do admissível em termos sanitários e ficavam na cave. O segundo balcão tinha a alcunha popular de "piolho" porque ditava a tradição que era para lá que iam ver cinema as pessoas que não tomavam banho e eram mais propensas a criar relações íntimas com o animal homónimo. Tinha camarotes. Primeiro balcão. Plateia para os remediados. Quando eu era criança, adorava ir ao cine-teatro. Gostava de cinema, mas mais do que isso, gostava de estar na fila B do primeiro balcão a ver as luzes gigantes do tecto altíssimo a apagar devagarinho e o pano pesado a abrir indolente. Mentalmente fazia um exercício: Olhava lá para cima, para umas aberturas redondas de onde vinha a luz e que eu imaginava serem túneis de luz sem fim que só acabavam nas núvens, e logo a seguir percorria rapidamente com o olhar todo o pé-direito do edifício até acabar lá em baixo na plateia com muitas cabeças pequeninas em fila e isso provocava-me uma vertigem que me fazia cócegas pequeninas no estômago.
Ao lado da sala principal havia um salão de baile com um palco para a orquestra e vários sofás de veludo vermelho à volta que era onde as donzelas esperavam o convite para dançar. Nunca fui a um baile daqueles mas era assim que eu imaginava. Pares felizes a rodar no soalho muito brilhante e encerado. Nos dias de cinema era para o salão de baile que as pessoas iam no intervalo do filme, conversar e fumar. Nesse tempo fumava-se em qualquer lado, não havia leis anti-tabaco nem preocupação com isso.
Foi no cine-teatro que eu vi o meu primeiro filme de cinema, foi lá que fiz o primeiro ensaio de namoro e foi também lá que eu ri como doida e chorei baldes de lágrimas com as tragédias e as alegrias das personagens que de tão grandes me pareciam verdadeiras.
No cine-teatro trabalhavam algumas senhoras de bata azul que já toda a gente conhecia e um senhor que usava uma farda e um boné e tinha uma lanterna para levar ao lugar as pessoas que chegavam atrasadas. Mais discreto, nos bastidores, trabalhava o Sr. Luís, que era quem projectava os filmes. Eu olhava para trás, para a janelinha lá em cima de onde saíam raios coloridos que percorriam o ar até à tela onde se transformavam magicamente em imagens, e imaginava o Sr. Luís lá dentro, no meio de máquinas complicadas com quilómetros de película que girava em rodas sucessivas. Nunca ninguém o via, mas eu sabia quem era. Porque no final da última sessão, ele vinha cá fora com um balde de letras e um escadote, mudar o título do filme para o do dia seguinte. Era um trabalho de paciência, porque tinha que subir e descer várias vezes, tirar as letras que já não interessavam e pendurar outras e ir avançando com o escadote. O que ele fazia pachorrentamente. Quando acabava, descia, afastava-se um pouco e olhava para a obra terminada. Por detrás dos seus óculos muito graduados, o senhor Luís afagava o rosto pensativo, que era como quem diz que a ortografia não devia estar para vinte valores mas não fazia mal.
Um dia, o cine-teatro ficou tão velho e já ia lá tão pouca gente que teve que fechar. Mais tarde, as pessoas que mandavam na cidade e que tinham com certeza as mesmas memórias que eu, teimaram em não o demolir e fizeram-lhe obras. Ficou bonito, moderno, irrepreensível. Mas nunca mais foi a mesma coisa.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

A televisão costumava dar uns desenhos animados em que as personagens eram os Beatles, que eu por acaso até gostava muito de ver mesmo não sendo tão giros como os do Pitosga. O genérico desses desenhos animados era umas imagens dos quatro rapazes a fugir por ruas e becos de um bando de raparigas histéricas e esta era a parte que eu não percebia. Tentei obter explicações por parte dos adultos sobre o assunto. Se eles tinham feito mal a alguém e lhe queriam bater e porque é que eram só mulheres a correr atrás deles. Principalmente, porque é que eles fugiam das mulheres daquela maneira desesperada. Ainda se fosse animais selvagens, ou polícias zangados, ou criminosos com tatuagens nos braços!...
Não tive qualquer êxito, no entanto, e continuei sem perceber a lógica de todo aquele quadro. O meu pai limitou-se a dizer que eles eram um bando de piolhosos, o que não justificava absolutamente nada, antes pelo contrário. Quanto à minha mãe, era de opinião que eles eram uns estúpidos e uns inúteis, pois com tantas raparigas a andar atrás deles, algumas tão jeitosinhas e provavelmente boas donas-de-casa, todos tinham escolhido ficar com raparigas feias.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

