Quando acabei a quarta-classe e chegou a altura de mudar de escola para continuar os estudos, os meus pais consideraram que talvez fosse melhor morarmos na cidade, que era onde estavam os liceus. Mesmo sem ninguém me ter pedido a opinião, concordei de imediato. Morar na cidade era tudo o que eu queria há muito tempo. Poder chegar até à civilização sem ser de autocarro! Morar num sítio onde se saía de casa sem ser só para ir à missa! Morar num sítio onde no caminho de casa para a escola e vice-versa havia lojas e cafés e cinema e não só as casas das outras pessoas que, ainda por cima, todas sabiam quem tu eras e se metiam na tua vida! Era o meu sonho tornado realidade! Na verdade acho que os meus pais também estavam fartos de viver rodeados de campos de milho e batatas e eu fui apenas um pretexto para mudarmos, mas que importava? Antes de começar o ano lectivo já estávamos instalados num terceiro andar esquerdo e nós, as crianças, já tínhamos assimilado que agora não podíamos fazer barulho à nossa vontade por causa dos vizinhos. Tudo corria perfeito.
O meu avô, que vivia connosco e era quem tratava do quintal e das árvores de fruto, quem fazia brinquedos para nós com o que a natureza dava, quem procurava nos campos as ervinhas para os chás, quem ia à fonte buscar água, quem tratava das galinhas e dos coelhos, começou a definhar. Até morrer, alguns anos depois, nunca mais foi o mesmo. Sentava-se a olhar para a televisão e assim ficava, horas e horas, presente em corpo mas não em espírito.
Hoje, sinto que fomos nós que o matámos. E não é um sentimento fácil.
O Tempo Entre Costuras
Há 4 semanas
16 comentários:
Como será que ele se sentiria se percebesse que ficando teria impedido uma educação melhor a voces?
A morte faz parte da vida. Uns conseguem escolher como vão morrer, outros permitem que decidam por eles. Outros deixam a vida acabar... ir até o fim. ;)
beijinhos
A saudade é algo que cria muitas mazelas.
Senhora, esse comentário ajudou a minha consciência. :)
É um facto Dantins.
Eu ia dizer para ver as coisas pelo outro prisma, mas li o comenário da Senhora e está lá tudo dito. Penso que é mesmo assim...
Desta vez escreveste um post comovente, Castanha. Como disseram mais acima, não há motivo racional para sentires 'culpa', mas a razão nem sempre está presente nestas coisas. Não é o primeiro caso que conheço de pessoas já idosas «transplantadas» que não aguentam o transplante. E infelizmente não há solução. É lógico que se opte pelo benefício da maioria, mas... Por outro lado, nada te pode nunca garantir que mesmo na sua terra, ele pela idade não estivesse perto de começar a 'murchar' como aconteceu na cidade. E vocês tiveram outras possibilidades
(entendo agora porque quando eu conto que vou para a 'minha' aldeia ao fim de semana não te mostras nada entusiasmada. Mas para mim é o contrário - nasci e vivi sempre no «terceiro andar esquerdo» e a aldeia é a festa)
Já tudo foi dito, estou sem palavras; para a Castanha, mulher da "magia das palavras", aqui deixo a "palavra" do Poeta...
A Palavra Mágica
Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.
Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,
procuro sempre.
Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra.
Carlos Drummond de Andrade, in 'Discurso da Primavera'
Um abraço, com muita estima.
Eu nasci na cidade. Mas a cada 15 dias o fim-de-semana é na aldeia. De onde os meus pais sairam. Mas onde ficaram os meus avós. E ainda continua a minha avó. Que acha uma piada do caraças ao facto dos netos preferirem passar as férias lá do que na praia.
Quem precisa de praia, quando tem os tios e os primos todos juntos, uma ribeira perto, caminhadas pelos montes e muito trabalho agrícola à espera? :)
Se calhar, sem o saber, foi feliz na cidade. Vendo televisão e convivendo com os netos.
Ei! Eu sei que a gente não acalma a consciência, nem arranca a saudades. No máximo racionaliza as coisas. ;)
Mesmo porque, certas pessoas fazem uma falta danada! E voce listou um monte de motivos para sentir falta.
Eu também sentiria se estivesse no seu lugar... ;)
beijinhos
Carlos, sim. Pode até ser assim.
Emiele, eu vivo no tal "3.º esquerdo" desde os dez anos. Já é mesmo muito tempo. Já parece desde sempre. E gosto. Nem sequer mudaria para uma vivendazinha de subúrbio. Cada um é como cada qual... E também vou "à aldeia" de vez em quando desintoxicar, só que não me aguento mais que dois dias.
Mariquinhas... obrigada :) A sério. :)
Taralhoca, eu também passo bem sem praia. Nisso estamos de acordo. Detesto areia que se enfia por todo o lado. Praia é para ir à esplanada beber um copo. Só.
Vap, se calhar foi...
Senhora, se o meu avô dosse vivo agora teria 110 anos. Isto sou eu a racionalizar...
Não deves sentir-te culpada porque eras uma criança e não foste tida nem achada nesse processo...
E nem que fosses!
O teu avô, mesmo na cidade também poderia fazer muita coisa, porque nessa altura a cidade era pouco maior que uma aldeia. Bastavam-lhe meia dúzia de passos para estar no campo.
Se tivesse ficado na aldeia podia ter definhado com saudades dos netos, nunca se saberá...
Sim, mas a questão não é propriamente estar na cidade ou estar na aldeia. Eu moro mesmo na cidade e se der meia dúzia de passos estou no meio da natureza. Não posso é plantar lá umas couvinhas nem criar umas galinhas...
Conheço perfeitamente a sensação. Sempre achei que a minha avó se "deixou morrer" quando a tiraram da sua casa e a levaram para casa das filhas e era na mesma terra. É muito complicado desenraizar um idoso.
Mas porque é que ficamos assim quando somos idosos? Eu, que já devo ter mudado de casa umas trinta e tal vezes na vida, ficarei assim um dia?
Que opções devemos tomar na vida?!? Será a opção tomada a mais correcta?! Bem, penso que essa é uma questão a que ninguém saberá responder...
E foi assim que surgiu a Filosofia ;)
São perguntas muito difíceis!
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