Na primeira vez eu tinha doze anos. Foi-me dito que ia conhecer a aldeia do meu pai, que era um sítio tão bonito como nos contos de fadas. Que tinha campos floridos e riachos sorridentes onde podíamos tomar banho sem ninguém nos incomodar e sem encontrar lixo atirado pelos cantos. Que as casinhas eram tão bonitas que pareciam de presépio e que as pessoas eram todas simpáticas. Fiquei excitada com a antecipação de tão interessante viagem e acho que até sonhei com a Terra do Nunca naquela noite.
Lá fomos. Depois de muitas horas de viagem chegámos a uma montanha de onde se avistava, ao longe, no vale, um conjunto de casas pobres.
- É ali! - disse a minha mãe virando-se para o banco de trás onde eu e os meus irmãos olhávamos à procura de qualquer coisa.
- Aquilo?! - pensei eu. Mas como já era considerada uma mulherzinha, fiquei calada. Só os mais pequenos tinham o direito de dizer o que eu estava a pensar porque ainda não sabiam o que diziam.
À chegada, um grupo de figuras enfezadas vestidas de preto rodearam o carro, com uma curiosidade demente. Nós tivemos medo, mas mais uma vez eu não disse nada.
Quando saímos, as velhas agarraram-se a nós aos beijos e aos abraços, tratando o meu pai pelo nome e chamando-lhe "meu menino", com vozes fininhas e muitos "xix" mesmo nas palavras que não tinham nenhum. Depois, do meio da pequena multidão, apareceu uma rapariga horrível, amarela, sem dentes e mais baixa do que eu, que se abriu num sorriso assustador e me saudou:
- Olá! "Semos" primas!
Por momentos, eu pensei que os senhores que fazem filmes de terror deviam ter-se inspirado numa visita que fizeram a uma aldeia assim.
Mas não, o pior ainda não tinha chegado. O pior era não haver casas de banho e as pessoas fazerem as necessidades agachadas no curral, no meio das cabras hsitéricas que, para uma pessoa naquela posição, se transformavam em bestas ameaçadoras. O pior era a comida, que se resumia a algumas batatas cozidas e, com a nossa chegada, foi temporariamente melhorada com uns bolos de farinha sem açúcar fritos em azeite muito ácido. O pior era não haver electricidade e, consequentemente, não haver televisão. O pior era os cobertores de papa que nos deram para dormir e que me provocaram uma noite inteirinha de comichões. Ao anoitecer, naquela aldeia, não havia qualquer som a não ser o dos animais no campo, nem qualquer luz a não ser a da lua e das candeias de azeite. Nas casas mais pobres, nem camas havia. Dormia-se em cima dum fardo de palha. Nós tivemos que visitar todas as casas, porque todos se conheciam e para que ninguém ficasse ofendido.
No segundo dia eu já só desejava ir embora para algum lugar longe daquelas cabras aos berros, mas não podia dizer nada. Felizmente os meus irmãos recusaram-se terminantemente a fazer xixi e, com medo que eles ficassem doentes, ou quem sabe porque também já não aguentavam aquilo e usaram essa desculpa, os meus pais decidiram partir. O que eles não sabiam é que também eu não tinha conseguido dar livre curso às minhas necessidades fisiológicas. Para que ninguém me incomodasse com perguntas ou observações impróprias, eu limitava-me a entrar no curral, encostar-me a uma parede sem tirar os olhos daqueles bichos com barbicha que nunca se calavam e, depois de alguns minutos, sair em pânico.
Às vezes penso que gostava de revisitar aquela aldeia, para me reconciliar com as raízes do meu pai ou, quem sabe, para me certificar que não fui eu que inventei tudo aquilo.
Mas imagino que hoje já tenha chegado a electricidade e que as pessoas já sigam o enredo da novela. Que já se comam pizzas e hamburgueres e que já lá tenham construído casas tipo maison, com azulejos e telhados alpinos... e casas de banho.
O Tempo Entre Costuras
Há 4 semanas
9 comentários:
Outros tempos sem duvida. Esta tua descricao faz apenas parte do meu imaginario e de historias identicas que ouvi dos meus pais.
Beijinho e boa Pascoa.
Menina... Quando você for, até eu quero ir! Fiquei arrepiada!
;)
bjs
Miepee, pois é, sou muita cota, lol!
Então combinamos assin Senhora, eu espero por ti. :)))
Castanha Castanha!!!
Tuas histórias são hilárias!!!
Me fazem lembrar de coisas que passei..
Mas, juro te que nunca imaginei passar por algo assim...
Que situação!!!
Boa Páscoa! E amêndoas, muitas!
Nóas os Cachorros, há pior!
Para ti também Patrícia! Boas mini-férias!
Beeem....
Eu tenho algumas recordações vagamente associadas, mas, cof...cof...
sob uma luz muuito mais alegre. Talvez por o cenário ser mais para o sul, com casas caiadas de branco e riscas azuis nas janelas, sempre muita luz, tudo o que contas fica mais alegre.
Os nossos quantos tinham como que uma pequenina casa de banho :) ou seja um lavatório e um bidé e traziam uns grandes jarros de água quente todas as manhãs. Para o banho mais a sério havia uma celha grande e tomava-se banho aí unas duas vezes por semana, além de lavar os pés à noite antes de ir para a cama...
As tais «necessidades» eram feitas longe de casa, num anexo, numa espécie de bacio muito alto onde se punha uma tampa no fim, e alguém (não faço a menor ideia de quem estaria encarregado de tal função) levava depois para despejar numa fossa qualquer. E nada de bichos por perto...
De resto os «primos» até eram bem giros e gozávamos uns com os outros pelo sotaque - eles com o meu de lisboeta e eu com os deles :)
Eu nasci numa aldeia mais ou menos assim. Lembro-me de virem instalar a luz e de construírem a casa-de-banho. Custou 40 contos. Foi mais cara que a casa inteira.
Emiele, de facto o cenário deve fazer a sua diferença. Mesmo com a parte em comum de não haver uma sanita decente.
Lol bell, 40 contos são... 200 euros!
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