quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Conhecíamo-nos há pouco tempo. Por isso, a nossa relação ainda era feita de gentilezas e formalidades. Ela era mulata, filha dum militar português e duma negrinha duma sanzala angolana. De pele escura demais para ser branca e clara demais para ser negra, tinha um nariz aquilino a contrastar com uma farta cabeleira em carapinha. Podia dizer-se que era uma mulher bonita sim. Era mãe solteira. Também fruto de um envolvimento com um militar em missão. Casado. Condição que ela só descobriu após alguns meses de gravidez. Ele voltou para a família e ela jurou que odiaria homens para todo o sempre.
Um dia, mostrou-me uma fotografia onde apareciam várias meninas todas tom de lixívia. Algumas loiras outras nem por isso. No meio delas, uma criança de olhar negro muito brilhante e pele escura fitava-me com uma farta cabeleira em carapinha.
- Adivinha qual é a minha filha - disse ela.
Eu apontei imediatamente a pequena mulatinha, imbuída do mesmo sentimento de lógica com que afirmamos que dois e dois são quatro.
- É esta! - respondi.
De repente, o olhar da Sofia (era assim que ela se chamava) toldou-se duma raiva que eu ainda não lhe tinha visto.
- Porquê? - vociferou furiosa - Porque é que assumiste imediatamente que a minha filha é preta? O meu pai era branco! Ela podia sê-lo também! Perfeitamente!
- Mas - respondi confusa - a tua filha não é aquela?
- É! Mas podia perfeitamente ser uma das outras!
- Bem, foi só um palpite. Se não fosse tu dizias-me que não era e pronto. Se eu te mostrasse uma fotografia cheia de crianças negras e uma branca e te perguntasse qual era a minha filha, o que é que tu dizias?
- Pois fica sabendo que tu até podes vir a ter uma filha preta! Tu não sabes os antecedentes da tua família. Ou sabes?
- Oh Sofia, na boa! Quero lá saber da cor das crianças que posso ou não vir a ter, mulher!
A conversa continuou por mais alguns minutos, nos quais se trocaram mais alguns argumentos surreais. A possibilidade de virmos a ser qualquer coisa mais do que conhecidas, essa, ficou por aí.

11 comentários:

Anónimo disse...

Eu tive uma empregada, que na verdade era mais a segunda mãe dos meus meninos que outra coisa, cujo pai era branco de olhos azuis e a mãe negra.Uma familia enorme! Cada um de uma cor. E depois os filhos casaram e vieram os netos. Nunca, em toda a minha vida, vi familia mais colorida! E felizmente de bom humor e de bem com sua própria cor, porque eu já dei dessas: nossa, ela também é sua sobrinha?! (a menina era muito branca e de olhos azuis)

cereja disse...

É coisa muito delicada o modo como cada um sente o racismo. Olha, com franqueza, num caso desses se me mostrassem uma foto e pedissem «adivinha quem é a minha filha» eu era capaz de imaginar que para ela dizer aquilo é porque não era o óbvio - talvez a miúda fosse mesmo branca... Teria ficado na dúvida. :)
Eu penso que hoje está mais atenuado, mas ainda se encontra o pressuposto de que o bonito é o loiro de olhos azuis. Conheço uma menina moreninha de uma família de loiros, e que já tem perguntado «porque só eu é que sou feia?» Nota - até é bem bonitinha!!!!

Paula Baltazar Martins disse...

Que história, a senhora era um bocadinho estranha :P

Eu até pensei que não tivesses acertado na criança...

Anónimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Mariquinhas disse...

O teres adivinhado/acertado a "imagem" da "sua" filha se tenha tornado numa espécie de insulto é realmente uma questão muito complexa...Mesmo sabendo os antecedentes da mãe, não faz com que se desculpe - não podemos ser responsáveis por todos os pecados do mundo;))
A Sofia precisa de ajuda, sem dúvida, para resolver os seus "macaquinhos do sótão" - não sei se é politicamente correcto dizer-se assim - estou farta de tanta hipocrisia à custa disto...
Ainda a propósito do "politicamente correcto"- havia/há expressões que, entraram no nosso léxico e que caíram em desuso, por vários motivos - no caso seguinte - até nos Açores se usava dizer, embora muitos nunca tenham ido à Casa Africana (para quem não saiba, os nossos amigos brasileiros, ficava em Lisboa na rua do Ouro e era um armazém grande muito popular até aos anos 70, depois decaiu, não?) - eu até fazia questão de não a usar por achar polémica à época - há dias, sabe-se lá porquê, vinha das compras carregada e pedia a um dos filhos que me ajudasse, este reclamou dizendo que estava a estudar, eu num desabafo digo - pois, a velhota é que tem de subir as escadas sempre carregada - eu sou "o preto da Casa Africana" - o rapaz que não conhecia a expressão, ele só tem 17 anos e já nasceu nos Açores, estranhou a alusão ao preto - temos que pensar duas vezes...;))

cereja disse...

(venho só acrescentar uma nota ao comentário da Mariquinhas: é que dizia-se essa expressão, porque essa loja, a «Casa Africana», talvez exactamente pelo nome, tinha como imagem de marca um pretinho vestido com uma libré e carregadinho de embrulhos!)

cereja disse...

Bem, o boneco é ESTE
E tinha ideia de que havia uma versão colorida, a libré era encarnada, quase de certeza...

Mariquinhas disse...

Obrigada Emiéle, eu sabia, só não referi porque o comentário já estava longo. Mas é bom teres lembrado, haverá quem não saiba, mas mesmo assim acho que hoje ninquém usaria essa "imagem", digo eu...

Castanha Pilada disse...

Senhora, essa devia ser uma família verdadeiramente polivalente.

Emiele, ainda ninguém explicou a essa menina a lógica da coisa???

Dantins... até eu...

Mariquinhas e Emiele, a esse respeito também tenho uma história. Quando comecei a trabalhar, tinha um colega que se queixava muitas vezes de ser "o preto". Eu olhava para ele, via- branco, e não entendia o que ele queria dizer com aquilo, santa inocência! Mais tarde descobri que o que ele queria era mesmo não fazer nenhum, lol!

Mariquinhas disse...

Como eu aprecio essa tua maneira de ser, descomplexada, de ver as coisas - tomara que muita gente fosse assim...Acho que seríamos todos mais felizes, a sério.

Castanha Pilada disse...

Será? :))) Não sei. No geral, eu considero-me feliz.