O programa de televisão estava chato por demais e eu entretinha-me por ali a rabiscar desenhos em folhas de papel. Até que uma observação de um dos adultos captou a minha atenção:
- Isto é que vai ser a música clássica do futuro! - dizia alguém - Daqui a uns duzentos anos, quando as pessoas forem a um concerto de música clássica, é isto que vão ouvir!
Detive-me então no homenzinho de figura quase ridícula que fazia soar nuns instrumentos uns sons sintéticos sem qualquer harmonia e até mesmo desagradáveis. Era mais ou menos como os barulhos que fazia o portão das traseiras do nosso quintal quando alguém resolvia abri-lo. Eu, sempre opinativa, intrometi-me na conversa:
- Não! Eu acho que a música clássica do futuro vai ser a dos Beatles.
- Tu não sabes o que dizes - respondeu-me alguém com um sorriso condescendente.
Não discuti, não estava em dia de me arriscar a uma lambada. Mas no meu íntimo fiquei com a certeza que tinha razão. E tinha os argumentos todos a meu favor: Ninguém sabia quem era aquele homenzinho, mas toda a gente sabia quem eram os Beatles. Ninguém conseguia trautear a música daquele homenzinho no duche, mas toda a gente conseguia trautear o "Yesterday", até os mais duros de ouvido. Os Beatles já eram tão velhinhos que faziam músicas desde que eu era muito bebé e se calhar até antes e eu já estava bem crescida. E no entanto ainda eram conhecidos e provavelmente continuariam conhecidos por mais uns trinta ou quarenta anos até eu ser muito velhinha. Isso sim, é clássico!

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Era na porta da mesinha-de-cabeceira, aquele local insuspeito que não muitos anos antes só servia para guardar o bacio, que o meu pai escondia as leituras proibidas. Descobri isso numa das vistorias que fiz à procura das prendas de Natal e que acabou por ter um resultado muito mais suculento. Nem me lembrei mais das averiguações que levava a cabo para saber se sempre ia receber um gira-discos ou uma máquina fotográfica. O achado que tinha acabado de fazer bem mais importante. Os meus pais não estavam em casa nesse dia e a única pessoa que estava a tomar conta de mim era, felizmente, fanática por tachos e afins, pelo que dificilmente sairia da cozinha para vir à minha procura. Então, sentadinha no tapete de "carpélio" cor-de-rosa, calada como um rato, eu fui descobrindo o mundo naquele tempo inacessível das anedotas muito sujas, fotografias inqualificavelmente e chocantes e Vilhena. Sim. Acima de tudo apaixonei-me por Vilhena. Pelos textos irrepreensivelmente bem escritos a contrastar com o conteúdo escandaloso, pela crítica ácida e pelos desenhos perfeitos. Imaginei, sem o conhecer, que por trás daquelas criações refinadissimamente abjectas, estaria um cavalheiro, e isso anulava o sentimento de culpa. Voltei muitas vezes àquela mesinha-de-cabeceira, sempre que os meus pais saíam. Apenas sabia que tinha que decorar sem falha o lugar de cada livro e de cada revista, e o lado para o qual estavam voltados, para depois voltar a arrumar tudo exactamente como estava. O meu pai era muito meticuloso!
O que eu não aprendi sentada naquele tapete cor-de-rosa!...

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Ser uma das mais velhas no local de trabalho confere-nos, para além de alguma autoridade, o estatuto oficial de contadora de histórias. Se não fosse por nós, como é que os mais novos iam ficar a saber dos grandes escândalos de tempos idos? Quem lhes ia contar que aquela senhora respeitável de meia-idade já tinha sido apanhada na cantina a amar em cima das hortaliças do almoço? Como ficariam informados sobre a estranha vida sexual dos que já se reformaram? Dos engates clandestinos que toda a gente soube mas se perderam no tempo? Como? Porque ainda que alguns possam estar a pensar que isto são futilidades desnecessárias, eu não concordo nada! É muito importante manter viva a tradição oral dentro da organização e assim criar o sentimento de pertencer a um local com história. Ora nem mais!

