A Chica era arredia. Pouco falava, mas também pouco falavam os outros com ela. Vivia num lugar tão afastado e pequeno que quase ninguém no liceu sabia onde ficava nem se existia de facto. Vestia-se como pedinte, tinha um tom de pele enferrujado e uma cabeleira louro-palha muito rebelde, suja e cortada em casa. Tinha treze anos como nós. Basicamente, não tinha amigos. Eu sei que nunca fui amiga dela. Era-me indiferente que ela existisse ou não.
Um dia, a Chica deixou de aparecer nas aulas. Os professores foram fazendo a chamada e marcando falta diariamente, até ter sido ultrapassado o limite e o nome dela ter sido riscado dos livros de ponto. Para além de a turma ter ficado mais curta, nada se alterou nas rotinas de ninguém.
Mais tarde, um rumor começou a circular no liceu: A Chica estava grávida! E o pai da criança era o seu próprio pai!
Os colegas franziam a testa de espanto e nojo. O quê???!!! Nunca se tinha ouvido falar de tal coisa!
Mas também nunca ninguém se deu ao trabalho de confirmar nem de desmentir. Nem os colegas, nem os professores, nem a direcção da escola. Nunca ninguém sugeriu que pudesse ser um caso de polícia. Que eu saiba, não havia comissões de protecção de menores.
Estávamos todos demasiado ocupados a viver a revolução.
Nunca mais soube da Chica.
O Tempo Entre Costuras
Há 4 semanas
6 comentários:
Pois é, situações destas perdem-se na bruma dos tempos, só agora têm visibilidade.
Infelizmente, apesar dos anos que passaram, situações destas ainda hoje acontecem.
O que será feito da Chica?
Bom... Aqui houve casos semelhantes estampados em capa de jornais. Da última vez, quando a mãe optou pelo aborto que a menina 9 anos fez, grávida de gemeos, o bispo local excomungou mãe e médicos. O padrasto, autor da brincadeira, só cometeu um erro.
Gi, por causa visibilidade que têm agora, a gente pensa nas histórias antigas com algum peso na consciência.
Dantins, não sei mesmo. Mas penso que gostava de saber... e de me redimir... sei lá...
Senhora, esse caso ficou mais famoso que a Torre Eiffel. Rais parta a padralhada.
Ouvia-se muitas histórias semelhantes antigamente e todos pareciam aceitá-las como normais.
Era mais isso... Pelo menos como "coisas com as quais nós não temos nada a ver".
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