O velho cine-teatro ficava na praça central da cidade. Era grande. Levava mais de mil pessoas ao mesmo tempo a vibrar com as aventuras do James Bond, a chorar baba e ranho com as desgraças dum filme indiano ou a trautear as músicas do Grease. Era velho. As escadas já rangiam um bocadinho e as casas de banho estavam aquém do admissível em termos sanitários e ficavam na cave. O segundo balcão tinha a alcunha popular de "piolho" porque ditava a tradição que era para lá que iam ver cinema as pessoas que não tomavam banho e eram mais propensas a criar relações íntimas com o animal homónimo. Tinha camarotes. Primeiro balcão. Plateia para os remediados. Quando eu era criança, adorava ir ao cine-teatro. Gostava de cinema, mas mais do que isso, gostava de estar na fila B do primeiro balcão a ver as luzes gigantes do tecto altíssimo a apagar devagarinho e o pano pesado a abrir indolente. Mentalmente fazia um exercício: Olhava lá para cima, para umas aberturas redondas de onde vinha a luz e que eu imaginava serem túneis de luz sem fim que só acabavam nas núvens, e logo a seguir percorria rapidamente com o olhar todo o pé-direito do edifício até acabar lá em baixo na plateia com muitas cabeças pequeninas em fila e isso provocava-me uma vertigem que me fazia cócegas pequeninas no estômago.
Ao lado da sala principal havia um salão de baile com um palco para a orquestra e vários sofás de veludo vermelho à volta que era onde as donzelas esperavam o convite para dançar. Nunca fui a um baile daqueles mas era assim que eu imaginava. Pares felizes a rodar no soalho muito brilhante e encerado. Nos dias de cinema era para o salão de baile que as pessoas iam no intervalo do filme, conversar e fumar. Nesse tempo fumava-se em qualquer lado, não havia leis anti-tabaco nem preocupação com isso.
Foi no cine-teatro que eu vi o meu primeiro filme de cinema, foi lá que fiz o primeiro ensaio de namoro e foi também lá que eu ri como doida e chorei baldes de lágrimas com as tragédias e as alegrias das personagens que de tão grandes me pareciam verdadeiras.
No cine-teatro trabalhavam algumas senhoras de bata azul que já toda a gente conhecia e um senhor que usava uma farda e um boné e tinha uma lanterna para levar ao lugar as pessoas que chegavam atrasadas. Mais discreto, nos bastidores, trabalhava o Sr. Luís, que era quem projectava os filmes. Eu olhava para trás, para a janelinha lá em cima de onde saíam raios coloridos que percorriam o ar até à tela onde se transformavam magicamente em imagens, e imaginava o Sr. Luís lá dentro, no meio de máquinas complicadas com quilómetros de película que girava em rodas sucessivas. Nunca ninguém o via, mas eu sabia quem era. Porque no final da última sessão, ele vinha cá fora com um balde de letras e um escadote, mudar o título do filme para o do dia seguinte. Era um trabalho de paciência, porque tinha que subir e descer várias vezes, tirar as letras que já não interessavam e pendurar outras e ir avançando com o escadote. O que ele fazia pachorrentamente. Quando acabava, descia, afastava-se um pouco e olhava para a obra terminada. Por detrás dos seus óculos muito graduados, o senhor Luís afagava o rosto pensativo, que era como quem diz que a ortografia não devia estar para vinte valores mas não fazia mal.
Um dia, o cine-teatro ficou tão velho e já ia lá tão pouca gente que teve que fechar. Mais tarde, as pessoas que mandavam na cidade e que tinham com certeza as mesmas memórias que eu, teimaram em não o demolir e fizeram-lhe obras. Ficou bonito, moderno, irrepreensível. Mas nunca mais foi a mesma coisa.
O Tempo Entre Costuras
Há 4 semanas
7 comentários:
Gostei muito desta tua memória...beijos.
Poxa... Essa foi emocionante... Muito.
Beijo Paula! :)
Lol Senhora, mesmo?
Sublime!Como eu me revejo nessa tua memória - é como dizes - "...nunca mais foi a mesma coisa" - e nós também... digo eu:))
Pois não :)
Este foi, provavelmente, o post mais longo que escreveste por aqui, o que me deixa duplamente emocionada. :D
Na! Já tive outros igualmente compridos! Pelo menos de vez em quando o marido queixa-se...
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