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Eu e a Cristina vínhamos da escola e, contrariando as constantes advertências dos nossos pais, decidimos entrar no parque e ficar um bocadinho a andar de baloiço antes de irmos para casa. Nunca tínhamos entendido o porquê da preocupação. Coisa de pais, desmancha-prazeres que fazem tudo para nos tornar infelizes, só podia ser! Então, pousámos as mochilas num canto, debaixo duma árvore e, divertidas como só as crianças conseguem ficar com tão pouco, voámos como loucas no baloiço.
A certa altura reparámos num homem duns cinquenta anos que, atrás duns arbustos ali perto, nos olhava fixamente com um aspecto alucinado. Abrandámos a velocidade do voo e ficámos a olhar para ele também. Na verdade, além de nos fixar, ele produzia com a mão direita dentro da braguilha, um movimento ritmado e repetido.
- O que será que ele está a fazer? - perguntou a Cristina.
- Sei lá! - respondi eu - Deve estar com problemas de bexiga. A minha mãe de vez em quando também tem.
E continuámos a andar de baloiço despreocupadamente, durante mais um bocado, com as nossas minúsculas saias a esvoaçar e levantando as pernas quando atingíamos a maior altura, dando gritinhos inebriados.

domingo, 27 de setembro de 2009

Não me parecendo que a senhora à minha frente tivesse qualquer tipo de deficiência, nem estivesse grávida, tive que lhe perguntar por que motivo tinha tirado tiquet de atendimento prioritário.
- Porque estou com pressa! - respondeu ela muito despachada.
- Vai-me desculpar, mas a pressa não é um motivo válido para tirar tiquet de atendimento prioritário.
- Então tiro qual? - continua ela - Se não tirar uma destas não sou atendida antes dos outros!
- Pois. O atendimento prioritário é para deficientes, grávidas, idosos, pessoas com crianças de colo e advogados.
- Então e quem está com pressa?
- Vem numa altura em que não esteja com tanta pressa. Eu não posso atendê-la com esse tiquet. Há muitas pessoas que chegaram primeiro.
- Sim, mas se não tiram tiquet prioritário é porque não têm pressa não é?

E enquanto argumentava com a mulher que não queria entender a lógica objectiva das prioridades, eu pensava como seria bom viver num mundo em que as pessoas fossem tão honestas consigo e com os outros, que até a pressa podia ser um motivo válido para atendimento prioritário nas repartições.

sábado, 26 de setembro de 2009

Eram oito da manhã, eu tinha acabado de tomar banho e ainda não sabia exactamente como me chamava, de onde vinha nem para onde ia, quando o telefone lá de casa tocou. Estranhei, não era costume àquela hora, e por uma fracção de segundo pensei que devia ter acontecido uma desgraça qualquer. Fui atender e do outro lado uma voz feminina perguntou se era eu.
- A própria - respondi.
- Bom diaaa!!! Eu sou a catequista do seu filho!
- Sim?...
- Sabe, eu tenho andado aqui a pensar... o Joãozinho disse um dia destes na catequese que a mãe não acredita em Deus nem vai à missa. A senhora acredita numa coisa destas?
- Acredito porque é verdade. Eu deixo-o ir à catequese porque ele quer, mas não faço questão nenhuma nem quero saber de nada disso.
Do outro lado, "ouvi" um silêncio. Imaginei que a megera tivesse caído para o lado e, satisfeita, preparei-me para desligar e ir à minha vida. Mas no último segundo, ela ressuscitou.
- Eu gostava de falar com a senhora sobre esse assunto! Posso ir aí a casa?
- Vai-me desculpar, mas nós não temos nada a conversar sobre este assunto. Eu não quero saber da religião para nada!
- Está bem - estas víboras sabem bem dar a volta aos assuntos - Mas eu gostava de falar consigo na mesma! Conhecê-la, só... Posso?
Nesta fase bem me tramou. Como é que uma pessoa que ainda se vai considerando bem-educada vai dizer a outra que não pode entrar lá em casa?
- Está bem, pode...
- Então logo às nove e meia da noite estou aí!
- Estou tramada! - pensei - Isto a mim só destes cromos e falta de dinheiro!
Mas que podia eu fazer? Já tinha fraquejado perante o inimigo. E às nove e meia em ponto, tal como tinha ameaçado, lá estava ela e o marido, também beato, a tocar-me à campainha. E mais ou menos até à meia-noite, enquanto comia os meus biscoitos e se alambazava no meu chá, a criatura insistiu com o dedinho indicador a apontar para o tecto que "Quem sabe se não será através desta criança que Deus vai entrar nesta casa?", enquanto que eu lhe tentava explicar que não perdesse tempo, nem o dela nem o meu, mas em vão. Às vezes não tenho mesmo sorte nenhuma!

