O M***** nasceu e cresceu numa família a que se costuma chamar humilde porque se tem (e bem) pudor de lhes chamar outras coisas. Todos os clãs começaram da mesma maneira, a catar piolhos uns aos outros e a comer carne crua à mão. Os motivos que levaram uns a andar mais depressa do que outros na cadeia da evolução são tão complexos e têm uma tão grande dose da componente "acaso", que não vale a pena, na verdade, vangloriarem-se muito os que já atingiram a meta do escorreito. Aqueles em que os artifícios fazem com que quase não se note que também comungam das mais básicas fraquezas naturais humanas.
Com 40 anos, o M***** pertence à primeira geração que aprendeu a ler. Os filhos, são a primeira geração que fez o nono ano, a ferros e com currículos especiais. Ainda lhes faltarão umas quantas gerações para que o primeiro membro da família deixe de arrotar à mesa. Mas já se notam alguns avanços, ou pelo menos, desejos disso. O M*****, quando foi tirar o último bilhete de identidade, decidiu num momento louco que ia ter uma assinatura de elite. Sacou da esferográfica Bic ponta grossa (sim, que nem aceitou a que a funcionária lhe estendia) e desenhou, num rasgo de inspiração raro, uma assinatura ilegível com curvas, voltas, linhas rectas e, a rematar, dois pontinhos. Ficou tão, mas tão orgulhoso, que decidiu que aquele bilhete de identidade não chegaria a andar encardido nem com o formato das "nalgas" marcado por anos de bolso das calças. Guardou-o numa carteira de plástico própria para documentos que nem sequer levou para a oficina para não a sujar.
O pior veio depois, quando teve que começar a assinar como no bilhete de identidade para que a assinatura pudesse ser oficialmente reconhecida. Simplesmente porque já não sabia que voltas, que curvas e que linhas tinha que fazer e por que ordem para conseguir reproduzir aquela obra única com o selo branco da república. Os dois pontinhos finais ainda lá iam, mas o resto...
Apareceu-me há dias um primo do M*****, a entregar um impresso assinado por ele mas já não em forma de assinatura artística. Era apenas o nome, escrito com uma caligrafia derrotada pelo desânimo desde o M****** até ao Silva.
Sem saber da história, observei que aquele senhor tinha que assinar como no BI, caso contrário não lhe poderia reconhecer a assinatura. Respondeu-me o primo, com ares de quem já teve que explicar aquilo vezes sem conta:
- E ele lá se atreve! Quis-se armar em doutor e agora já não consegue assinar igual nem que treine o dia todo! Mas está bem, eu vou lá à oficina dizer-lhe isso...
Levantou-se para ir embora, mas ainda fez um último reparo:
- O que ele vai ter que fazer é tirar um BI novo, essa é que é essa! Foi o que ele arranjou com as manias...
O Tempo Entre Costuras
Há 4 semanas
10 comentários:
Aaahhh... A história ficou tão excelentemente ótima de boa! :)
Tira o último parágrafo, vai... ;)
Ok... :)
Sabe que eu fiquei com peninha dele?... Das suas manias, talvez até muito criativas, mas que eram limitadas por um conhecimento esparso, da incapacidade de ficar quieto num banco escolar.
Aliás, escapei por pouco... :) Sempre detestei escola! :)))
Quem não detesta escola com 10 anos?
Gostei mt daqui e estou te linkando nos meus dois blogs!
Voltarei mais vezes e com mais calma!
Bjs :)
Esta história fez-me lembrar a Kate winslet em " O Leitor". Quando aprendeu a ler, suicidou-se!
PS: Tem uns miminhos lá no CR
O castigo tarda, mas não falha.
Assinado: aquela que sofreu duras penas para descobrir a rúbrica adequada e particou páginas até ter a certeza que não ficaria "engasgada" em público.
:)
Volta sempre Erica :)
Carlos, essa ainda não conheço. Mas deve ser uma história de objectivos pior que o SIADAP.
Lol Taralhoca! A sério?
Bem, eu lá assinar sei. Mas o que treinei e nunca consegui foi fazer uma rubrica!!! A sério. Quando é preciso «rubricar» escrevo as iniciais e o último apelido de modo a ficar mais pequeno, mas não sei fazer uma rubrica como toda a gente...
Que vergonha.
Emiele! Mas isso é uma coisa que a gente treina quando começa a ter a mania que é gente, lol!
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