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Uma das experiências mais traumáticas que tive nos meus contactos com a igreja foi o baptizado da minha filha mais velha, ao qual tive que aceder por grande pressão do pai e respectiva família. Na altura pensei que, não trazendo nada de bom, mal também não faria. Pensar assim é uma das defesas possíveis do derrotado. E foi imbuída desse espírito que eu me dispus a dominar o meu estômago e frequentar as reuniões de preparação para o evento, na sé catedral da paróquia mais "bem" da cidade. Logo na primeira sessão, tivemos direito a um casal de beatos que piedosamente acedeu a partilhar connosco a sua imensa experiência e sabedoria de família cristã. E lá estava eu, sentadita numa cadeira a ouvir a récita e na verdade à espera que acabasse para ir embora. Só que aquilo que me fizeram nesse dia foi muito, mas muito pior do que poderia ter imaginado! Foi medonho! Não é que o prelector tinha escrito um texto sobre "a família e a educação dos filhos na doutrina cristã", com frases do género "quem vive em Deus escolhe amar" e "um coração decidido a amar acolhe Deus no seu seio" e outras que não me lembro, e foi ler aquilo enquanto a mulher, ao fundo, fazia avançar uma demonstração de slides com fotografias deles próprios?! Sim, juro! Fotos deles num churrasco, fotos deles a dar banho ao cão, fotos do casamento deles!... Tudo isto ao ritmo monocórdico dum texto imbecil lido por um lerdo! E acreditem, se se tratasse de duas pessoas de aparência normal, ainda mal o menos! O problema é que ele tinha os dentes de fora e uma franja e ela, era gorda, usava collants brancos e vivia permanentemente com um sorriso estúpido na cara, como se lhe estivessem a fazer cócegas e tinha um penteado em forma de capacete! Eu comecei a ver a minha vida a andar para trás e tentei pensar em coisas muito tristes. Baixei os olhos de modo a ver apenas os meus próprios joelhos e concentrei-me no funeral da minha mãe que até hoje felizmente ainda não morreu. Tentei ver-me a seguir o carro fúnebre com lágrimas nos olhos. A minha mãe, coitadinha, que não tinha visto crescer a netinha!... E acreditem, eu estava mesmo quase a conseguir. Se não fosse o palerma ter elevado a voz, a um determinado ponto da prelecção, e ter dito com elevação poética que "a família cristã é aquela em que Deus é reconhecido como objecto supremo" enquanto mostrava uma fotografia dele e da mulher a comer arroz de frango num piquenique, eu tinha conseguido chegar ao fim sem me rir. Assim, não deu. Nessa altura eu desmanchei-me numa gargalhada que já estava apertada na garganta desde que a minha mãe tinha ficado tuberculosa coitadinha... uma daquelas gargalhadas que quer sair mas ao mesmo tempo não quer e acaba por adquirir a forma dum cruzamento entre riso e espirro.
Toda a gente ficou a olhar para mim enjoadíssima, fiquei mal vista, e a minha sogra nunca me perdoou.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

O azeite e o vinagre eram para mim substâncias alienígenas que eu me recusava a usar. Molhos, especialmente se levassem natas ou leite, eram proibidos lá em casa pela minha mãe que os achava nojentos. Pimenta não se usava. Por tudo isso, havia determinados pratos que se transformavam em pesadelos. Como por exemplo, pescada cozida. Sem qualquer tipo de tempero ou lubrificante, tratava-se da comida que eu mais odiava e que mais me custava a forçar pela goela abaixo. E nos dias em que eu vinha da escola, esfomeada, a imaginar pratos suculentos de galinha no forno ou esparguete com carne, já a sentir-lhes o cheiro e o sabor nas papilas, e quando entrava na cozinha e via à minha espera, escarnecedor, um prato com uma posta de pescada cozida, uma batata enorme e um ovo... só me apetecia cortar os pulsos.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Era um homem idoso e sentou-se à minha frente com ar desanimado.

- Minha senhora... Eu venho aqui fazer uma queixa sobre um vizinho...
- Sim. O que é que se passa então?
- Ele faz as porcarias num balde e vai despejar à minha porta.
- Como?!
- Eu explico. Ele faz as porcarias, sabe, aquelas coisas que se fazem na retrete? Ela faz num balde. Depois despeja à minha porta.
- Mas porque é que ele faz isso???
- Ele é "estrambulhado". Mas eu é que não tenho culpa.
- O senhor já chamou a polícia?
- Chamei, ainda hoje lá estiveram. Muito simpáticos por acaso, era uma rapariga e dois homens. Mas eles a modos que olharam para aquilo... e disseram-me para vir aqui que vocês é que resolviam.

Pois - pensei eu cá para mim - a merda é para nós.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Fui cortar o cabelo. Quando cheguei ao trabalho, tive este diálogo surreal com uma colega:
- Foste cortar o cabelo! Mas não cortaste muito!
- Cortei dois meses.
- Dois meses? Como?
- Então, cheguei lá à cabeleireira e disse, "Tire-me dois meses."
- Ai tu fazes assim?
- Faço. Chego lá e digo quanto quero cortar. Uma mês, dois meses, três meses...
- Mas como? Não estou a perceber!
- Oh rapariga, a cabeleireira corta o que ele cresceu em dois meses, percebes?
- Mas como é que ela sabe?
- Olha, nem ela sabe, nem eu, nem ninguém. Isto é só uma conversa de m... e eu estava a brincar ok?
- Ah!!! Eh eh eh!

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

O calor. O pátio coberto por um pérgola de videiras. Os pés de piri-piri a rebentar de malaguetas vermelhas. Os coelhos fofinhos. As galinhas tolas a lançar penas por todo o lado quando lhe atirávamos pedras à socapa. O baloiço feito pelo meu avô debaixo da figueira. O telheiro. Os raminhos de chá a secar debaixo do telheiro. As árvores de fruto. As frutas carnudas com cheiros doces. As filas de alface a delimitar talhões de tomates, pepinos e cenouras. Os poços e as bombas manuais de tirar água fresca. Os gafanhotos verdes. As lagartixas verdes. As lagartas da couve. As couves onde nasciam as crianças mas só quando eu não estava a olhar. A relva com a roupa a corar. A minha mãe a bater nos tapetes pendurados com uma raquete. o tanque enorme. O milho. A terra. Os nossos brinquedos espalhados no pátio. O triciclo. O Anglia bege telecomandado do meu irmão. A minha boneca espanhola que dizia "te quiero mucho". O muro alto. As pedras salientes onde nós subíamos o muro alto para espreitar a rua. O alecrim. A erva-doce. A tília. Os gatos vadios. A casa amarela de janelas grandes viradas ao sol. Os meus vestidos frescos. As minhas sandálias azuis e brancas. As floreiras no corredor. A colcha bordada a lã de muitas cores. As moscas furiosas. As tiras à porta a travar as moscas. Os lírios. Os malmequeres. Os grilos a cantar nas noites quentes. A roupa a secar. O meu avô a matar coelhos para o jantar. A minha tia a matar galinhas. Eu a fugir para dentro de casa para não ver morrer os coelhos nem as galinhas. Eu a acariciar o pelo dos coelhos mortos como se lhes aliviasse a dor que já não tinham. O calor.
Recordações de verão numa casa que já não existe numa aldeia que já não o é.

domingo, 20 de setembro de 2009

Foi na festa de anos duma amiga, quando eu tinha dez anos. Lembro-me bem que tive que chorar baba e ranho para que os meus pais me deixassem ir ao aniversário duma miúda que não conheciam e nem sabiam se era de boas ou más famílias e que morava no fim do mundo. Depois de irmos até à última paragem do autocarro ainda tínhamos que andar dois quilómetros a pé para chegar à casa dela, o fim!... Foi a minha primeira grande aventura longe da supervisão paterna.
Quando chegámos a casa da Celeste, vimos que não havia lanche, nem bolo de anos, nem balões coloridos, nem nada! Só uma pequena mesinha redonda com um prato de tremoços e uma jarra de sumo verde que não sabia a nada.
- Despachem-se, - disse-nos ela - roubei cigarros ao meu pai, vamos para o milho.
- Para o milho?! - perguntei - Fazer o quê?!
- És mesmo estúpida! Anda embora!
A Celeste era uma miúda loira muito sardenta, filha duma família de agricultores. Tinha uns olhos azuis e redondos muito inocentes que lhe davam imenso jeito e, tanto quanto vim a saber mais tarde, continuaram a dar-lhe imenso jeito pela vida fora.
Mas continuando, segui-as pelo campo até ao milho, que era a planta mais alta e que melhor nos camuflava, onde nos embrenhámos até uma mini-clareira no meio que tinha sido previamente aberta, estrategicamente, pela nossa anfitriã. Aí, sentámo-nos no chão e ela começou a distribuir cigarros daqueles sem filtro e fez circular uma caixa de fósforos. Eu estava aterrorizada:
- A minha mãe não me deixa fazer isto!
- Pois, nem as nossas! - responderam-me - Por isso é que viemos para aqui.
Acabei por fumar (se é que se pode chamar isso a tossir vezes sem conta) uma coisa daquelas. Com apenas alguns tremoços e um copo de corante verde no estômago, sentia-me zonza e prestes a levantar voo por cima do cereal. A sensação que tinha era a de que estava a fazer uma coisa terrível, como atropelar um cãozinho com a bicicleta. Fumar, para os meus pais, era uma coisa tão pecaminosa como o sexo, coisa que viria mais tarde a provocar-me a mesma sensação de estar a ser uma criminosa sem perdão. Mas isso foi mais tarde...

sábado, 19 de setembro de 2009

Se toda a gente fumava, então eu tinha que fumar também. Não podia correr o risco de ser considerada uma choquinha, ou uma menina da mamã. Pelo estilo, tudo!
Foi, então, com grande determinação, que eu acendi o meu quase primeiro cigarro aos doze anos de idade. Odiei, e já sabia que odiava. Era amargo e agredia a minha garganta ainda hoje híper-sensível. De cada vez que aspirava o fumo duma daquelas coisas diabólicas, era como se me estivessem a furar as cordas vocais com pregos. Mas, durante um ano, um ano inteirinho, eu treinei-me de forma impecável para sorrir como se estivesse a gostar tanto daquilo como gostaria de que a minha mãe me aumentasse a semanada dez vezes, enquanto pegava no cigarrito entre o dedo médio e indicador da mão direita, muito esticados, e fazer uns gestos subtis e leves com a mão ao mesmo tempo que arrotava umas postas de pescada entre amigos. Esteticamente, era o máximo!
Claro que todos os dias tinha que ter o cuidado de chupar umas pastilhas de mentol antes de entrar em casa, lavar os dentes com uma dedicação sobrenatural, encher a roupa de perfume e refundir o maço de tabaco debaixo do colchão para que os meus pais nem sonhassem. Mas na minha percepção do mundo, era um investimento que compensava.
No entanto, todos nós crescemos e amadurecemos. Passamos a ter uma visão diferente das coisas e eu, aos treze anos e dez dias, muito convencida da minha maturidade recém-adquirida pela chegada do período, depois duma profunda auto-análise, concluí que estava farta de fingir que gostava daquilo. Peguei no resto dos cigarros que tinha em casa e, revoltadíssima comigo mesma, com a porcaria dos conceitos estéticos e com a minha parvoíce, disse:
- P... que p... esta porcaria! Quero mais é que esta m... se f...!
E assim, meus amigos, posso dizer que deixei de fumar aos treze anos de idade.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

ELE: E agora aqui no fim, escrevo "cumprimentos"?
EU: Não. Aí no fim escreve "pede deferimento" e depois assina.

Ele olhou-me com estranheza, como se o estivesse a mandar enfiar a caneta no rabo, ou como se achasse que eu estava simplesmente a gozar com a cara dele. Mas não discutiu. Lá deve ter achado que era melhor assim.
Então, com uma caligrafia envergonhada, quase sumida, escreveu na parte inferior da folha A4 que tinha à sua frente: "Pé de ferimento"

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

O casal amigo dos meus pais foi lá a casa numa visita de cortesia mas vinham muito consternados. Lamentavam-se chorosos que o filho não queria estudar mais e ia trabalhar para as obras. E ainda nem tinha terminado o 2.º ano do ciclo!
- Ainda se fosse ela! - dizia a mãe enquanto o pai acenava com a cabeça concordando - Uma rapariga não precisa de estudos, precisa é de saber tratar da casa! Qualquer dia arranja um marido para tomar conta dela e pronto! Agora o meu rapaz!...
Eu estava lá no meu canto a roer uma bolachita maria e fiquei toda arrepiada. Felizmente, e justiça seja feita a ambos, os meus pais sempre me obrigaram a estudar, mesmo quando não me apetecia nada, para não ter que depender de ninguém na vida. Nem de marido nenhum.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A minha colega do lado, mesmo ali ao meu lado, enviou-me um email para o outlook. Dizia secamente: "Por favor chama tu esse gajo que eu não o quero atender", levantou-se e foi para os bastidores. Depreendi que alguma coisa grave se passava. Eu atendi o cavalheiro, mas como não podia deixar de ser, mais tarde fiz o meu papel de cusca para saber o motivo daquela atitude.
- Ele joga futebol no ********! - explicou ela - E quando eu andava no liceu costumava ir à mesma esplanada que ele tomar café depois do almoço.
- E?...
- E eu estava completamente caidinha por ele! Aperaltava-me sempre toda! Depois chegava lá, passava ali um bocado toda derretida e ele nem dava por mim! Nunca deu por mim, nem sabia quem eu era!
- Mas...
- Mas isso é uma ofensa! Nunca lhe vou perdoar! Não o atendo!
- Ok...

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Esta passou-se com uma chefe que tive há uns anos e que quis Deus em boa hora que deixasse de o ser.
A nossa fotocopiadora avariou e chamámos a assistência. No dia seguinte, lá apareceu um senhor com uma malinha à porta do nosso gabinete.
- É aqui que está uma fotocopiadora avariada?
- Avariada não! - respondeu ela prontamente e muito séria - Está super avariada!
- Super avariada?! - perguntou o técnico intrigado.
- Sim! - ela já a ficar irritada - Não vê aqui a mensagem no visor? Tabuleiro sup. avariado!

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Eu, os meus irmãos e mais alguns miúdos da vizinhança decidimos fazer uma aposta para ver quem era mais corajoso: Descer de bicicleta um morro de uns três ou quatro metros de altura, quase a pique, que tinha ficado ali depois dumas obras. Os miúdos aproximaram-se mas olharam cá para baixo e tiveram medo. Tentaram várias vezes e desistiram. Mas eu, que era a mais velha, não podia deixar os meus créditos por mãos alheias. Subi a pulso com a minha bicicleta pelo lado mais fácil e depois de a montar, aproximei-me do lado mais íngreme. Quando olhei cá para baixo tive a sensação de estar à entrada do inferno e embrulhou-se-me o estômago.
- Isto? Isto é canja! - disse eu - Vocês é que são uns mariquinhas!
Nos olhos deles, vi um misto de revolta pelo meu insulto e admiração pela minha ousadia. Já não havia como voltar atrás. Mentalmente, contei até três, afastei as pernas pois não valia a pena dar aos pedais naquela desgraça, respirei fundo e lancei-me. Com o balanço brutal que apanhei, só parei uns bons metros à frente, no meio dum emaranhado de silvas, com bicicleta e tudo. Depois, só me lembro de olhar em volta e ver os meus irmãos assustados a olhar para mim do lado de fora das silvas, como que a pensar que, se eu morresse ou saísse dali com alguma coisa partida era uma chatice pois teriam que confessar o que andávamos a fazer.
Com algum esforço e completamente cravada de espinhos, repleta de arranhões pelo corpo todo, consegui sair dali e tirar a bicicleta. Entrei em casa às escondidas e fui para o meu quarto arrancar espinhos, pôr mercurocromo nas feridas e mudar de roupa. Parecia que tinha sido atacada por uma crise fortíssima de sarampo. No entanto, que eu me lembre, ninguém lá em casa me perguntou o que tinha acontecido. Eram mesmo outros tempos...

domingo, 13 de setembro de 2009

- Mãe, o que é um homossexual? - perguntei descontraidamente.
- Onde é que ouviste isso?
Mas que mania os pais têm de, quando lhes perguntamos qualquer coisa, nos devolverem esta pergunta. Que interessa onde ouvimos?
- Ouvi na escola. - era a minha resposta chapa sete.
A minha mãe respirou fundo, desviou a atenção do que estava a fazer e preparou-se para me responder:
- Olha, isso é... um homem que anda por aí com outros homens. E Deus disse que eles merecem a morte, por isso, nunca mais penses nisso.
Nao insisti. Se o assunto metia pena de morte instaurada por vontade divina, é porque era mesmo sério. No entanto, fiquei a matutar naquilo. Eu sabia que o meu pai costumava ir tomar café e discutir futebol e política com outros homens. Sabia-o de fonte limpa, pois já me tinha levado algumas vezes com ele. Será que ele estava também sujeito à pena de morte à mão do altíssimo? Passei vários dias a pensar naquilo e até estive quase para o avisar que deveria deixar de ser homossexual pois arriscava-se a provocar a ira de Deus e ser morto com um raio. Felizmente, não tive coragem de o fazer.

sábado, 12 de setembro de 2009

A família cigana entrou e os pais afastaram-se para serem atendidos num dos balcões do fundo. O filho, um miúdo de uns cinco anos, ficou por ali a brincar, até que reparou na máquina de vending. Aproximou-se da minha mesa e perguntou, exibindo uma moeda de vinte cêntimos numa mão e uma de um euro na outra:
- Posso pôr isto naquela máquina para tirar coisas?
- Podes - respondi - se os teus pais deixarem podes.
Ele dirigiu-se à máquina, mas não tinha altura suficiente para chegar à ranhura. Uma senhora que ia a passar e reparou na cena, questionou-o de modo simpático:
- Então pirralho, estás com algum problema?
- Quero um chocolate quente - disse ele exibindo apenas a moeda de vinte cêntimos.
- Mas isso não chega, é preciso outra igual. Não tens mais?
O miúdo baixou os olhos e acenou que não com a cabeça, com um ar capaz de derreter o coração ao Gengis Khan em pessoa. Até eu, que sabia que ele tinha um euro, me senti capaz de saltar o meu posto de atendimento e ir lá tirar-lhe o chocolate quente. Embora não tenha sido necessário pois a senhora fê-lo por mim.
É a isto que chamam "filho de peixe sabe nadar"?

sexta-feira, 11 de setembro de 2009


Recebi mais um selo (qualquer dia já posso escrever para toda a gente), pela mão da Sininho, que vai para a colecção ali do lado à vossa direita. O preço é: Assumir três compromissos. Oh Diabo! Então e eu vou assumir assim compromissos? E se depois não cumprir? Sou castigada? Ora então, deixa-me cá arranjar uns compromissos porreiros...

1. Comprometo-me a entrar de férias a partir de 2ª feira, apesar de já ter histórias agendadas para saírem aqui todos os dias sem falhar um :)
2. Comprometo-me a não voltar ao trabalho com o cabelo no estado em que está. Antes de ir trabalhar vou dar uma demãozinha de robbialac.
3. Comprometo-me a trabalhar e chatear-me o menos possível durante as minhas férias.

E agora as vítimas. Tem que ser, é a vida:

Gi
Miepeee
Emiele
Monday
mfc
Saltapocinhas
Su
Predatado
Fernando
Mirian

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Lembro-me do meu primeiro dia de catequese como se tivesse sido ontem. Quando cheguei sentámo-nos todas numas cadeirinhas a formar uma roda, com a catequista na cadeira maior, como se estivéssemos numa sessão de terapia de grupo dos alcoólicos anónimos. Eu não chegava com os pés ao chão e fiquei a balançá-los para a frente e para trás, sinal de que estava pouco à vontade ali. À minha frente a catequista de coxas grossas e mini-saia minúscula cruzava as pernas. Tinha um cabelo rebelde e comprido e maquilhava-se para além do razoável. Lembro-me de ter pensado que quando crescesse queria ser assim. Como se tratava duma discípula de Deus, não devia haver nada de errado, apesar de no fundo qualquer coisa me dizer que talvez ela não fosse o melhor exemplo de catequista. Ela tinha uma voz suave, muito diferente da minha professora quando ralhava connosco por não sabermos as coisas. Mesmo assim, eu não me sentia no meu elemento e, cada vez mais nervosa, amarfanhava entre os dedos o catecismo que me tinham entregado à entrada. O catecismo era um livrinho pequenino e fino, nada de mais portanto comparado com os calhamaços da escola. Pensei que havia ali pouco para decorar e quanto a isso não deveria haver problema. De acordo com as instruções da catequista, abrimos na primeira página. Em tons pastel, via-se a imagem dum senhor de barbas e cabelo comprido, talvez um hippie, com os pés assentes numa nuvem pequenina e o braço direito levantado como se estivesse a saudar uma multidão, como eu tinha visto fazer ao senhor presidente do conselho quando passou pela nossa aldeia no seu carrão preto. Por baixo, lia-se a pergunta: - "Quem é Deus?" - e a resposta - "Deus é o pai do céu."
Numa demonstração óbvia de que seria mais talhada para outras obras do que para aquela, a nossa tutora, de forma atabalhoada, perguntou em voz alta:
- Meninas! Quem é Deus?
Nós, desconfiadas de que com a resposta ali escrita descaradamente aquilo era fácil demais e que devia haver ali uma armadilha qualquer, permanecemos caladas à espera da surpresa. Até que, com algum desespero, ela respondeu como se nos estivesse a chamar muito lerdas:
- Deus é o Pai do Céu!!!
Depois, perguntou a mesma coisa a cada uma de nós individualmente, e cada uma respondeu o que ela queria ouvir: Deus é o Pai do Céu. No final, numa espécie de resumo da aula, declarou solene:
- Então, hoje ficaram a saber que... Deus é o Pai do Céu!
Para mim, não fazia qualquer sentido ter um pai no céu, assim como não fazia sentido não ter. Era-me basicamente indiferente, desde que aquilo continuasse fácil de decorar como parecia ser.
Apressei-me para casa, pois era dia de galinha assada no forno.